Surto de gripe aviária nos EUA, que causou sua primeira fatalidade humana, colocou em evidência o perigo mortal de doenças zoonóticas
O macaco sedado deitado na caçamba de uma caminhonete no parque nacional de Khao Yai, na Tailândia, é um sinal involuntário, mas potencialmente crucial para descobrir a próxima pandemia.
Veterinários tailandeses estão coletando frascos de sangue do animal anestesiado, que serão analisados em busca de patógenos conhecidos e novos que possam infectar pessoas.
“Embora estejamos lidando com a vida selvagem, nosso trabalho é voltado para os seres humanos”, diz Supaporn Wacharapluesadee, uma virologista de Bangcoc, mostrando uma coleção de amostras que posteriormente serão analisadas. “É uma batalha difícil de ser vencida, mas esperamos ficar um passo à frente das doenças.”
O primata deitado é uma pequena parte da difícil busca global pela “Doença X” – um patógeno ainda desconhecido que poderá causar a próxima pandemia. Há uma grande probabilidade de que esse microrganismo seja uma zoonose, ou doença que pode ser transmitida de animais para humanos.
Os perigos letais ficaram ainda mais evidentes na semana passada com o agravamento do surto de gripe aviária nos EUA, que causou sua primeira fatalidade humana após se espalhar por rebanhos e aves domésticas em todo o país.
As doenças zoonóticas têm o potencial de causar pandemias no futuro, assim como no passado – incluindo, muito provavelmente, a covid-19. Todos os sete patógenos prioritários conhecidos identificados pela Coalizão Internacional para Inovações em Preparação para Pandemias (Cepi, na sigla em inglês) em seu site são zoonóticos, incluindo mers, ebola e febre de Lassa. Muitas doenças zoonóticas não têm vacinas ou tratamentos eficazes.
O risco de transmissão é alto em ambientes como o popular ponto turístico de Khao Yai, onde os visitantes frequentemente se aproximam de animais selvagens. Esse risco está aumentando devido a tendências como a expansão da população humana e mudanças no comportamento animal relacionadas ao aumento das temperaturas globais.
As doenças zoonóticas representam “uma ameaça significativa à segurança sanitária global”, disse Maria Van Kerkhove, diretora do departamento de preparação e prevenção de epidemias e pandemias da Organização Mundial da Saúde (OMS). Além da gripe aviária, só no ano passado houve vários surtos de grande repercussão. O mpox, vírus anteriormente conhecido como varíola dos macacos, que causa erupções cutâneas e lesões na pele, se espalhou para mais de uma dúzia de países na África. Ruanda sofreu um surto da doença viral de marburg, uma febre hemorrágica semelhante ao ebola.
O Cepi está trabalhando com a OMS para melhorar a compreensão internacional das “famílias” de microorganismos perigosos, muitas das quais são zoonóticas. Mas o Cepi alertou sobre “áreas obscuras” no conhecimento, especialmente em países biodiversos que carecem de recursos para o monitoramento de doenças e pesquisas abrangentes.
A história zoonótica é emblemática dos esforços para prevenir outra pandemia global, quase cinco anos depois que a OMS declarou a última.
As milhões de mortes e trilhões de dólares em impactos econômicos causados pela covid-19 desencadearam iniciativas internacionais para evitar uma nova pandemia. Mas uma iniciativa mediada pela OMS para chegar a um acordo sobre um tratado internacional sobre pandemias fracassou no ano passado. Um novo prazo para um acordo foi estabelecido para maio de 2025, quando o presidente Donald Trump poderá ter retomado seus esforços para cumprir seu antigo objetivo de tirar os EUA da entidade de saúde da ONU.
Em meio a essa desunião, muitos cientistas e autoridades afirmam que o mundo precisa intensificar uma resposta coordenada aos riscos. “Quanto antes pudermos detectar e agir contra essas ameaças, maiores as chances de conseguirmos conter um surto em seus estágios iniciais”, diz Richard Hatchett, executivo-chefe do Cepi.
Governos e pesquisadores estão se esforçando para preencher as lacunas no conhecimento sobre ameaças zoonóticas emergentes. Uma dessas campanhas está em andamento na Tailândia, um potencial foco de zoonoses. O país é subtropical, rico em flora e fauna e faz fronteira com outros quatro países: Mianmar, Laos, Camboja e Malásia.
Uma joint venture entre os exércitos dos EUA e da Tailândia baseada em Bangcoc está monitorando o gado nas regiões fronteiriças do país. O Walter Reed Army Institute for Research-Armed Forces Research Institute of Medical Sciences vem há décadas estudando doenças infecciosas que ameaçam as tropas – e as populações civis.
Veterinários do exército tailandês coletam amostras de humanos, suínos e pássaros, bem como de águas residuais, fezes de animais e áreas onde os animais passam tempo. Os cotonetes são analisados para detectar material genérico da gripe A, o que sugere exposição anterior (ou vacinação). Caso um patógeno seja descoberto, ele será sequenciado e os dados serão compartilhados com as autoridades de saúde pública, conforme apropriado.
