NOTÍCIAS

Crise hídrica e racionamento alertam para fim da ‘cultura da abundância’, dizem especialistas

Rodízio no fornecimento de água no DF completa um ano nesta terça; desafio é ampliar oferta e seguir reduzindo demanda, dizem professores.

DF

Régua marca volume do Descoberto (Foto: TV Globo/Reprodução)

Nesta terça-feira (16), o Distrito Federal comemora um aniversário amargo: um ano sob o regime de racionamento de água, motivado pela maior crise hídrica da história da capital federal. Nesses 365 dias, o morador do DF se viu obrigado a consumir menos, mudar hábitos, remarcar compromissos e até, em alguns casos, promover mudanças na estrutura de casas e comércios.

Ao longo da próxima semana, o G1 vai mostrar os principais efeitos da restrição hídrica na vida da população do DF, e como essa nova realidade impactou diferentes setores da capital. Mas, será que 12 meses são tempo suficiente para uma mudança definitiva? A crise hídrica veio para ficar, ou podemos sonhar com o retorno dos banhos longos, da mangueira ligada nos quintais e das piscinas sempre límpidas?

Em busca da resposta, o G1 conversou com três especialistas no tema: o presidente do Conselho Mundial da Água e secretário de Saneamento e Recursos Hídricos de São Paulo, Benedito Braga; o doutor em recursos hídricos pela Universidade de Londres, e atual professor da Universidade de Brasília (UnB) Sérgio Koide, e o ex-diretor da Agência Nacional de Águas (ANA) e também professor da UnB Oscar Cordeiro Netto.

Nas entrevistas, eles propuseram saídas diversas para resolver a crise em curso e evitar os próximos ciclos de privação, mas foram unânimes em um ponto: a rotina pautada pelo uso consciente e moderado da água será a tônica das próximas décadas, e a “cultura da abundância” deverá ser relegada aos livros de história.

Leia, abaixo, a entrevista com os três especialistas sobre a nova realidade hídrica do DF e do país:

G1: O Distrito Federal está completando um ano sob racionamento, com cortes a cada seis dias na maioria das regiões. É tempo suficiente para uma mudança de mentalidade?

Benedito Braga: Um ano não é um tempo muito longo, mas já é um sinal. Quanto tivemos a crise em São Paulo, em 2014/2015, depois que a crise passou, as pessoas continuaram consumindo água de forma mais parcimoniosa, consciente, racional. Até hoje – e já se vão três anos –, estamos com consumo 15% menor do que era na situação pré-crise.

Ou seja, as pessoas aprendem e mudam seu comportamento. E o que está acontecendo no DF, eu acho que deve seguir na mesma direção.

Sérgio Koide: É um processo, e esse processo é muito maior do que simplesmente um período de racionamento. Isso precisa vir da escola, desde criança. O que está acontecendo? O padrão do consumo, nesse momento atual, está crescendo em relação ao início do racionamento.

É óbvio que algumas pessoas adotaram medidas de conservação, mas não foi a regra geral. Até no Plano Piloto, em regiões de renda mais alta, algumas pessoas nem se tocaram do problema. Como as caixas são grandes, não chegou a faltar água. Onde elas foram atingidas? No cabelereiro, no restaurante.

Oscar Cordeiro: Um ano é suficiente para se avaliar, mas pouco para se consolidar a mudança. Ainda é muito forte na nossa cultura essa noção de abundância, de recurso infinito. O caso de Brasília é emblemático, porque somos referência de cidade planejada. Havia uma preocupação prévia com a ocupação do solo, com a qualidade dos recursos públicos.

É importante que se repercutam essas mudanças, que se valorizem essas mudanças, se continue a mostrar os exemplos. Eu diria que existem várias forças, muitos processos que tendem a retomar uma situação anterior. Consumo excessivo, perdas de água no sistema. Precisamos ter uma vigilância para que a mudança nos padrões de consumo seja definitiva.

G1: Quando o racionamento foi anunciado, as pessoas reclamaram muito de ficar um dia sem água. Recentemente, quando o Descoberto foi abaixo de 10%, a gente viu a população cobrando o segundo dia de corte, e chamando o governo de “leniente”. O que mudou?

Cordeiro: Evoluímos um pouco na tomada de consciência sobre a importância da água, a fragilidade que existe nessa disponibilidade. Isso, embora haja interesses e forças que tendem, se a gente não ficar atento, a valorizar a situação anterior. Acho que mudanças importantes ocorreram, e o [consumo de] amanhã não será como foi o [consumo de] ontem.

Braga: Eu acho que é uma situação até de desespero das pessoas, de ver a possiblidade de ficar sem água. Então, a pessoa quer racionamento para se forçar a usar menos, e não faltar água no futuro. É uma questão natural do ser humano.

G1: Mas o governo foi leniente, de fato, ao não estender o racionamento para 48 horas seguidas?

Koide: Acho que o risco que se correu, ao não entrar em dois dias de racionamento, foi calculado. Participei dessas discussões no meio técnico, acho que não se debateu com a população. Dois dias seguidos sem água começam a causar problemas graves de saúde pública.

