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Caracterização das propriedades mecânicas do lodo de estação de tratamento de água (ETA) visando seu reuso em obras de engenharia: abordagens geotécnica e reológica integradas

Resumo

O reuso do lodo de estação de tratamento de água (ETA) em geotecnia é uma importante estratégia para reduzir os impactos ambientais decorrentes da sua disposição inadequada. Porém, a consistência do lodo de ETA, mesmo após desaguamento, limita a completa caracterização do lodo por métodos geotécnicos tradicionais. Visando o reuso de lodo de ETA em larga escala, a estabilização por meio de aditivos poderá ser uma estratégia interessante, tornando essencial o conhecimento das características mecânicas do lodo. A caracterização reológica do lodo é uma ferramenta promissora para viabilizar sua reutilização, uma vez que é adaptada a pastas e fluidos. Este artigo apresenta uma breve revisão sobre conceitos reológicos, os resultados preliminares para a caracterização do comportamento mecânico do lodo a partir de duas metodologias diferentes (mini Vane e reometria rotacional), e uma breve comparação entre os métodos. Os resultados do ensaio mini Vane e de reometria indicaram comportamento tixotrópico do lodo da ETA Cubatão para baixas taxas de cisalhamento. Adicionalmente, os ensaios de reometria indicaram comportamento pseudoplástico do lodo para baixas taxas e dilatante para altas taxas de cisalhamento. Ambos os ensaios apresentam vantagens e desvantagens, sendo a escolha da melhor abordagem dependente dos objetivos da pesquisa.

Introdução

A geração de lodo de ETA tende a crescer com o aumento da população e da demanda por água potável. Em 2017, as Nações Unidas estimaram que a população cresceria dos atuais 7,6 bilhões de indivíduos para 8,6 bilhões em 2030 e 11,2 bilhões em 2100 (UNITED UNION, 2017). No Brasil, o lodo de ETA é principalmente descartado nos rios (IBGE, 2010). No Estado de São Paulo, o lodo é enviado para as estações de tratamento de esgoto (ETE) ou disposto em aterros sanitários. O descarte de lodo de ETA nos rios causa sérios impactos ambientais (assoreamento e degradação da qualidade da água e meio aquático). O lodo disposto em aterros sanitários causa instabilidade na massa de resíduos, além de aumentar a demanda por espaço para expansão do aterro. O envio do lodo de ETA para ser tratado na ETE pode causar o entupimento das tubulações e sobrecarregar o sistema de tratamento de esgoto, que é insuficiente no Brasil e em muitos outros países, já que 80% da água residual produzida globalmente é lançada sem nenhum tratamento prévio (UN-Water, 2015; WWAP, 2012). Assim, a busca por alternativas de reuso do lodo de ETA é uma preocupação importante para a sustentabilidade ambiental.

O lodo gerado a partir da lavagem de decantadores e filtros da ETA é composto por mais de 97% de água, produtos químicos inseridos durante o processo de tratamento (cal, coagulantes de ferro, alumínio e/ou polímeros), sólidos suspensos orgânicos e inorgânicos, como areia, silte e argilas, além de algas, bactérias, vírus e matéria orgânica. Geralmente, o teor de sólidos varia entre 0,1 a 3,5% (AWWA, 1978), mas pode atingir 15-20% quando submetido a processo de desaguamento, como centrifugação, drenagem em leitos de secagem ou passagem por filtro prensa (ALBRECHT, 1972).

