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A silenciosa revolução para restaurar os nossos ecossistemas aquáticos

A SILENCIOSA REVOLUÇÃO PARA RESTAURAR OS NOSSOS ECOSSISTEMAS AQUÁTICOS

Bruce Babbitt, Secretário do Interior

Eu gostaria de refletir sobre a maneira como tratamos as paisagens aquáticas: os rios, os lagos, e os pantanais que conectam e alimentam as bacias hidrográficas que habitamos. Quem acionou o alarme foi a Nature Conservancy (uma entidade internacional, não lucrativa, dedicada ao meio ambiente), avisando que os nossos ecossistemas de água doce e pântanos estão entre os mais ameaçados do mundo. Por exemplo, uma de suas recentes publicações apresenta a alarmante notícia de que aproximadamente um terço de todos os peixes, dois terços de todos os camarões-d’água doce, e três quartos dos mexilhões bivalves de água doce, na América, estão ameaçados de extinção.

Após cinco anos de experiência direta com as bacias hidrográficas em todo o país, compartilho essa noção de urgência. Não podemos continuar com esforços esparsos. Em vez disso, precisamos nos dedicar à tarefa de recuperar bacias hidrográficas inteiras, usando novos métodos, criando parcerias, e clamando pela participação renovada do público. Precisamos também reparar e reverter os danos à ecologia que vêm se acumulando com o passar do tempo.

Para ilustrar tanto a urgência da nossa tarefa quanto a possibilidade de sucesso, eu gostaria de discutir vários esforços de recuperação em grande escala que iniciamos neste governo, em seguida relacioná-los aos esforços que se encontram em andamento em muitos níveis em todo o país. Acredito que a recuperação das bacias hidrográficas é uma idéia nova e poderosa que tem a capacidade de transformar a nossa relação com as terras e águas que nos mantêm.

Este governo iniciou o trabalho no sul da Flórida porque a região apresentava o mais visível e mais urgente entre muitos desastres iminentes em bacias hidrográficas. O Parque Nacional de Everglades [Everglades National Park] estava na UTI e precisando urgentemente de atenção. O sistema de tratamento intensivo, que consistia de poucos e pequenos projetos que se destinavam a bombear mais água por meio das ressecadas artérias hidrológicas do parque, estava mantendo o paciente vivo, precariamente. A cada ano que passava, os monitores naturais da saúde do paciente – grandes revoadas de aves pernaltas, garças-reais, anhingas, cegonhas, e garças – vinham começando a se transformar em linhas retas no osciloscópio.

Os Everglades foram, simplesmente, a vítima de uma longa campanha de “drenagem dos pântanos” – pântanos que, no passado, derramavam suas águas superabundantes nos Everglades e na Baía da Flórida. A drenagem dos pântanos era o equivalente, em termos de engenharia, à prática medieval de tratar os pacientes sangrando-os. E ao cortar e sangrar essas artérias hidrológicas, eles estavam acabando com a vida dos Everglades, propriamente dita.

Nossa estratégia, para recuperar o ecossistema dos Everglades, reconectando essas artérias hidrológicas, começou pela união de vários órgãos do governo federal para a implementação de um plano comum de recuperação. A competente organização que compartilha conosco a liderança neste trabalho é o Corpo de Engenheiros, que, ironicamente, foi um pioneiro nos primeiros esforços para drenar essas mesmas paisagens do sul da Flórida. Logo descobrimos, no entanto, que para uma recuperação eficaz da bacia hidrográfica, precisávamos de parceiros em nível estadual e local. Em 1994, o legislativo da Flórida, por insistência do governador Chiles, aprovou a Lei Everglades Para Sempre [Everglades Forever Act] por meio da qual foi criado um fundo de um milhão de dólares para limpar os resíduos agrícolas contaminados que estavam causando uma boa parte do problema. O compromisso da Flórida, que teve amplo apoio da população, serviu de estímulo para o Congresso, e a partir daí, foram criadas leis para o maior plano de recuperação de bacias hidrográficas de que se tem notícia.

