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Ainda a Sustentabilidade… Agora no tratamento de água

Eng. Eduardo Pacheco

Na última edição de “Meio Filtrante” (nº 41), escrevi sobre a falta de sustentabilidade dos processos biológicos de tratamento de esgotos sanitários e a repercussão, como já era de se esperar, foi enorme. O fato é que as pessoas começam a se dar conta que fazemos muitas coisas no nosso dia-a-dia de forma mecânica, sem pensar, e quando paramos para refletir percebemos que há muito a criar, corrigir e evoluir. Vamos agora falar da falta de sustentabilidade nos sistemas de tratamento de água potável para abastecimento público.

Antes de mais nada, não é minha intenção crucificar os profissionais da área (entre os quais me incluo) pelo que fazemos hoje. O que me incomoda é a letargia geral do setor para promover mudanças. E não é só aqui no Brasil. A maior parte do mundo ainda age assim, inclusive nos países desenvolvidos.

Pois bem, vamos iniciar dizendo que “sustentabilidade” não está relacionada apenas com o aquecimento global e à geração de mais ou menos CO2. É claro que esta é a questão do momento, pois não restam mais dúvidas que o efeito estufa resultante da queima de hidrocarbonetos vai nos prejudicar profundamente e muito antes do que imaginavam os cientistas que já nos alertavam para isso nas décadas de 60 e 70. A sustentabilidade está diretamente relacionada à longevidade e à capacidade de executar uma atividade pelo maior período de tempo possível sem que haja comprometimento de recursos naturais, da saúde pública e da qualidade de vida no planeta.

Como é, então, o processo de captação e tratamento de água hoje? As fontes de água bruta (água a ser tratada) são rios, represas, poços profundos (aquíferos subterrâneos) e também água do mar. Os sistemas de tratamento são projetados, construídos e operados respeitando as características particulares de cada uma dessas fontes, de forma a produzir água no padrão potável, padrão esse que é praticamente o mesmo em todo o mundo. Ou seja, o tipo de tratamento será bem diferente, por exemplo, para a água de um aquífero subterrâneo que tem excesso de ferro e manganês em relação às águas dos rios da região amazônica, que apresentam elevada concentração de matéria orgânica dissolvida.

A primeira evidência de falta de sustentabilidade do processo é o destino que damos ao rejeito dos sistemas de tratamento. Ou seja, nas estações que têm decantadores e filtros de areia, por exemplo, aonde são lançados os lodos sedimentados nos decantadores e o rejeito oriundo da contra-lavagem dos filtros? Na quase totalidade dos casos, são lançados de volta à fonte, só que agora adicionados dos produtos químicos utilizados para coagulação e floculação. Em geral, utilizamos sulfato de alumínio, sulfato férrico, cloreto férrico e cloreto de poli-alumínio (PAC). Também utilizamos produtos para acerto de pH e alcalinidade, que são a soda (hidróxido de sódio) e a cal. Ainda há o carvão ativado em pó, utilizado em diversas estações que têm problemas com excesso de matéria orgânica dissolvida. Esse produto é lançado diretamente na entrada dos decantadores e vai se juntar ao lodo. Ou seja, não estamos apenas devolvendo a “sujeira” retirada da água, mas também os produtos químicos que utilizamos no processo. Além disso, eles retornam numa condição muito mais concentrada e representam aquilo que denominamos como “carga de choque”.

São raríssimas as estações que recolhem esses lodos e os desidratam em filtros-prensa ou centrífugas para descarte como resíduo sólido em aterros sanitários ou para reciclagem.

Outro desequilíbrio importante afeta mais fortemente as áreas de maior adensamento urbano. Vejamos o exemplo da “Região Metropolitana de São Paulo” (RMSP), que reúne a cidade de São Paulo e mais 38 municípios vizinhos. São quase 20 milhões de habitantes em 8.000 Km² e boa parte da água consumida por toda essa gente vem de bacias hidrográficas distantes e que não são necessariamente as mesmas que vão receber os esgotos (calculados em aproximadamente 80% do volume de água abastecido) e os lodos resultantes do tratamento citados anteriormente. Ou seja, vamos buscar água de uma bacia e lançamos os esgotos em outra bem distante. Se estivéssemos falando em pequenas vazões, não teríamos impactos significativos, mas estamos falando em cerca de 200 milhões de litros por hora!! Os países desenvolvidos da Europa como França e Alemanha, por exemplo, já se deram conta há muito tempo que não há vantagem nenhuma em ter concentrações populacionais como essa. Como gerenciar tantas alterações das formações hidrográficas naturais? Ou seja, como manter a sustentabilidade do abastecimento de água e do lançamento de esgotos, mesmo que fossem 100% tratados adequadamente?

