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O avanço consciente no monitoramento da qualidade da água para consumo humano

A necessidade de prover água à população em quantidade e qualidade compatíveis com a necessidade humana se tornou cenário em que coexistem os avanços tecnológicos, impactos antrópicos e a desigualdade social, tópicos que se descortinam frente à concepção de sistemas avançados de tratamento de água, capazes de assimilar os contaminantes de ordem natural e os provenientes das atividades antrópicas, que entretanto, por vezes não são acessíveis às camadas de populações menos abastadas.

Num breve histórico quanto aos cuidados com a qualidade da água, remonta-se à época em que se percebeu a necessidade de processos de potabilização da água, por constatação efetuada em 1854 pelo médico inglês John Snow – comprovando empiricamente a relação entre a água consumida e os surtos de cólera – e que numa tentativa de sanear um poço de abastecimento público de água em Broad Street – Londres, se valeu do uso do cloro perante a contaminação do poço por esgotos. Desde então, o cloro tem sido empregado em processos de desinfecção, tanto em águas destinadas ao consumo humano quanto para os esgotos. As vantagens do uso do cloro vão além da minimização de doenças de veiculação hídrica, pois além de inativar micro-organismos presentes nas águas naturais em tempo relativamente curto, não é tóxico aos seres humanos, não confere sabor e odor às águas nas dosagens usualmente empregadas na desinfecção e, entre outras razões, apresenta baixo custo relativo (WHO, 2004).

No entanto, a reação do cloro residual livre com alguns compostos orgânicos naturais acarreta a formação de subprodutos indesejáveis, notadamente os subprodutos da cloração, que começaram a ganhar notoriedade a partir de estudos na década de 1970 na Holanda e nos Estados Unidos, quando os mesmos demonstraram que os trihalometanos (THMs), classe de subprodutos associada a efeitos carcinogênicos em animais, advinham da aplicação de cloro e de sua reação com a matéria orgânica presente em água para abastecimento público.

Neste âmbito percebe-se a necessidade de instrumentos de regulamentação capaz de dar direcionamentos sobre a manutenção da qualidade da água. A primeira iniciativa brasileira no sentido de regulamentar a qualidade da água para consumo humano ocorreu em 1977, com o Decreto 79.367 que instituiu a competência do Ministério da Saúde para elaborar normas e o padrão de potabilidade da água. No mesmo ano, o Ministério da Saúde publicou a Portaria MS 56/BSB, estabelecendo as Normas e o Padrão de Potabilidade de Água para Consumo Humano, válidos em todo o território nacional.

Na década de 1990 o Ministério da Saúde editou uma nova norma de padrão de potabilidade da água para consumo humano (Portaria 36GM/90), que trouxe como principais inovações a introdução dos conceitos de controle e vigilância da qualidade da água, a atualização do padrão de potabilidade e dos planos de amostragem.

Anos mais tarde, foi lançada a Portaria 1469/2000 que tinha por princípio incorporar o que havia de mais recente no conhecimento científico em termos de tratamento de água, controle e vigilância da qualidade de água para consumo humano. Revogada posteriormente pela Portaria 518/2004 e a sua mais recente versão, a Portaria 2914/2011 busca sempre a compatibilização e atendimentos dos parâmetros microbiológicos e físico-químicos da água.

A avaliação da qualidade microbiológica da água tem um papel destacado no processo, em vista do elevado número e da grande diversidade de micro-organismos patogênicos, em geral de origem fecal, que podem estar presente na água.

Em função da extrema dificuldade, quase impossibilidade, de avaliar a presença de todos os mais importantes micro-organismos na água, a técnica adotada é a de se verificar a presença de organismos indicadores. A escolha desses indicadores foi objeto de um processo histórico cuidadoso, realizado pela comunidade científica internacional, de modo que aqueles atualmente empregados reúnem determinadas características de conveniência operacional e de segurança sanitária, nesse caso significando que sua ausência na água representa a garantia da ausência de outros patogênicos. Mais recentemente, pesquisas têm revelado a limitação dos indicadores tradicionais – em especial as bactérias do grupo coliforme – como garantia da ausência de alguns patogênicos, como vírus e cistos de protozoários, mais resistentes que os próprios organismos indicadores.

