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Mudança climática, El Niño e falhas de infraestrutura por trás das enchentes massivas no sul do Brasil

Mudança climática, El Niño e falhas de infraestrutura

Entre 24 de abril e 4 de maio de 2024, mais de 420 mm de chuva caíram no estado mais ao sul do Brasil, Rio Grande do Sul, resultando em mais de 90% do estado sendo afetado por inundações.

As enchentes deslocaram mais de 80.000 pessoas, levaram a mais de 150.000 feridos. Em 29 de maio resultaram em 169 mortes, com 44 pessoas ainda desaparecidas (Governo do Estado do Rio Grande do Sul, 2024). Interromperam-se também serviços essenciais, deixando 418.200 residências sem eletricidade e mais de um milhão de unidades consumidoras sem água. Dezenas de municípios perderam os serviços de telefone e internet. Classificaram-se os municípios no Rio Grande do Sul com níveis de risco variando de ‘Médio’ a ‘Muito Alto’ para desastres geo-hidrológicos. A classificação é da plataforma AdaptaBrasil, e avaliou os municípios gravemente afetados pelas enchentes e inundações . Cidades como Porto Alegre, Eldorado do Sul, Canoas, Guaíba, Novo Hamburgo, Estrela e Encantado, por exemplo, caracterizam-se pelos mais altos graus de Perigo e Exposição.

Pesquisadores do Brasil, Reino Unido, Suécia, Países Baixos e EUA colaboraram respondendo o quanto as mudanças climáticas induzidas pelo homem alteraram a probabilidade e a intensidade das chuvas que causaram as enchentes. Eles também investigaram o papel da Oscilação Sul-El Niño (ENSO).

Clima Subtropical

As chuvas no sul do Brasil caracterizam-se por um clima subtropical. assim este clima tem características de transição entre clima tropical e temperado. Com isso alimentam-se continuamente de umidade provenientes do Oceano Atlântico e da região amazônica. Assim, não existem estações chuvosas distintas. As chuvas variam de ano para ano, dependendo de fenômenos climáticos em larga escala, como o ENSO.

Para capturar a natureza das chuvas extremas que resultaram em enchentes extremas no Rio Grande do Sul, analisou-se neste estudo duas definições de eventos. Os eventos foram: os acúmulos de chuva de 4 e 10 dias, em média, sobre o estado do Rio Grande do Sul. A janela de 4 dias captura o evento único mais severo em que chuvas recordes caíram em vários dias consecutivos. Já a janela de 10 dias (abrangendo de 26 de abril a 5 de maio, inclusive) captura a sucessão de eventos de chuvas fortes. Assim incluiu os dias muito chuvosos antes e depois do pico principal de 4 dias (figura 1).

Figura 1: Acúmulo de chuva no Rio Grande do Sul, o estado mais ao sul do Brasil, no final de abril e início de maio de 2024. O período mais longo de 10 dias (topo) representa uma sucessão de 3 eventos de chuva, o período mais curto de 4 dias (parte inferior) cobre o maior pulso de chuva de vários dias. Dados de MSWEP.

Principais conclusões

As enchentes sem precedentes de abril-maio de 2024 no Rio Grande do Sul afetaram mais de 90% do estado. Isso significa uma área equivalente ao Reino Unido, deslocando 581.638 pessoas e causando 169 mortes. Embora o Rio Grande do Sul seja uma região próspera, também encontram-se significativas áreas de pobreza e marginalização. Identificou-se a baixa renda como um fator significativo do impacto das enchentes. Os impactos atingiram severamente os assentamentos informais, aldeias indígenas e comunidades predominantemente quilombolas.

A ausência de um evento significativo de enchente extrema, até recentemente, em Porto Alegre levou à redução do investimento e manutenção do seu sistema de proteção contra inundações. Então o sistema supostamente começou a falhar com 4,5 metros de inundação, apesar de sua capacidade declarada de suportar água de até 6 metros. Isso contribuiu para os impactos significativos das enchentes, além da natureza extrema deste evento. Assim a tragédia apontou para a necessidade de avaliar objetivamente o risco e fortalecer a infraestrutura de proteção contra inundações. Com isso, torná-la resiliente a esta e a futuras enchentes, ainda mais extremas.

Ambos os eventos de chuva caracterizados acima, os eventos de 10 dias e 4 dias, foram então considerados extremamente raros no clima atual, com períodos de retorno de 100-250 anos. Para aumentar a estabilidade estatística da análise, dado os registros de dados relativamente curtos, usamos o evento de 1 em 100 anos para a análise neste estudo. Este período de retorno também é tipicamente considerado um marco para a análise de risco.

A Oscilação Sul-El Niño, um fenômeno climático natural, foi considerada importante para explicar a variabilidade na chuva observada, consistente com pesquisas anteriores. A maioria dos eventos anteriores de chuva intensa na área ocorreu durante anos de El Niño.

O Homem e suas influências

O papel do El Niño sozinho é comparativamente grande. Em observações, comparado a uma fase neutra do ENSO, o El Niño atual (dezembro-fevereiro) resultou em um aumento consistente em todos os conjuntos de dados e para ambos os eventos: por um fator de 2-3 na probabilidade e 4-8% na intensidade para o evento de 10 dias, e um fator de 2-5 na probabilidade e 3-10% na intensidade para o evento de 4 dias.

Para avaliar o papel das mudanças climáticas induzidas pelo homem, combinamos produtos baseados em observações e modelos climáticos que incluem a relação observada do ENSO e avaliamos as mudanças na probabilidade e intensidade para as chuvas fortes de 10 dias e 4 dias no Rio Grande do Sul e encontramos um aumento na probabilidade de ambos os eventos em mais de um fator de 2 e um aumento de intensidade de 6-9% devido à queima de combustíveis fósseis.

Essas conclusões são corroboradas ao observar um clima com 2ºC de aquecimento global desde os tempos pré-industriais, onde encontramos um aumento adicional na probabilidade de um fator de 1,3-2,7 e um aumento de intensidade de cerca de 4% em comparação com os dias atuais. Novamente, os resultados são semelhantes para ambas as definições de evento.

Falta aplicação da legislação

Embora existam leis de proteção ambiental no Brasil para proteger os cursos de água da construção e limitar as mudanças no uso da terra, elas não são consistentemente aplicadas ou executadas, levando à invasão de terras propensas a inundações e, portanto, aumentando a exposição de pessoas e infraestrutura aos riscos de enchentes.

Previsões e avisos das enchentes estavam disponíveis quase uma semana antes, mas o aviso pode não ter chegado a todos os que estavam em risco, e o público pode não ter compreendido a gravidade dos impactos ou sabido que ações tomar em resposta às previsões. É imperativo continuar a melhorar a comunicação de risco que leve a ações adequadas e que salvem vidas.

Traduzido e interpretado por: Denise Akemi F. Takahashi Trugillo
Para: Portal Tratamento de Água
Fonte: Iagua

 

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