Você afeta de forma muito pesada os comércios, sobretudo os de alimentação. Começa, também, a gerar problemas pelo acúmulo excessivo de água, problemas com Aedes aegypti, com a qualidade da água. E isso, para reduzir o consumo por pouco tempo, na prática.

G1: A gente tem falado muito em reduzir o consumo, mas a Caesb calcula uma perda média de 33% da água tratada por vazamentos e “gatos”. É justo trabalhar com esse percentual de desperdício na própria rede?

Cordeiro: Esse número incomoda bastante, e acho que isso é um problema da regulação. Se eu sou operador do sistema, tenho uma perda e posso diluir na fatura de todos, qual é minha motivação para reduzir a perda?

O controle de perdas é complexo e caro. É mais fácil você conseguir dinheiro a fundo perdido [sem previsão de pagamento] e construir uma barragem, que é uma obra visível, vistosa. Pra reduzir perdas, você precisa cortar o “gato”, quebrar asfalto, gastar dinheiro pra identificar vazamentos.

Não sou contra a concessão, inclusive a perda costuma ser bem maior onde a gestão da água é pública. Mas a empresa tem que ser muito bem regulada, fiscalizada, não vai fazer isso “de coração”.

Koide: É preciso tomar cuidado com esse número, porque os vazamentos têm duas causas: comprimento das tubulações e número de ligações. Em São Sebastião, como as casas são pequenas, há muitas ligações no mesmo trecho e aí, há vazamentos. No Park Way, você tem poucas ligações, mas uma rede imensa para conectar os lotes espaçados. Também há muito vazamento.

Além disso, muitas estimativas no Brasil e no mundo são “chutes”, porque as empresas têm pouco controle sobre o consumo real, o gasto real, não há hidrômetros suficientes nas cidades. Isso sem contar os “gatos”, onde também é preciso distinguir a falta de caráter das ligações irregulares em áreas de baixa renda. No Sol Nascente, como não era regularizado, a Caesb não podia cobrar, e as pessoas precisaram se virar.

G1: A gente vem falando até agora do consumo urbano, mas o uso extensivo de água na indústria e na agricultura também são um problema grave. Mesmo sem uma vocação industrial, qual a avaliação das mudanças nesses setores, aqui no DF?

Braga: Em SP, o órgão regulador [Departamento de Águas e Energia Elétrica] estabeleceu restrições de uso na parte agrícola, também. Quem retirava água do rio para isso foi incentivado a reduzir o consumo em 20%, 30%.

Se o sujeito não tem um sistema eficiente e reduz o insumo, claro que reduz a produção. Mas faz parte da crise, você tem que priorizar o uso prioritário – consumo humano e dessedentação animal.

Koide: O que nós teríamos que ver, a longo prazo, é que tipo de agricultura nos interessa no Distrito Federal? Temos que vocacionar a cultura, faz sentido o plantio de grãos? Eu acho que há regiões do país mais propícias. Por outro lado, a horticultura e a fruticultura têm retorno e investimento maior, empregam mais gente.

Cordeiro: Nesses setores, há tipos diferentes de regulação. A gente pode regular o acesso à água, na natureza, que é o que a ANA faz ao dividir a vazão dos rios, por exemplo. E tem outro tipo, mais no fim do processo, que é o saneamento. Os dois têm de ser melhorados no Brasil: o que eu reservo de água para a agricultura, para a indústria, tem uso eficiente?

irrigacao

Irrigação de plantações em área do Incra 9, a cerca de 500 metros da margem do reservatório do Descoberto nesta quarta-feira (9) (Foto: Alexandre Bastos/G1)

G1: Benedito Braga, o senhor organizou o enfrentamento de São Paulo aos momentos de maior crise, entre 2013 e 2014. Três anos depois, como avalia os resultados? Essa “cultura de abundância” também era visível por lá?

Braga: No Sudeste e no Centro-Oeste do país, onde a chuva é mais generosa, há uma tendência de as pessoas não se preocuparem com o recurso. É como um sujeito com milhões e milhões de reais no banco, ele gasta à vontade.

Nós estamos com 50% de armazenamento no nosso sistema. Não é tão bom como no início do ano passado mas, com o consumo menor da população, estamos numa posição relativamente confortável. As ações que fizemos de uso do volume morto, instrumentos econômicos [tarifa] para controle da demanda, interligação de sistemas, todas tiveram bom resultado.

G1: Nas crises de São Paulo e do DF, a gente viu o governo anunciando muitas obras para aumentar a oferta de água, uma “segurança hídrica” baseada no aumento da extração. Isso não gera um impacto ambiental e, ao mesmo tempo, um falso conforto na população?

Koide: É importante trabalhar com outros tipos de medida. No DF, já existe o sistema de tarifa diferenciada. A questão da tarifa como mecanismo de correção do consumo é aceitável. No Plano Piloto, há edifícios velhos, caríssimos, de alta renda, e a gente não tem medição individualizada dos apartamentos.