O trabalho é menos uma busca por uma agulha no palheiro do que parece, afirma a tenente-coronel Erin Ball, veterinária patologista do exército dos EUA baseada em Bangcoc. As populações selecionadas para testes estão em áreas de fronteira, onde há grandes movimentações de humanos e animais, além de fazendas de “quintal”, onde pessoas vivem muito próximas de animais de criação. Testar essas espécies, particularmente aves, aves aquáticas e suínos, que são portadores conhecidos do vírus zoonótico da gripe A, pode oferecer uma vantagem vital. Ela deve permitir respostas mais precoces a surtos de doenças do que seria possível apenas testando as pessoas quando elas adoecem.
“É preciso abordar isso de uma forma inteligente, direcionada e muito deliberada”, diz Ball. “Se você estiver apenas fazendo testes em humanos, poderá estar atrasado demais. Você acaba mais em uma situação de reação – e menos preventiva.”
A relativa facilidade de sequenciamento genético possibilitada pelos avanços tecnológicos é um “divisor de águas” na caça por novos patógenos, diz Ball. O projeto de monitoramento da gripe é pequeno, mas Ball afirma que há motivos para expandi-lo – e para ampliar o limitado compartilhamento internacional de informações sobre ameaças zoonóticas emergentes.
“Precisamos nos afastar do velho método de todos se apegarem às suas descobertas ou seus dados, e trabalhar juntos”, disse ela. “Deveríamos ter aprendido com a covid, entre outras coisas.”
Os sistemas de coleta e compartilhamento de informações sobre ameaças zoonóticas continuam fragmentados. A OMS abriu um centro de inteligência sobre pandemias em Berlim em 2021. Um Conselho Global de Monitoramento e Preparação criado após a crise do ebola de 2014 a 2016 emite avaliações de ameaças, inclusive de zoonoses
Um sistema global de alerta precoce usa a expertise da OMS, da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) e da Organização Mundial de Saúde Animal para monitorar e difundir dados sobre doenças zoonóticas.
Durante a pandemia, esse sistema foi responsável por coordenar a avaliação de risco de transmissão da covid-19 em fazendas de produção de peles. Ele também monitora outras doenças, como a febre do Vale do Rift, uma infecção viral que pode ser mortal para gado e seres humanos.
Mas, apesar desses avanços, a FAO admite que o trabalho é dificultado por problemas estruturais. Alguns deles estão ligados aos dados de qualidade irregular obtidos em áreas remotas e à relutância de alguns países em compartilhar informações, seja por razões políticas ou econômicas.
A OMS publicou diretrizes para diminuir os riscos de zoonoses em mercados que comercializam animais vivos. Ela e outras organizações internacionais cobraram medidas para reduzir o contato de seres humanos com animais vivos.
Além da coleta de amostras de animais, a vigilância inclui a realização de testes de águas residuais, o que ajudou a revelar a disseminação da gripe aviária nos Estados Unidos. Os prontos-socorros dos hospitais oferecem outra oportunidade para perceber o surgimento de novas doenças agudas. Redes de voluntários de saúde comunitária, como as que existem na Tailândia, podem servir como valiosas fontes de alerta precoce.
Em um mundo de recursos limitados e crescimento das ameaças de doenças, o mais provável é que a melhor resposta envolva o direcionamento de recursos para áreas com maior probabilidade de risco.
“O ideal seria termos uma vigilância excelente em termos globais, mas isso é pouco realista”, diz Jacqueline Buchanan, analista de riscos biológicos da provedora de dados de saúde Airfinity. “Portanto, você pode tentar encontrar as espécies que oferecem maior risco e as áreas em que há mais probabilidade de que uma contaminação aconteça. São áreas onde já observamos uma incidência elevada de doenças em seres humanos – e muitas interações com animais.”
De volta ao parque na Tailândia, a virologista Supaporn reflete sobre o quanto a luta contra as zoonoses continua difícil.
Seu foco principal de pesquisa são os morcegos, mas o financiamento tem sido errático, pois os especialistas em saúde não chegam a um acordo sobre se esse tipo de vigilância é a melhor maneira de usar os recursos disponíveis. Durante suas viagens de pesquisa, ela também promove sessões de educação pública, em que alerta a população local para não comer frutas que tenham sido mordiscadas pelos mamíferos voadores.
Esse quebra-cabeças zoonótico é o principal motivo para que a ideia de que a próxima pandemia é uma questão de quando, e não de se, tenha se tornado um clichê alarmante da área da saúde mundial. Os macacos Khao Yai ainda não revelaram uma ameaça, mas um dia eles – ou algum outro animal em outro lugar podem fazê-lo. Hoje os macacos saem mais da floresta para procurar comida, o que eleva a probabilidade de uma interação de micróbios entre espécies que seja mortal.
“Macacos não têm vacinas”, diz Supaporn. “Portanto, se eles se sentem confortáveis em torno dos seres humanos, isso é perigoso para nós, e para eles.” (Tradução de Mario Zamarian e Lilian Carmona)
Fonte: Valor