Ainda há muito o que fazer, no nosso esforço de recuperação no sul da Flórida, mas já aprendemos algumas normas importantes, no que diz respeito à recuperação de bacias hidrográficas, que devem ser observadas em todo o país:

red Primeiro, a lição mais básica está relacionada à natureza da água. A água não fica parada por muito tempo. Ela está sempre em movimento, do céu para a terra, ao longo da terra e através dela, até o mar e de volta para o céu, em um ciclo incessante. E isso significa que não se pode recuperar, de maneira eficiente, somente uma parte de um rio para reparar qualquer parte, é necessário levar em consideração a bacia hidrográfica como um todo.

red Segundo, a única maneira pela qual se pode recuperar uma bacia hidrográfica é a criação de parcerias – entre governos, entre os grandes e pequenos proprietários de terras, entre todas as partes interessadas na bacia hidrográfica. Assim como todas as partes de uma bacia hidrográfica estão relacionadas, todos os residentes dessa bacia também devem participar do esforço para a recuperação.

red Terceiro, a recuperação de uma bacia hidrográfica precisa ser um processo visível que prenda e mantenha a atenção do público. Todas as comunidades valorizam a sua herança cultural nativa e acreditam no seu futuro. E elas estão prontas para apoiar ambiciosos planos de recuperação.

No entanto, por mais ambiciosos que os esforços para a recuperação de bacias hidrográficas tenham sido até o momento, por mais que eles tenham melhorado a qualidade de vida, eles não são nada quando comparados com o que poderão ser nos próximos 20 anos.

Parcerias de grande escala, em nível federal, estadual e local, demonstram o potencial da recuperação das bacias hidrográficas na sua plenitude, e especialmente o poder que esse tipo de iniciativa tem de estimular a imaginação do público. Essa iniciativa pode transformar inimigos declarados em aliados. Ela pode levantar fundos com a maior facilidade. Ela pode inverter tendências prejudiciais com velocidade e extensão surpreendentes.

Veja, por exemplo, o caso do Vale Central da Califórnia [Central Valley of California], uma bacia de complexos sistemas hidrográficos que, na Costa Leste, se estenderia de Massachusetts até a Carolina do Sul. A grande campanha nessa área foi irrigar o deserto em vez de “drenar os pântanos.” E à medida em que aquele vale deserto florescia em grandes áreas agrícolas irrigadas, os rios iam minguando e secando.

à medida que rios como o San Joaquin desapareceram, alimentando canais de irrigação, os grandes cardumes de salmões que arribavam para as nascentes e chegavam a alcançar os contrafortes das Montanhas da Serra Nevada [Sierra Nevada Mountains] também desapareceram. A água salgada começou a invadir o delta. Despejos agrícolas contendo soluções de sulfato mataram e desfiguraram milhares de pássaros migratórios na área de preservação ambiental de Kesterson. As disputas entre os californianos, por causa da água, continuaram durante meio século não havia solução para os conflitos que dividiam os usuários urbanos da água no sul, os fazendeiros no Vale Central, e os defensores dos pesqueiros no norte.

