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Saneamento e mudanças climáticas

Como as mudanças climáticas afetam o funcionamento da infraestrutura dos serviços de saneamento das cidades? O que pode ser feito para reduzir os impactos dos eventos climáticos extremos nos serviços de saneamento?

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Nos últimos anos, poucos assuntos receberam tanta atenção e foram motivo de tantas discussões, pesquisas e polêmicas quanto o aquecimento global e as consequentes mudanças climáticas. Hoje, por mais que haja alguma disputa sobre as causas esses fenômenos correlatos – ainda há quem diga que nós, seres humanos, não somos responsáveis – ninguém questiona que eles são uma realidade. Sim, o mundo está mais quente e, sim, a elevação da temperatura média está mudando o clima do planeta.

Mas quais os impactos dessas mudanças sobre as cidades – em especial, sobre os serviços de saneamento? A resposta para essa pergunta passa pelo entendimento de uma consequência cada vez mais conhecida do aquecimento global: o aumento em intensidade e frequência de eventos climáticos extremos, como as secas duradouras, as chuvas torrenciais, e as intensas ondas de frio e de calor, entre outros. Esses fenômenos podem ter grande impacto sobre a infraestrutura de saneamento urbana.

A relação entre aquecimento global e eventos climáticos extremos

O ano de 2017 caminha para ser um dos três mais quentes da história. A previsão é da WMO (World Meteorological Organization), uma das instituições meteorológicas mais respeitadas do mundo, e foi apresentada na abertura da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP 23), que aconteceu entre os dias 6 e 17 de novembro em Bonn, na Alemanha. Segundo o levantamento da WMO, a temperatura média mundial entre janeiro e setembro de 2017 foi 0,47°C mais alta que a média registrada em igual período entre 1981 e 2010 – com margem de erro de 0,08°C para mais ou para menos. Isso representa uma alta de 1,1°C frente à temperatura média observada antes da revolução industrial, que começou na segunda metade do século 18. Pode parecer pouco, mas em se tratando do clima global, esta é uma variação das mais elevadas.

E quem acompanha o noticiário já percebeu as consequências, para o clima, dessa variação. Afinal, embora alguns cientistas ainda resistam em correlacionar, diretamente, aquecimento global com a alta no número dos chamados eventos climáticos extremos, a ligação, pelo menos indireta, entre um fenômeno e outro já é tida como certa por uma numerosa maioria. Funciona assim: a queima de combustíveis fósseis e a alteração do uso do solo – principalmente pelo desmatamento – aumentam a emissão de gases que contribuem para o aumento da temperatura média do planeta. Este aumento de temperatura, por sua vez, impacta circulação de umidade, pressão e temperatura. Essas alterações resultam na mudança do clima do planeta, que se manifesta, principalmente, por meio do aumento em intensidade e frequência de eventos climáticos, como enchentes e secas, que passam a ser mais extremos.

Fenômenos climáticos

O ano de 2017 – e ele ainda não acabou – foi repleto desses eventos extremos. “Vimos temperaturas superarem os 50°C na Ásia, furacões em rápida sucessão no Caribe e no Atlântico, alguns dos quais chegaram até a Irlanda, monções e enchentes afetando milhões e uma seca implacável na região leste do continente africano”, disse Petteri Taalas, secretário geral da WMO, durante a COP 23.

No Brasil, um sem número de eventos extremos também vem sendo observados, como registra o Atlas Brasileiro de Desastres Naturais, da Defesa Civil (1991-2012), e os monitoramentos do Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais). São Paulo, por exemplo, a maior cidade do País, viu chover boa parte do volume previsto para o mês de abril em um único dia. Três meses depois, a cidade passou mais de 30 dias sem uma gota de chuva sequer, no julho mais seco em 22 anos.

