Relatório do Sindicato Nacional da Indústria da Cerveja reúne dados de empresas que concentram 85% da produção nacional. Além de avanços, presidente da entidade reconhece também limites e desafios
Poucos produtos ajudam a entender melhor o Brasil do que a cerveja. Presente em encontros familiares, festas populares e mesas de bar, ela faz parte da vida cotidiana de milhões de pessoas. São consumidor, em média, 69 litros por habitante por ano. O país está entre os três maiores produtores e consumidores de cerveja do mundo, com um mercado que movimenta cerca de 2% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional, gera milhões de empregos e expandiu nos últimos anos com o avanço de cervejarias artesanais em centenas de municípios.
Justamente por essa escala, qualquer mudança no setor tem potencial de produzir impactos ambientais e sociais relevantes — positivos ou negativos. É a partir dessa constatação que a indústria cervejeira brasileira passou a organizar, de forma mais sistemática, sua agenda de sustentabilidade.
O primeiro Relatório de Sustentabilidade do Sindicato Nacional da Indústria da Cerveja (Sindicerv), lançado em dezembro em evento na Câmara dos Deputados, reúne dados de empresas responsáveis por 85% da produção nacional. O documento busca traduzir em números uma mudança gradual na forma como um setor tradicional lida com seus impactos ambientais.
Entre os resultados consolidados estão a redução no uso de água , a adoção de energia elétrica de fontes renováveis e uma cadeia de embalagens fortemente baseada no reúso e na reciclagem.
Mais de 80% das garrafas de vidro do portfólio são retornáveis, enquanto 97,3% das latas de alumínio voltam ao ciclo produtivo.
Esses dados ajudam a explicar por que a sustentabilidade começa a aparecer menos como discurso e mais como variável operacional do setor. Segundo o presidente-executivo do Sindicerv, Márcio Maciel, o relatório captura um movimento coletivo, e não apenas iniciativas pontuais. “Na prática, o que este Relatório evidencia é um movimento de direção, não apenas um mosaico de casos isolados. Ele consolida práticas de 12 associadas responsáveis por 85% da produção nacional, o que dá escala e relevância ao retrato apresentado”.
O principal desafio ambiental da indústria sempre esteve ligado ao uso intensivo de recursos naturais, especialmente água e energia. Nesse ponto, os dados do relatório detalham os avanços acumulados nos últimos 15 anos, período em que o setor reduziu em cerca de 40% o consumo de água na produção, chegando à média de 2,6 litros de água por litro de bebida, além de operar hoje com praticamente 100% de energia elétrica proveniente de fontes renováveis nas operações industriais, entre as associadas
“Esses dois eixos, eficiência hídrica e energia renovável, são claramente replicáveis como agenda, porque aparecem como prioridade setorial e como prática operacional difundida entre associadas”, disse Maciel.
Ao mesmo tempo, o relatório explicita limites. A agenda climática avança de forma desigual dentro do setor, especialmente no que diz respeito à mensuração de emissões. “O próprio relatório delimita o que ainda depende mais de escala, capital e sistemas avançados de gestão”, afirmou Maciel. Um exemplo direto está em emissões: o relatório mostra que somente as maiores empresas já realizaram inventários de GEE (Gases de Efeito Estufa) e possuem metas de redução e/ou net zero. Segundo o executivo, a preocupação é generalizada, mas a capacidade técnica das empresas ainda não é homogênea.
Economia circular
Apesar da alta circularidade das embalagens de alumínio e o crescente investimento para consolidar o reúso dos vidros, estes últimos seguem ainda como um desafio logístico ao setor. “Diferentemente da lata, que tem alto valor agregado e cadeia consolidada, o vidro ainda enfrenta desafios logísticos para as áreas mais distantes da indústria recicladora”, explicou Maciel. Para enfrentar esse gargalo, o setor criou a Circula Vidro, entidade gestora de logística reversa.
A Ambev, por exemplo, acabou de inaugurou uma fábrica de vidros em Carambeí, no Paraná, justamente para garantir autonomia e velocidade na produção de mais de 600 milhões de garrafas por ano do segmento premium e “escolhas balanceadas”. A fábrica foi projetada para economizar 25 milhões de kWh ao ano e operar com fornos de alta eficiência energética, utilizando 100% de energia elétrica renovável e preparada para o uso de biocombustíveis.
A nova fábrica no Paraná também vai abrir espaço para parcerias com cooperativas de reciclagem e ações conjuntas com o poder público no âmbito do Plano de Resíduos Sólidos do estado, impulsionando impacto socioambiental positivo na região.
Com a incorporação de ao menos 20% de vidro reciclado na composição das garrafas, a operação ajuda a reduzir tanto as emissões de CO₂ quanto o volume de resíduos. Além do ganho ambiental, a nova unidade representa um avanço relevante na expansão das operações da companhia e consolida o estado como o primeiro do país a reunir todas as etapas da cadeia cervejeira, do grão ao gole.