A história da recuperação da bacia hidrográfica na Califórnia se parece muito com a da Flórida. Primeiro, o governo pôs ordem na casa, em nível federal. Em seguida, nós nos unimos aos órgãos do governo estadual, distritos de irrigação, fazendeiros, ambientalistas, e pescadores, para negociar uma estrutura para a recuperação – conhecida como o Acordo do Delta da Baía [Bay Delta Accord]. Coordenando os nossos esforços, o legislativo em Sacramento submeteu à votação uma proposta para a emissão de bônus de recuperação no valor de um bilhão de dólares, em 1996. Em um ano de austeridade, orçamentos rigorosamente controlados, e política fiscal conservativa, a proposta passou com facilidade. Com apoio público dessa ordem, recorremos ao Congresso, que, em 1997, proporcionou uma verba no mesmo valor. O resultado foi, mais uma vez, um enorme programa de restauração para trazer de volta à vida os rios e os pântanos da Califórnia, disponibilizando água para restaurar e manter os fluxos dos riachos, reabastecer as áreas de preservação de vida selvagem, remover barragens para que os rios pudessem fluir livremente em suas planícies naturais de alagação, e selecionar os canais de irrigação com o objetivo de proteger os peixes migratório. Isso tudo parece uma tarefa política complicada e freqüentemente confusa. Mas ela se resume a valores simples e milenares. Trinta e seis séculos atrás, o imperador Yu, da China disse: “Para proteger os seus rios, proteja as suas montanhas.” Ainda hoje isso é particularmente verdadeiro. Para restaurar nossas espécies aquáticas, vamos olhar além da margem da água, vamos olhar a terra ao seu redor, pois os dois elementos são inseparáveis. O que acontece na terra inevitavelmente se reflete nos nossos riachos e rios:

red Na região do Noroeste do Pacífico: Para recuperar a população de trutas, e dos salmões do tipo coho, chinook e sockeye, dirigimos a nossa atenção além da margem dos rios e criamos grandes áreas de proteção, interligadas, de cobertura florestal, ao longo das margens dos riachos e afluentes, totalizando mais de cinco e meio milhões de hectares.

red Na Baía de Chesapeake: Para acabar com a mortandade de peixes devido a uma bactéria chamada pfiesteria, estamos oferecendo incentivos aos fazendeiros da região, para que eles recomponham, nos limites das suas terras, áreas de proteção com árvores e vegetação nativa, com o intuito de absorver os fertilizantes e os dejetos dos animais antes que eles cheguem aos estuários dos rios.

red Na Sierra, nas Montanhas Rochosas, e na Apaláchia: Para repor a população das espécies aquáticas nativas em meio milhão de quilômetros de riachos, fazemos um esforço conjunto, unindo verbas federais e peritos no manejo da terra a projetos de âmbito local, na esfera das empresas privadas e entidades sem fins lucrativos, para restaurar as montanhas danificadas que escorrem para esses cursos d’água.

red Nas terras usadas para pastagem no Oeste: Para trazer de volta a rara truta nativa, e para proteger o papa-moscas, espécie de pássaro ameaçado de extinção, estabelecemos parcerias com cooperativas de fazendeiros para modificar o sistema de rodízio do gado nos pastos, construir cercas divisórias nos cursos d’água, e replantar salgueiros e álamos, que no momento estão se perdendo ao sol.

O movimento de restauração das bacias hidrográficas é uma força poderosa, que se move em muitas direções, algumas delas inesperadas. Um exemplo é o debate nacional que está surgindo sobre a conveniência de se demolir algumas barragens existentes como parte dos esforços de restauração das bacias hidrográficas.

Até muito pouco tempo atrás não havia muita preocupação com os efeitos das barragens sobre o nosso ambiente natural. Hoje, analisando, em retrospectiva, as décadas de modificações nos rios, causadas pela construção de uma barragem de cada vez, estamos nos conscientizando dos efeitos cumulativos: O Rio Colorado já não vai mais até o mar. O seu grande delta, sobre o qual Aldo Leopold escreveu ensaios tão comoventes, é, atualmente, uma vasta planície seca e salgada. Celilo Falls (as cachoeiras de Celilo), a mais tradicional área cerimonial e de pesca dos índios, desapareceu sob as plácidas represas do Rio Columbia. Na Sierra Nevada, o rio Truckee foi represado para que o nível do Lago Tahoe (Lake Tahoe) subisse mais 1,8 metro. Até mesmo no Parque Nacional de Yosemite, a sagrada “Catedral” de John Muir, eles represaram o Rio Merced na altura do Mirror Lake (Lago do Espelho), para que os visitantes pudessem ver melhor o “Half Dome” refletido.