As transposições de grandes volumes de bacias hidrográficas podem causar danos de diversas ordens e o mais traumático deles são as enchentes de grandes proporções. Ou seja, a culpa das terríveis enchentes das grandes cidades não é da chuva, mas da falta de planejamento urbano que faz com que os rios não tenham capacidade de receber uma vazão extra. Além de alterarmos os fluxos naturais das bacias, impermeabilizamos o solo (asfalto, concreto, construções) e adicionamos os esgotos.

Essa mesma falta de planejamento faz com que lancemos esgotos (tratados ou não) nos mananciais que servirão de fonte de abastecimento de uma outra cidade à jusante. Vejam que isso não era problema antes da década de 60, quando 70% da população brasileira habitava áreas rurais e 30% ocupava áreas urbanas. Hoje, esta proporção é exatamente inversa. Ou seja, se lançarmos o esgoto bruto de uma população de 100 mil habitantes num trecho do Rio Amazonas que tem 10 km de largura, praticamente não teremos problema algum. Mas, quando lançamos os esgotos da população da RMSP no pobre e estreito Rio Tietê, aí sim, a coisa fica feia. E é o mesmo Rio Tietê que vai abastecer diversas cidades do interior paulista.

Para exemplificar o problema de lançar esgotos mesmo que tratados em mananciais, vamos falar de um grupo de compostos químicos que perturbam o sistema endócrino de seres humanos, animais e peixes, e vem se tornando uma preocupação geral. São os chamados “Disruptores Endócrinos” (em inglês: Endocrine Disruptors – ED)

De acordo com a Profa. Dra. Eleonilce Gerolin da UNICAMP, que fez uma magnífica tese de doutorado analisando os efeitos dos “ED” nas cidades paulistas de Campinas e Sumaré, eles podem ser classificados em quatro tipos:

1) Os que ocorrem normalmente no organismo (estriol, estrona, estradiol);

2) Os que são sintetizados para serem ingeridos como medicamento (17(alfa) etinilestradiol e diazepan);

3) Os “xenoestrogênios” ou externos, gerados pelas modernas indústrias químicas e presentes em produtos de uso doméstico (nonilfenol, tributilestanho);

4) Os fitoestrogênios (genesteína, daidzeína) presentes em plantas alimentícias, que podem até promover benefícios à saúde.

Para resumir o problema destas substâncias em nossas vidas, é que nossas estações de tratamento (que são do tipo convencional), tanto de efluentes quanto de água, não têm capacidade para eliminá-los totalmente. Ou seja, num dado momento eles estarão de volta nos nossos organismos e, mesmo em baixíssimas concentrações, podem nos causar males irreversíveis.

Este é apenas um dos grupos químicos preocupantes que estão alcançando nossos mananciais e para os quais não estamos devidamente preparados.

E como resolver tudo isso? No curto prazo, as soluções possíveis são todas paliativas. Resta-nos apenas atentar para os “efeitos”, deixando as “causas” para depois. Ou seja, a ação imediata é o aprimoramento das tecnologias de tratamento tanto da água de abastecimento quanto do esgoto que devolvemos aos mananciais. Também é urgente a questão da destinação adequada dos lodos e a palavra-chave para isso é “reciclagem”.

No médio e longo prazo, só o “planejamento” pode nos salvar e, como as grandes cidades já estão instaladas, tudo fica mais complexo e caro. Pagamos hoje o preço pela falta de planejamento do passado e quanto mais tempo levarmos para começar o “retrofitting” (reabilitação, reforma) geral, pior ficará.

A missão das pessoas esclarecidas é justamente exigir esse planejamento, já que os governos costumam ter uma visão de futuro proporcional aos seus mandatos e, se depender de suas iniciativas, não haverá sustentabilidade. Teremos eleições importantes em 2010 e precisamos exigir daqueles que almejam o poder, o planejamento de médio e longo prazo para questões como essas. A nossa passividade e silêncio nos faz cúmplices de tudo o que está errado.

Eng. Eduardo Pacheco

Diretor Técnico do Portal www.tratamentodeagua.com.br e Technical Manager da Divisão “IWM – Integrated Water Management” da NALCO para América Latina

http://www.meiofiltrante.com.br

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