O papel central da coleta
O processo de circularidade das embalagens, contudo, dependem de um elo crucial: a rede de catadores de resíduos. Neste ponto, a dimensão ambiental se conecta diretamente à social, mas abre outro leque de obstáculos e demandas.
“O sindicato seguirá atento a esse tema, fomentando o trabalho dos catadores e das cooperativas, que são agentes centrais desse sistema, e reforçando continuamente a premissa de que reutilizar é preferível a reciclar”, afirmou o presidente do Sindicerv.
O envolvimento das marcas de cerveja é fundamental. A Heineken, por exemplo, apoia, via Instituto Heineken, e em parceria com o Sistema Coca-Cola Brasil, o Valoriza, iniciativa idealizada pela Associação Nacional dos Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis (ANCAT) para fortalecer a cadeia da reciclagem e a qualificar a atuação de catadores e catadoras autônomos. Nesta quinta-feira (18), o programa foi apresentado na Expocatadores, maior evento da América Latina dedicado à reciclagem e à valorização do trabalho dos catadores, que aconteceu em São Paulo.
Roberto Rocha, presidente da ANCAT, afirma que o Projeto Valoriza foi pensado para oferecer uma infraestrutura adequada, acesso à tecnologia, capacitação e orientação, de forma a promover condições mais dignas, seguras e eficientes de trabalho. Também visa profissionalizar a gestão de cooperativas para que os cooperados aumentem a renda e garantam seus direitos.
A associação é parceira do Instituto Heineken em outras iniciativas, como a Conexão Cidadã, programa que, desde 2023, não só capacita esses profissionais, mas também distribui equipamentos de proteção individual (EPIs), oferece apoio psicológico e dá acesso a direitos sociais, como regularização de documentos.
No caso da Ambev, no primeiro semestre deste ano, o grupo anunciou, junto com a Polen, empresa de soluções em logística reversa de embalagens, um investimento de R$ 12 milhões em uma iniciativa voltada ao fortalecimento da reciclagem no Brasil. O projeto prevê a criação de cinco hubs de reciclagem em diferentes estados das regiões sul, sudeste e nordeste, e o envolvimento de mais de 800 catadores autônomos e mais de três mil cooperados em todo o país.
O primeiro centro, batizado de HIVE, já foi inaugurado em Porto Alegre e tem capacidade para armazenar até 300 toneladas de materiais recicláveis, além de oferecer estrutura para profissionalização de até 120 catadores. Além do espaço para triagem, o projeto também ajuda os profissionais a emitir documentos, também distribui EPIs e visa trazer melhores e mais seguras condições de trabalho para os catadores.
Também na ExpoCatadores, a Cirklo, uma das principais empresas de reciclagem de PET do Brasil, firmou um termo de cooperação com a ANCAT para o desenvolvimento de iniciativas que visam a promoção da economia circular no segmento de embalagens de PET. Ainda que não seja es especificamente no segmento cervejeiro, iniciativas que fortaleçam a indústria de coleta são bem-vindas ao dar mais oportunidade de crescimento e profissionalismo às cooperativas.
Com o acordo, a Cirkloe e a ANCAT se comprometem a debater, planejar e executar ações conjuntas em prol da ampliação da adesão à coleta seletiva do PET e, consequentemente, ao desenvolvimento da cadeia de reciclagem. A parceria prevê desde a compra de matéria-prima de cooperativas associadas até novos arranjos na logística de coleta e entrega de embalagens pós-consumo, com a expectativa de que, no médio e longo prazo, as ações se tornem escaláveis e garantam melhores condições de trabalho aos catadores. Segundo Irineu Bueno Barbosa Junior, CEO da Cirklo, o acordo é uma forma de ampliar o impacto social positivo inerente à cadeia da reciclagem.
Tendências
O relatório do sindicato cervejeiro também dedica espaço à agenda de consumo responsável, apontando o crescimento das cervejas sem álcool e de menor teor alcoólico. Maciel pondera que essa tendência não deve ser interpretada como resposta isolada. “É um avanço relevante, porém integrado a uma agenda mais ampla de consumo consciente, não um item isolado”.
Do ponto de vista econômico, o setor segue em expansão, com crescimento do número de cervejarias, aumento das exportações e geração de empregos ao longo de toda a cadeia. O desafio, segundo Maciel, está em sustentar essa trajetória com coerência ambiental.
“Apesar das conquistas, ainda há muitos desafios a serem vencidos e um caminho de aprendizado e ação pela frente para sustentar essa transformação”, afirmou.
Para ele, o próximo passo é “ganhar velocidade e consistência, consolidando eficiência, circularidade e governança como padrão do ecossistema, e não como exceção”.
Fonte: Um só planeta