E não é só em São Paulo. Em agosto, um levantamento conduzido pela Folha de S.Paulo com base em dados do Ministério da Integração Nacional, mostrou que uma em cada quatro cidades brasileiras estava em estado de emergência em razão de seca ou de chuva. Uma cidade em especial – Novo Triunfo, no nordeste da Bahia – estava em emergência tanto pela seca quanto pela chuva. Lá, a seca foi reconhecida como emergencial em 9 de março e 18 dias depois, no dia 27 do mesmo mês, uma enxurrada forçou a declaração de emergência em razão da chuva. Com fenômenos nacionais como esses, fica fácil entender por que, já em 2015, o Brasil foi considerado o país que mais se preocupa com as mudanças climáticas do mundo, segundo levantamento feito pelo Pew Research Center com 40 nações.

Secas, enchentes e o impacto sobre o saneamento

Está clara, portanto, a relação entre aquecimento global e eventos climáticos extremos: a primeira têm aumentado a intensidade e a frequência do segundo. Mas, de que maneira esses eventos climáticos extremos impactam o saneamento? Como que as secas e as enchentes – os fenômenos extremos mais usuais no Brasil – atingem os sistemas de abastecimento de água, de coleta e tratamento de esgoto, e de drenagem urbana?

“As mudanças climáticas tornarão obsoletos os atuais projetos de infraestrutura de saneamento”, diz, de maneira direta e taxativa, a introdução do documento “Climate Change and Urban Water Utilities”, publicado pelo Banco Mundial. Segundo o texto, até hoje, o planejamento no setor usou dados históricos para determinar quanto e como os recursos destinados ao saneamento deveriam ser investidos. Com as mudanças climáticas, esses dados históricos perdem valor, já que o que aconteceu no últimos anos não serve de parâmetro para o que está por vir. “Os fluxos máximos e mínimos [de água] serão superados – ou não serão atingidos – como consequência dos eventos climáticos extremos”, antecipa o documento. Ou seja, as secas e as enchentes serão a provação dos sistemas de saneamento.

Qualidade da água

Nas secas prolongadas, diz o texto, diminui a quantidade e a qualidade da água, o que sobrecarrega os sistemas de captação e tratamento e pode aumentar os riscos para a população; alteram-se as condições nas matas ciliares, que protegem os corpos de água da erosão; e se reduz a recarga das águas subterrâneas, parte fundamental do ciclo hidrológico e fonte direta do recurso para quem usa poços artesianos. Já nas enchentes, aumentam as chances de mistura entre as águas da rede pluvial e o sistema de esgoto, o que pode aumentar a incidência de doenças transmitidas pela água; e se sobrecarrega as estações de tratamento e a infraestrutura de distribuição, com incremento no número de interrupções e falhas na prestação desses serviços.

Nos últimos três anos, quem viveu na cidade de São Paulo pôde acompanhar, de camarote, os impactos tanto da seca prolongada quanto das chuvas torrenciais na infraestrutura de saneamento da cidade. Não custa lembrar que, entre 2014 e 2015, a região Sudeste viveu a pior estiagem em 84 anos, segundo a então ministra do Meio Ambiente Izabella Teixeira. A Nasa, a agência espacial norte-americana, chegou a divulgar nota que classificava a crise como a pior em, pelo menos, 35 anos. “E mesmo assim, o assunto das mudanças climáticas e os impactos que elas podem ter sobre o saneamento não chegou com a força que devia chegar nas autoridades”, diz Antônio Eduardo Giansante, engenheiro hídrico da Universidade Presbiteriana Mackenzie. “Falta pensar essa questão de forma estruturada e planejar para um futuro em que esses eventos serão corriqueiros”, afirma Giansante. “Não podemos mais só correr atrás do prejuízo quando temos uma seca ou uma enchente – temos que nos preparar para esses fenômenos”.

Enfrentando as mudanças climáticas

Conheça os órgãos, conferências e protocolos criados para contornar e reduzir as mudanças climáticas nos últimos 45 anos

1972 – Conferência de Estocolmo

Batizada, oficialmente, de Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, é o primeiro evento do tipo organizado pela ONU (Organização das Nações Unidas). Reúne representantes de 113 nações, além de 400 organizações. Um dos maiores legados do evento é a Declaração sobre o Meio Ambiente Humano, que estabelece 26 princípios que formam as bases do que se entende por desenvolvimento sustentável – o desenvolvimento que contempla as necessidades humanas sem comprometer o meio ambiente.

1988 – IPCC

Conhecido pela sigla IPCC, o painel é criado por iniciativa do PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente) e da OMM (Organização Meteorológica Mundial) para reunir, resumir e divulgar conhecimento sobre mudanças climáticas e aquecimento global de maneira clara, direta e independente. Desde sua fundação, produz cinco grandes relatórios (Assessment Reports) que consolidam o que há de mais atual no estudo desses temas. Em 2007, o IPCC o IPCC é agraciado com o Prêmio Nobel da Paz.

1992 – Eco 92

A Eco92, um dos nomes da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, é uma das consequências do Relatório Brundtland e reúne, no Rio de Janeiro, 116 chefes de Estado e mais de 10 mil pessoas para discutir o desenvolvimento sustentável. A água está presente direta ou indiretamente nos principais documentos produzidos pela conferência, entre eles a Declaração do Rio, a Agenda 21, as convenções de Mudanças Climáticas, Biodiversidade e Desertificação e a Carta da Terra, entre outros.

1994 – UNFCCC

A UNFCCC, ou Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, é consequência direta da Eco92 e transforma recomendações de condutas relativas ao clima em compromissos que devem ser cumpridos pelas 197 nações signatárias. Em síntese, a UNFCCC reconhece, formalmente, que existe um problema com o clima, estabelece uma meta, exige liderança dos países desenvolvidos para atingi-la, direciona recursos às nações em desenvolvimento e monitora avanços e retrocessos, entre outros.

1997 – Protocolo de Kyoto

É um compromisso assinado por 84 países membros da ONU para reduzir a emissão global de gases do efeito estufa em 5,2% em relação aos índices registrados em 1990. Cada país tem uma meta específica, alinhada ao que é emitido localmente. O acordo passa a vigorar em 2004 e cria o mercado de créditos de carbono, que podem ser emitidos e vendidos por países que lançam menos que sua cota. Os Estados Unidos, o maior emissor de gás carbônico do mundo, abandona o protocolo em 2001.

2002 – Rio+10

Acontece uma década depois da Eco92, é também conhecida como “Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável” e “Conferência de Johannesburgo”, atualiza algumas das diretrizes estabelecidas em encontros e documentos anteriores, além de reforçar a necessidade de um compromisso mundial com o desenvolvimento sustentável que vá além das questões climáticas. George W. Bush, presidente dos EUA, não comparece e envia um representante, enfraquecendo o peso político do encontro.

2015 – Acordo de Paris

Assinado por 169 países em 2015, passa a vigorar em 2016, com metas de redução na emissão de CO2 tanto para nações desenvolvidas quanto para nações em desenvolvimento. O objetivo, em longo prazo, é limitar a alta na temperatura média global a 2°C frente à média registrada antes da revolução industrial. Os Estados Unidos, que durante a presidência de Barack Obama, assina o acordo, volta atrás a mando de Donald Trump, que assume em 2017. A saída dos EUA só deve se concretizar em 2020.

2017 – Cop 23

É a 23ª edição da “Conferência das Partes” que assinaram a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC), em 1994. Uma das grandes metas do encontro é criar um caminho com regras e orientações para implementar o Acordo de Paris, firmado em 2015, e que passou a vigorar em 2016. Durante o evento, o Brasil recebe o prêmio “Fóssil do Dia” graças à medida provisória (MP) do governo Michel Temer que reduziu a tributação sobre empresas da indústria petroquímica e de gás natural.