O meu prédio é deste século, a medição não é individual, e não há quem convença os moradores. Porque aí, tem que quebrar parede, mudar, passar dentro do forro de gesso. Então, quem não poupa é salvo por quem poupa, e isso joga a favor desse falso conforto.

O que não pode haver é uma “punição social”. Dentro do consumo razoável, de 100 litros por habitante por dia, o preço tem que ser mais baixo. Aí, o que ultrapassar disso é que fica muito mais caro.

Braga: Eu acho que precisa haver um equilíbrio entre a oferta e a demanda. Nada justifica o desperdício, o uso irracional e ineficiente. Mas, você tem que correr atrás de aumentar a disponibilidade. Ao mesmo tempo, tem que reduzir a demanda.

Cordeiro: Há uns dez anos, houve aqui no DF um governador que disse garantir água pelos próximos cem anos. A gente viu que isso era falacioso. A segurança hídrica trabalha com vários aspectos, e a gente tem que aprimorar a gestão da demanda.

O reúso da água, por exemplo, é uma questão que deveria ser mais valorizada. A quem interessa fazer o reúso? A muitos, mas “desinteressa” a poucos que acabam atrapalhando. Deveria existir uma política de incentivo ao reúso da água, ao aproveitamento da água da chuva. Mas você não vê isso.

O grande problema de Brasília foi que não houve uma previsão adequada de que estaríamos entrando em um período de seca. O racionamento entrou em pleno período de chuva, porque não se previu isso antes. Se tivéssemos começado antes, talvez não precisássemos ter agravado tudo.

santa-maria

Reservatório de Santa Maria, no DF, com cerca de 41% da capacidade, em imagem de novembro de 2016 (Foto: Tony Winston/GDF/Divulgação)

G1: Nas últimas décadas, o Brasil tirou milhões de cidadãos da faixa da miséria extrema. O problema é que esse novo padrão de vida consome mais água, por definição. Como equacionar o crescimento econômico – e a alta populacional – e o déficit de água?

Cordeiro: Eu acho que a situação do DF e do Entorno é de referência. Nós estamos numa região de nascentes que não tem rios caudalosos, e uma população que cresce a cada ano. Não é nem por nascimento, mas por migração. Hoje, as grandes variações demográficas do país se dão mais por migração que por crescimento vegetativo.

A gente tem que procurar, primeiro, fazer uma melhor gestão da oferta e da demanda. Do ponto de vista tecnológico, temos condições de satisfazer essas novas situações.

A grande dificuldade é que a questão da água de fato esteja no dia a dia do brasileiro, e que haja uma demanda da sociedade por bons serviços de saneamento, assim como há na saúde, na educação, no transporte.

Deixou de ser um tema, porque não se faz a devida sinapse entre o saneamento e a saúde pública, esses casos de zika, chikungunya, por exemplo. Temos que trabalhar melhor essa questão.

G1: Considerando todos esses fatores da entrevista, o que a gente precisa fazer para que essa consciência tomada em meio à crise seja definitiva? Como evitar que esse avanço se perca quando a situação se normalizar?

Braga: Não é em todas as partes do Brasil, mas no Sudeste e no Centro-Oeste, onde a chuva é mais generosa, há uma tendência de as pessoas não se preocuparem com o recurso. É como um sujeito com milhões e milhões de reais no banco, ele gasta à vontade.

Mas, acho que as pessoas aprenderam com a crise. Independentemente de fake news, ou de críticas à ideia de mudança climática, elas passaram por uma situação de perigo real. Não acredito que haja uma desmobilização. Mesmo com mais chuvas, as pessoas vão continuar se precavendo.

Cordeiro: Esse aprendizado pessoal ou coletivo se dá pela educação, pelos valores, e isso é uma forma mais perene que demanda discussão e debate. Se dá, também, pela observação do problema do outro, uma aprendizagem por analogia. E se dá num terceiro nível – que é a forma mais dolorosa –, pelo erro.

Talvez essa crise tenha sido necessária para essa tomada de consciência. Eu fiquei surpreso, há pouco tempo atrás, quando uma enquete da CBN mostrou que o tema mais importante para o próximo governador seria a crise hídrica. Eu, que trabalho aqui desde os anos 1970, estou falando disso há 40 anos.

Koide: Logicamente, houve uma preocupação maior por parte das pessoas mais conscientes. Inclusive, é por isso que muitos defendem que medidas mais drásticas, como tarifa de contingência, são mais efetivas.

Acho que estamos muito atrasados, principalmente, na questão do esgoto. A questão da água vem melhorando muito, caminhando para níveis aceitáveis, até porque a população cobra. Já a coleta e o tratamento de esgoto vêm sendo deixados de lado, porque é um preço alto e a demanda da população não é muito grande, o lucro político não é muito grande.

O esgoto não tratado gera a água de má qualidade que se consome mais à frente.

Fonte: G1.

ÚLTIMAS NOTÍCIAS: