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Judicialização da regulação dos serviços de água e de esgoto: aspectos jurídicos do modelo da tarifa com partes fixa e variável

Resumo

Desde o advento da Lei 11.445, de 2007, marco legal e institucional do setor de saneamento, cabe a um regulador independente estabelecer normas de caráter social, operacional e econômico, destacando-se nesse âmbito a definição das tarifas pagas pelos usuários dos serviços. Embora recente no setor, a regulação tem importante papel na definição e na execução de políticas do setor para a realização do objetivo maior da legislação, isto é, na promoção da universalização dos serviços, entendida como a ampliação gradual do acesso para todos, notadamente através da sua política tarifária. Entretanto, a recente fixação de interpretações legais pelo Judiciário quanto a alguns tipos de cobrança e a cristalização desses posicionamentos em sentenças dos tribunais superiores pode levar àquilo que tem-se chamado judicialização da política, nesse caso, da política tarifária, atribuída pela lei ao regulador. Neste trabalho discutem-se algumas decisões consideradas paradigmáticas para o entendimento de aspectos referentes às tarifas dos serviços de água e de esgoto.

Introdução

Desde o advento da Lei 11.445, de 2007, marco legal e institucional do setor de saneamento, cabe ao regulador estabelecer normas de caráter social, operacional e econômico, destacando-se nesse âmbito a definição das tarifas pagas pelos usuários dos serviços. Embora recente no setor, a regulação tem importante papel na viabilização de recursos financeiros para a realização do objetivo maior da legislação, isto é, na promoção da universalização dos serviços, entendida como a ampliação gradual do acesso para todos. Isso se deve notadamente às suas competências legais, pois, tendo em vista o fato de que o saneamento demanda a imobilização de um volume muito elevado de investimentos, a questão do financiamento torna-se estratégica.

A questão das fontes de recursos e dos fundamentos de seu emprego vai além do escopo deste trabalho. Cabe lembrar, contudo, que há basicamente duas fontes financeiras principais: orçamento e tarifa. Neste caso, apenas os cidadãos já incluídos nos serviços contribuem, enquanto no primeiro caso, toda a coletividade contribui, incluídos e excluídos. Por trás do uso de uma ou outra fonte, existe toda uma discussão sobre a aplicação da noção de justiça distributiva (QUEIROZ, 2016; PEIXOTO, 2013). Este trabalho aborda aspectos relativos às tarifas, na perspectiva das competências legais dos reguladores quanto à definição da política tarifária da prestação de serviços públicos de saneamento.

As tarifas podem ser entendidas do ponto de vista jurídico como contraprestação por um serviço público (ALMEIDA, 2009). Elas cumprem uma série de finalidades, desde a remuneração pela prestação dos serviços, cobrindo custos operacionais, de capital e investimentos, até funções de incentivos para os usuários e para o próprio prestador. Podem ter também funções redistributivas. Existem diferentes formas de cobrança, entre as quais destacam-se a com valor fixo e com valor variável em função do consumo. Geralmente, existem tarifas distintas para cada tipo de usuário, aplicando-se esquemas de blocos com progressividade e quase sempre a tarifa pelo serviço de esgoto corresponde a um percentual da de água (LENTINI; FERRO, 2014).

Na teoria regulatória, de origem marcadamente liberal, o mercado seria o espaço no qual a alocação de recursos se daria de forma mais eficiente, sendo a intervenção dos poderes públicos via de regra nociva. Nesse sentido, regulação serviria apenas para corrigir eventuais falhas de mercado. Há extensa discussão teórica sobre os fundamentos e consequências desse discurso (SPRONK, 2010), que não será abordada. Entretanto, cabe notar que, desde os anos 90, existe uma retomada de um processo de agencificação em todo o mundo, que sempre argumenta sobre a importância de que entes reguladores sejam independentes dos governos, de modo a separar uma abordagem com viés político que teria potencial para interferir negativamente em decisões que seriam estritamente técnicas (JORDANA; RAMIÓ, 2010). Seria possível haver controle a posteriori, inclusive jurisdicional, mas este deveria limitar-se a aspectos fáticos e procedimentais (SMITH, 1997). Assim seria a teoria.

Embora as definições acerca do regime tarifário tenham sido atribuídas pela legislação ao regulador, vários questionamentos vêm sendo sido feitos perante o Judiciário, tanto por usuários privados quanto por órgãos de defesa do consumidor. Nesse ponto, o saneamento em pouco ou nada difere de outros setores, como saúde ou meio ambiente, para a qual se tem falado de judicialização da política. Em sistemas institucionais marcados pela existência de constituições programáticas, isto é, que declaram direitos e pautam a atuação dos poderes públicos para sua realização, os juízes são frequentemente chamados a intervir diante da inação dos poderes executivo e legislativo, através dos chamados remédios constitucionais.

Contudo, alguns atores apontam para excessos. Nesse processo, os juízes acabam por arrogar-se competências que não seriam suas na origem, fazendo as vezes de executor de políticas públicas, sem que tenham competências técnicas ou legitimidade política para tal. Afinal, argumentam os críticos, enquanto membros dos demais poderes são eleitos pelo voto popular e seu desempenho – pelo menos em tese – passa pelo crivo de eleições periódicas, os juízes assumem funções de caráter vitalício pela via do concurso público, são controlados apenas por seus pares de instâncias superiores e na maioria das vezes não possuem conhecimento técnico da área objeto de sua decisão.

Nesse contexto, este estudo discute algumas experiências da Agência Reguladora dos Serviços de Água e de Esgoto de Minas Gerais (Arsae). Criada em 2009, a Arsae regula e fiscaliza os serviços prestados por empresas estaduais (Copasa e Copanor) e entidades municipais (SAAE de Passos e Itabira e Cesama de Juiz de Fora). A Arsae tem entendido que a tarifa baseada no consumo mínimo, embora seja correta do ponto de vista técnico, tende a apresentar contradições com relação aos objetivos da legislação. Por isso, vem promovendo alterações no regime tarifário dos prestadores que regula. Entretanto, existe o risco de que interpretações judiciais relacionadas com o modelo da tarifa do consumo mínimo se estendam equivocadamente ao modelo da tarifa fixa e variável.

Para além de uma análise crítica do posicionamento de setores do Judiciário, atenta-se para as implicações da judicialização de questões de regulação econômica do saneamento. Este trabalho busca, por fim, contribuir para uma melhor compreensão dos impasses que podem vir a enfrentar os reguladores, uma vez que o uso de seus conceitos e metodologias pode vir a ser limitado por decisões judiciais que valem-se de interpretações nem sempre baseadas nos princípios e lógicas da legislação setorial.

Autor: Matheus Valle de Carvalho e Oliveira.

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