Construindo a resiliência dos serviços de saneamento

Ignorar as possíveis consequências das mudanças climáticas pode trazer tanto riscos à população, quanto despesas bilionárias aos cofres públicos e à iniciativa privada. Aliás, não se adaptar ao fenômeno climático pode sair até 10 vezes mais caro do que investir e se preparar para enfrentá-lo. O cálculo foi feito pelo Projeto Metrópole, iniciativa encabeçada por pesquisadores do Cemaden, do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (USP) e do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

O trabalho usou a cidade de Santos, no litoral paulista, como modelo e concluiu que os custos mínimos para execução das obras de adaptação necessárias seriam de R$ 300 milhões. Muito dinheiro? Não fazê-las custaria, pelo menos, R$ 1,5 bilhão. “E esse custo de R$ 1,5 bilhão pode estar subestimado, uma vez que o modelo considera apenas a estrutura física de imóveis e os cálculos são baseados no seu valor venal”, diz José Marengo, coordenador-geral de Pesquisa e Desenvolvimento do Cemaden e coordenador do Projeto Metrópole, à Agência FAPESP. “Se incluirmos prejuízos em outras áreas, como saúde e educação, por exemplo, o valor chegaria facilmente a R$ 3 bilhões”, afirma.

Proteger a infraestrutura de saneamento

Ser proativo, portanto, e não reativo, é o caminho. Segundo os especialistas, o preparo para proteger a infraestrutura de saneamento das mudanças climáticas tem duas grandes frentes: uma de curto prazo e outra de longo prazo. De imediato, uma das medidas mais urgentes é a de aprimorar as previsões meteorológicas, em especial as feitas para microrregiões, como os bairros de uma grande cidade como São Paulo. Com o aumento na precisão dessas previsões, o passo seguinte, que também pode ser feito em curto prazo, é o de criar um sistema de alertas rápido e eficiente. Com medidas como essa, fica mais fácil poupar os cidadãos de algumas consequências mais graves e imediatas das mudanças climáticas.

Não adianta, porém, adotar apenas medidas tópicas como essas e não trabalhar na construção, em longo prazo, da resiliência da infraestrutura de saneamento frente à nova realidade climática que se anuncia. Entre as medidas que podem ser adotadas com esse objetivo estão a proteção e a integração de fontes e bacias de água; a adoção, em escala, de tecnologias como o reúso e a dessalinização; a diversificação das fontes e a redução de perdas físicas; a redução da impermeabilidade urbana; a revisão dos modelos e o controle da demanda, e até a construção de barragens de controle em locais mais vulneráveis. “Cada município deve ter um plano próprio de adaptação às mudanças climáticas para o setor do saneamento”, diz Giansante, do Mackenzie.

Plano Nacional de Adaptação Climática

Os esforços, nesse sentido, ganharam um importante aliado em 2016, quando foi instituído o Plano Nacional de Adaptação Climática (PNA), sob os auspícios do Ministério do Meio Ambiente. Onze setores diferentes participaram da elaboração do documento, e fixaram metas, estratégias e diretrizes setoriais para executar e monitorar o cumprimento dos objetivos estabelecidos. Agricultura, recursos hídricos, segurança alimentar e nutricional, biodiversidade, cidades, gestão de risco de desastres, indústria e mineração, infraestrutura, povos e populações vulneráveis, saúde e zonas costeiras: todos esses núcleos temáticos foram contemplados pelo. Um primeiro relatório de monitoramento e avaliação do PNA foi divulgado em 2017, e pode ser consultado, na íntegra, gratuitamente.

Concomitantemente, entidades como a Aliança Pela Água, articulação da sociedade civil que reúne organizações não-governamentais e movimentos sociais dedicados à construção de uma nova cultura de cuidado com a água, vêm se mobilizando pela construção de políticas municipais de saneamento que contemplem medidas de mitigação e adaptação às consequências do aquecimento global.

Aquecimento, cidades e o brasileiro urbano

Os brasileiros vivem, cada vez mais, em grandes cidades. Segundo dados publicados em 2017 pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), 76% da população do País reside em áreas predominantemente urbanas e se concentra em apenas 26% dos 5.570 municípios. Com a concentração de brasileiros nas grandes cidades e, sendo as cidades locais fortemente impactados por eventos climáticos extremos, será cada vez maior o número de pessoas à mercê das consequências negativas de um sistema de saneamento despreparado para essa nova realidade. É hora de priorizar os esforços nesse sentido.

Fonte: Juntos pela Água.

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