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Os velhos problemas e os novos vilões das águas gaúchas

Antibióticos, anti-inflamatórios, agrotóxicos, protetores solares, lixo e falta de saneamento estão entre grandes inimigos dos rios no Rio Grande do Sul.

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Imagem Ilustrativa

A falta de saneamento continua sendo a grande vilã das bacias hidrográficas do estado. Mas agora, com a nova Lei dos Agrotóxicos sancionada pelo governador Eduardo Leite e o excesso de antibióticos, anti-inflamatórios, protetores solares, outros bandidos entram em cena

Rio Grande do Sul, ao lado do Amazonas, Mato Grosso e Pará, é um dos estados brasileiros mais ricos em água. Mesmo agraciados em volume hídrico, porém, três rios gaúchos estão entre os dez mais poluídos do país. Conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os rios do Sinos e Gravataí são, respectivamente, o quarto e o quinto com maiores índices de poluição. O Caí é o oitavo. Os três deságuam no Guaíba, de onde sai a água tratada pelo Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) para os porto-alegrenses.

Jackson Müller, biólogo e secretário de Meio Ambiente de Canela, observa que, sobre a situação das bacias hidrográficas do estado – o Rio Grande do Sul possui 25 –, há um quadro que, com o tempo, por um lado, melhorou, e, por outro, só vai por água abaixo. O lado positivo, pontua Müller, é que, atualmente, existe um envolvimento maior da sociedade nos comitês de bacias hidrográficas. O negativo é a ausência de políticas públicas efetivas referentes à água. “O estado ainda não disse a que veio em relação aos recursos hídricos, sejam os relativos aos cursos d’água superficiais ou os subterrâneos”, critica.

Fora o conflito de quantidade, em muitas regiões hidrográficas, existe um problema de qualidade muito sério de água comprometida com esgoto não tratado – em Canela, até o final do ano, a prefeitura pretende tratar mais de 60% dos esgotos. Neste cenário, aponta Muller, há também a questão, cada vez mais crescente, dos chamados “contaminantes emergentes” – anti-inflamatórios, antibióticos, protetores solares. E, especialmente, produtos de limpeza (o Brasil é o terceiro maior consumidor do mundo). “Tudo isso, e mais um pouco, vai parar nas águas que depois usamos para beber. É uma coisa muito maluca: jogamos toda essa sujeira num lugar que vai abastecer a sociedade com água potável”, indigna-se.


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O que já era ruim ficou ainda pior

A qualidade da água da Bacia do Rio Gravataí, a qual abrange os municípios de Santo Antônio da Patrulha, Taquara, Glorinha, Gravataí, Alvorada, Viamão, Cachoeirinha, Canoas e parte de Porto Alegre, está consideravelmente prejudicada, principalmente nos trechos próximos à foz. A análise consta do relatório elaborado pelo Departamento de Qualidade Ambiental (DQA) da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam). Divulgado em junho, o estudo aferiu as condições da água de sete estações de monitoramento localizadas ao longo do rio em dois períodos: de 2010 a 2013 e de 2015 a 2020.

A avaliação da série histórica de monitoramento evidenciou que não está ocorrendo melhora na qualidade das águas do Gravataí. Na verdade, houve uma piora, afirma Márcio D’Ávila Vargas, químico-chefe da Divisão de Monitoramento Ambiental (Dimam). A elevada densidade populacional da região, explica Márcio, sem o devido esgotamento sanitário, pode ter contribuído para tal cenário. “Junte-se a isso, ainda, o aumento das lavouras sobre as áreas úmidas da planície de inundação do rio e próximas aos banhados”, resume.

A Fepam também divulgou relatórios sobre a qualidade da água superficial do estado, do Rio dos Sinos e das bacias da Lagoa Mirim (na fronteira com o Uruguai) e do canal São Gonçalo (que faz ligação entre a Lagoa Mirim e a laguna dos Patos). A bacia dos Sinos, observa D’Ávila, segue a mesma tendência do Gravataí. “Ou seja, à medida que o rio passa entre as grandes cidades da região metropolitana, sua água fica ruim pelo mesmo problema: falta de saneamento.”

As indústrias, como no passado, já não são as grandes vilãs, chama atenção o químico. Segundo Márcio D’Ávila, isso se deve à fiscalização realizada pela Fepam diretamente na estação de tratamento das fábricas. Já a condição da água do canal de São Gonçalo, por sua vez, não é tão ruim. “Os poluentes que afetam esse canal (de São Gonçalo) são oriundos, principalmente, das lavouras, cujos fertilizantes utilizados acabam indo para o rio.” A respeito do relatório das águas superficiais do Rio Grande do Sul, ele acentua que o estado possui bacias bastante comprometidas. Para essas, defende o químico, o poder público deveria voltar seu olhar com mais “carinho” – em especial às bacias do Gravataí e Sinos. O saneamento básico – apenas 25% dos esgotos gaúchos são saneados – nas cidades, frisa, é importantíssimo fator para a melhora da água.