Só agora percebemos os custos sistêmicos da construção de mais de 75.000 represas neste país, somente neste século. Pagamos esses custos de muitas formas: A destruição do caminho do salmão rio acima na Nova Inglaterra e no Oeste, assim como dos sável e do arenque no Rio Susquehanna o desaparecimento dos pântanos que sustentam os pássaros migratórios no Mississipi Flyway a erosão das praias no Grand Canyon e a perda dos locais para construção de ninhos e pontos de encontro dos grous (Grus canadensis) e aves de água doce ao longo do Rio Platte, em Nebraska.

Por esses motivos convém pensar nas barragens como se elas fossem um livro razão, que apresenta tanto os benefícios quanto os custos para o meio ambiente. Como parte dos esforços para a restauração de bacias hidrográficas, sempre convém questionar se uma determinada barragem pode ser operada de uma forma que não cause tantos danos ao rio.

O Grand Canyon é um dos lugares onde fizemos essa pergunta e a resposta foi afirmativa. No ano passado, o Bureau of Reclamation [Departamento de Recuperação] abriu as comportas e enviou uma grande quantidade de água, uma inundação artificial, Rio Colorado abaixo. A idéia ao fazer isso, era imitar a inundação natural, que ocorria na primavera, quando não havia barragem no rio, de modo a agitar os sedimentos e reconstruir os habitats praianos erodidos, a jusante do Grand Canyon.

E em certas ocasiões, quando examinamos cuidadosamente o livro razão dos custos e benefícios, podemos chegar à conclusão de que uma represa simplesmente deve ser removida.

Em 1992, o Congresso autorizou um estudo para a remoção de duas pequenas represas, que haviam sido construídas 70 anos antes, no estuário do rio Elwha. Essas represas impediam cerca de 300.000 salmões de percorrer uma distância de 112 quilômetros rio acima para procriar, no coração do Olympic National Park [Parque Nacional Olympic]. O Serviço de Parques, depois de estudar cuidadosamente a questão, concluiu que abrir mão de uma pequena quantidade de energia em uma área onde, no momento, há excesso de oferta de energia elétrica, seria um pequeno preço a se pagar para a restauração de um dos nossos grandes parques nacionais à perfeição, onde os riachos estão, novamente, cheios de salmões, que alimentam e sustentam ursos, águias de cabeça branca, aves de rapina, e naturalmente, o espírito humano.

Em última análise, no entanto, a restauração dos nossos cursos d’água e bacias hidrográficas depende das comunidades de pessoas que vivem e trabalham nas bacias hidrográficas em questão. E há cada vez mais exemplos de pessoas que se reúnem, grupos de partes interessadas como fazendeiros, proprietários rurais, empresas de energia, indústrias locais, incorporadoras e ambientalistas, para dar início ao processo de olhar para os seus rios, com uma nova percepção, uma nova motivação, e acompanhar as águas no seu caminho pelos afluentes e através da paisagem, e pensar: Como podemos voltar a ter uma bacia hidrográfica melhor? O que podemos fazer para melhorá-la?

O presidente Clinton, no seu discurso do Estado da União [State of the Union], anunciou sua intenção de determinar que 10 cursos d’água nos Estados Unidos fossem considerados Rios de Preservação da Herança Nacional [National Heritage Rivers]. A finalidade dessa iniciativa é reconhecer os esforços extraordinários das comunidades locais que se reúnem para recuperar a herança dos seus rios, restaurando praias, limpando rios, protegendo as zonas ribeirinhas, repovoando pesqueiros, e trabalhando no manejo das bacias hidrográficas para a manutenção de águas saudáveis.

Por meio da sua iniciativa dos Rios de Preservação da Herança Nacional, o presidente Clinton está nos lembrando que as comunidades locais e os indivíduos são a força que faz da restauração das bacias hidrográficas uma realidade. Mais uma vez, os americanos estão se conscientizando da conexão entre as suas comunidades e o meio ambiente. Mais uma vez estamos nos reunindo à margem dos rios, procurando renovar a terra e o espírito. E ao fazê-lo estamos descobrindo que temos o poder de estabelecer uma nova e mais respeitosa relação com a criação de Deus.

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