Mesmo após passar por processo de desaguamento na ETA (centrifugação ou leitos de secagem), o lodo ainda não é adequado para aplicações geotécnicas, apresentando propriedades mais similares a fluidos e pastas do que a solos. O lodo de ETA seco ao ar ou em estufa pode se tornar um material granular (XIA, 1994; HSIEH; RAGHU, 1997; BASIM, 1999; RODRIGUEZ et al., 2011) com boas característica geotécnicas, podendo ser usado inclusive como agregado para a construção civil (HOPPEN et al., 2005a; HOPPEN et al., 2005b), porém esse processo demanda elevada energia e grandes áreas de operação. O reuso do lodo de ETA como material substituto em cerâmica (MORITA et al., 2002; OLIVEIRA; MACHADO; HOLANDA, 2004; TEIXEIRA et al., 2011), cimento (CHEN; MA; DAI, 2010), asfalto (SILVA, 2008) e solo (RAGHU et al., 1987; WANG et al., 1992; ROQUE; CARVALHO, 2006; RODRIGUEZ et al., 2011; CASTILHOS JUNIOR; PRIM; PIMENTEL, 2012; MONTALVAN; BOSCOV, 2016) tem sido investigado, mas apenas baixas quantidades de lodo podem ser incorporadas para que não ocorra queda da qualidade do produto final. Apesar de as pesquisas relacionadas a aplicação do lodo de ETA como material geotécnico serem reduzidas, e a maior parte restrita a caracterizações geotécnicas e geo-ambientais (XIA, 1994; HSIEH; RAGHU, 1997; VANDERMEYDEN; CORNWELL, 1998; AYDILEK; EDIL; FOX, 1999; BASIM, 1999; O’KELLY, 2008; O’KELLY; QUILLE, 2009, 2010), os resultados obtidos por alguns autores (RAGHU et al., 1987; WANG et al., 1992; ROQUE; CARVALHO, 2006; RODRIGUEZ et al., 2011; CASTILHOS JUNIOR; PRIM; PIMENTEL, 2012; MONTALVAN; BOSCOV, 2016) apontam o lodo como um potencial material geotécnico.

Visando o reuso do lodo de ETA em grandes quantidades, a incorporação de aditivos (como cal ou fillers) para estabilizar o lodo pode ser uma alternativa interessante, já que tem o potencial de melhorar a trabalhabilidade do lodo e possibilitar sua utilização em aplicações geotécnicas, como aterros, preenchimento de valas, muros de solo reforçado e cobertura de aterros sanitários. O conhecimento das características mecânicas do lodo de ETA em seu estado fresco (in natura, após desaguamento) é essencial para formular um material geotécnico adequado a partir da estabilização com aditivos. Porém, a maioria dos ensaios geotécnicos foi criada para solos e não para lodos, que apresentam elevado teor de umidade. A obtenção de parâmetros de resistência é muitas vezes impraticável com os equipamentos e procedimentos geotécnicos tradicionais. Essas dificuldades mostram a importância de resgatar a abordagem de Terzaghi, que utilizou os conhecimentos obtidos a partir do estudo de materiais, como metais, madeiras e, especialmente, concreto, para entender o comportamento do solo (TERZAGHI; PECK, 1948). Seguir o desenvolvimento de outras áreas científicas e diferentes materiais parece ser uma estratégia promissora para entender o comportamento mecânico do lodo de ETA. Acredita-se que a caracterização geotécnica tradicional pode ser reforçada com métodos e equipamentos vindos da tecnologia do concreto. Portanto, a avaliação do comportamento reológico do lodo no estado fresco através da reometria rotacional pode ser uma poderosa alternativa.

As etapas para a estabilização e reuso do lodo em aplicações geotécnicas, envolvendo bombeamento, escavação, armazenamento, transporte, mistura, espalhamento, compactação etc., dependem fortemente da resistência ao cisalhamento e da viscosidade do material. O lodo de ETA ganha resistência ao longo do tempo devido a perda de água por exposição ao ar, mas provavelmente também devido ao efeito tixotrópico, que pode induzir a erros na avaliação da resistência ao cisalhamento do lodo.

Em geotecnia, a resistência ao cisalhamento de materiais com elevada umidade e granulometria fina pode ser obtida utilizando-se o mini Vane de laboratório, porém, nunca é mencionada a viscosidade do material. Em reologia, tanto a resistência ao cisalhamento quanto a viscosidade podem ser obtidas através da utilização de um reômetro rotacional. Com ambas as metodologias é possível avaliar o efeito tixotrópico de um material.

Este artigo apresenta um sumário sobre conceitos reológicos e viscoelasticidade, os resultados dos ensaios realizados com o mini Vane de laboratório para se analisar o efeito tixotrópico do lodo da ETA Cubatão, e os resultados preliminares dos ensaios de reometria rotacional para a caracterização do comportamento reológico do lodo. Ambas as metodologias foram brevemente comparadas quanto à caracterização da tixotropia e algumas diferenças, vantagens e desvantagens foram comentadas. Ressalta-se que os dados apresentados neste artigo são conteúdo de dois artigos publicados anteriormente pelos autores (TSUGAWA; PEREIRA; BOSCOV, 2017; TSUGAWA, J.K.; ROMANO, R.C. DE O.; PILEGGI, R.G; BOSCOV, M.E, 2019).

Autores: Juliana Keiko Tsugawa; Roberto Cesar de Oliveira Romano; Rafael Giuliano Pileggi e Maria Eugenia Gimenez Boscov.

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