Quanto à qualidade física, a estratégia principal consiste na identificação de parâmetros que representem, de forma indireta, a concentração de sólidos – em suspensão ou dissolvidos – na água. Esses parâmetros têm um duplo significado para a saúde pública. Por um lado, revelam a qualidade estética da água, cuja importância sanitária reside no entendimento de que águas com inadequado padrão estético, mesmo microbiologicamente seguras, podem conduzir os consumidores a recorrerem a fontes alternativas menos seguras. Por outro lado, águas com elevado conteúdo de sólidos comprometem a eficiência da desinfecção, ou seja, nesse caso, sólidos podem se mostrar associados à presença de micro-organismos.

Já a qualidade química é aferida pela própria identificação do componente na água, por meio de métodos laboratoriais específicos. Tais componentes químicos não devem estar presentes na água acima de certas concentrações determinadas com o auxílio de estudos epidemiológicos e toxicológicos. As concentrações limites toleráveis significam que a substância, se ingerida por um indivíduo com constituição física mediana, em certa quantidade diária, durante um determinado período de vida, adicionada à exposição esperada da mesma substância por outros meios (alimento, ar, etc.), submete esse indivíduo a um risco inaceitável de acometimento por uma enfermidade crônica resultante. Dois importantes grupos de substâncias químicas, cada qual com origens e efeitos sobre a saúde humana específicos, são as substâncias químicas inorgânicas, como os metais pesados e orgânicas, como os solventes.

Voltando ao exemplo no início deste artigo, em que se tratava dos subprodutos da cloração, na Portaria 36GM/90 ficou estabelecido que o valor máximo permitido (VMP) era 0,1 mg/L para a classe dos trihalometanos, valor este que se mantém até a atual portaria, a 2914/2011.

Passadas pouco mais de duas décadas, a implementação de métodos analíticos para quantificação dos diversos subprodutos indesejáveis da cloração não consegue abarcar órgãos responsáveis pela vigilância da qualidade da água, tampouco os sistemas responsáveis pelo seu controle. O que se percebe é uma limitação de ordem analítica, que apesar de estar em pleno avanço, envolve altos custos de material e pessoal técnico capacitado para tal.

Outra colaboração à essas limitações diz respeito a existência de poucos estudos sobre as condições específicas dos mananciais de abastecimento, bem como os reais efeitos de alguns contaminantes sobre a saúde humana. Por mais atual que seja um padrão de potabilidade, seu mero atendimento não garante a potabilidade ou segurança da água, dados os limites do controle laboratorial: limitações de sensibilidade e especificidade dos métodos analíticos, o monitoramento da água em base amostral, o não monitoramento da qualidade da água em tempo real, o monitoramento microbiológico com o recurso a indicadores de contaminação, o contínuo reconhecimento de organismos patogênicos emergentes e o escasso conhecimento sobre os riscos químicos.

Neste sentido percebe-se a importância das múltiplas barreiras de proteção sanitária nos sistemas de abastecimento de água, desde o manancial até o consumo, a adoção de boas práticas na produção e fornecimento de água e o uso de instrumentos de avaliação e gerenciamento de riscos. Para tanto a aplicação da boa engenharia se faz extremamente pertinente.

Os sistemas de abastecimento de água são obras de engenharia que, além de objetivarem assegurar o conforto às populações e prover parte da infraestrutura das cidades, visam prioritariamente superar os riscos à saúde impostos pela água. Para que os sistemas de abastecimento cumpram com eficiência a função de proteger os consumidores contra os riscos à saúde humana, é essencial um adequado e cuidadoso desenvolvimento de todas as suas fases: a concepção, o projeto, a implantação, a operação e a manutenção.

Controlar os riscos à saúde em um sistema de abastecimento inicia-se com a escolha do manancial de onde o sistema será suprido. Assim, mananciais livres de contaminantes naturais, mas, sobretudo protegidos contra a contaminação de natureza química ou biológica provocada pelas mais diversas atividades antrópicas, devem ser priorizados. O controle continua com a concepção, o projeto, a operação adequada do tratamento e se completa nas demais unidades do sistema: captação, estações elevatórias, adutoras, reservatórios e rede de distribuição. Essas unidades constituem risco potencial de comprometimento da qualidade da água e, portanto, devem ser encaradas com a visão de saúde pública.

*Leonardo Augusto dos Santos é Engenheiro Civil e mestrando em Saneamento, Meio Ambiente e Recursos Hídricos pela UFMG

Fonte: CREA-MG

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