Comitê do Gravataí

Sérgio Cardoso, presidente do Comitê da Bacia do Gravataí, diz que o Gravataí, apesar de ser uma das bacias mais bem estudadas do Brasil, continua sofrendo impacto de várias atividades que deveriam ser regularizadas. As gestões municipais, ele critica, deixam a desejar na aplicabilidade das legislações vigentes. “Ou damos um basta nessa situação ou nossa crise hídrica, neste ano, será de grande perda financeira para a economia regional e, principalmente, ecológica”, alerta Cardoso. A bacia do Gravataí, salienta, é diminuta para uma área que concentra 1,3 milhão de pessoas. “É muita gente num espaço muito pequeno. Isso impacta fortemente o rio.” Os grandes problemas do Gravataí, hoje, elenca Cardoso, são dois. Em uma das margens, assinala, está a má qualidade de suas águas, ocasionada pela falta de tratamento de esgoto. E, atravancado na outra, a (pouca) quantidade de água. Outro fator preocupante é que, cada vez mais, os municípios aprovam empreendimentos imobiliários, permitindo, dessa forma, que mais gente venha morar nas regiões servidas pelo Gravataí. Ele indaga: “A água para todas essas pessoas virá de onde?”

Lei dos agrotóxicos irá piorar a situação dos rios

O ambientalista Francisco Milanez, ex-presidente da pioneira Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), ONG que, nos anos 1980, lutou pela implementação do primeiro Conselho de Recursos Hídricos do Rio Grande do Sul, atenta para o fato de, hoje, estarmos em um período muito pior do que há 50 anos. Há um equívoco, afirma Milanez, ao se pensar que os esgotos domésticos são os grandes responsáveis pela poluição das águas. O despejo de efluentes – resíduos produzidos tanto pelas indústrias quanto pelo ser humano – procedentes do ambiente doméstico urbano, com o qual muita gente se preocupa, desmistifica, na verdade, é o menos poluente. “Os (efluentes) mais perigosos são o industrial e o agrícola e, neste ponto, o Rio Grande do Sul é o quarto líder”, elucida.

O ambientalista previne que a situação irá piorar notavelmente com a recente Lei nº 15.671, sancionada pelo governo do estado, a qual alterou a Lei Estadual de Agrotóxicos (7.747/1982), liberando o uso no território gaúcho de venenos proibidos nos países nos quais são fabricados. Escrita dentro da Agapan, graças a uma histórica mobilização, a legislação de 1982 foi a primeira contra os agrotóxicos feita no Brasil. “Com a sanção da nova lei, o governador Eduardo Leite e os representantes do agronegócio alinham-se politicamente ao governo Bolsonaro e sua equipe de ‘devastação ambiental’, que têm o lucro acima da vida”, condena o ambientalista. Uma cartilha cujo tema é o pacote do veneno e a defesa dos interesses do agronegócio brasileiro. “Eis que, num simples canetaço, passaremos a beber água contaminada de agrotóxicos, cujos efeitos na saúde humana ninguém sabe”, denuncia Milanez.

Lago Guaíba

Historicamente, Porto Alegre nunca tratou o Guaíba de acordo com a sua importância. É algo que o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire já havia constatado na viagem que fez pelo Rio Grande do Sul, em 1820. Depois de apontar Porto Alegre como a segunda cidade mais suja que já viu, escreveu em seu diário: “Os habitantes só bebem água da lagoa e, continuamente, vê-se encher os cântaros no mesmo lugar em que os outros acabam de lavar as mais emporcalhadas vasilhas”.

Ao lago, que abastece 1,4 milhão de habitantes, chegam as águas dos poluídos Gravataí e Sinos, mas a principal poluição é procedente dos esgotos domésticos. Essa foi a conclusão do estudo do engenheiro ambiental Leonardo Capeleto de Andrade, sobre o contexto histórico-cultural da poluição do Guaíba. O trabalho, produzido no Programa de Pós-Graduação em Ciência do Solo da UFRGS, traçou as origens e os diferentes tipos de poluição presentes, assim como a relação entre o lago e a população das cidades beneficiadas por este. “A poluição do Guaíba tem inúmeras fontes, devido à sua grande região hidrográfica. Porém, a poluição mais evidente é a urbana, derivada de indústrias e esgotos”, enfatiza.

Se ampliado o tratamento de esgotos – Porto Alegre conta, atualmente, com 80% de capacidade e 65% de tratamento –, acredita Leonardo, haveria uma melhoria das condições do Guaíba. Todavia, isso exigiria uma cooperação regional, uma vez que a Região Metropolitana é responsável pela alteração das águas do lago. “Trata-se de uma mudança de paradigma, que, sobretudo, custaria muito dinheiro.” As indústrias, esclarece o engenheiro ambiental, também precisariam ser mais adequadamente fiscalizadas, o que exigiria a contratação de mais técnicos na Fepam e de outros órgãos ambientais.

Fonte: Extra Classe.

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