Criticadas nas últimas décadas, construções de novas barragens e formação de lagos podem mitigar problemas no abastecimento de água em períodos de seca e conter enchentes
Os sucessivos episódios de seca e chuvas extremas começam a levar o Brasil a repensar a construção de novas usinas hidrelétricas. A necessidade de armazenar água para os períodos de estiagem e administrar a vazão de rios para evitar enchentes catastróficas, como a deste ano no Rio Grande do Sul, têm levado especialistas a defender a construção de novas barragens de reservatório.
Dez anos atrás, a formação de lagos para construção de hidrelétricas foi demonizada, devido aos impactos sociais e na biodiversidade. Agora, a discussão começa a ser retomada sob outro prisma, o dos impactos causados pelas mudanças climáticas na oferta de água. Dados do Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélites (Lapis) mostram que o Brasil enfrentou ondas de calor em todos os meses deste ano. Foram nove delas de janeiro a setembro e, em todo o período, a temperatura média ficou acima da registrada entre 1991 e 2020.
Com o rápido crescimento na produção de energia eólica e solar, não se discute prioritariamente apenas a produção de energia elétrica, mas os múltiplos usos da água dos reservatórios, que podem servir ao abastecimento humano e animal, irrigação, controle de enchentes e até turismo, como ocorre hoje no lago de Furnas, em Minas Gerais.
Vamos ter de armazenar mais água. Fizemos muita crítica à construção de barragens pelo impacto no uso do solo. Agora, temos que rediscutir o impacto no uso da água – diz Marcos Freitas, coordenador do Instituto Virtual Internacional de Mudanças Globais (Ivig) da Coppe/UFRJ.
Fazer barragens custa caro. A construção associada à hidrelétrica ajudaria a financiar a formação de reservatórios, ainda que não seja como único investidor, uma vez que serviria a usos múltiplos.
Freitas, que abordou o tema no relatório do IPCC de 2008, devido às mudanças climáticas, explica que a opção hoje seria construir hidrelétricas de porte médio no Sudeste e no Sul do país.
Segundo ele, barramentos a montante de Porto Alegre, com um lago equivalente a 300 km², teria evitado o alagamento brutal do território do Rio Grande do Sul no ano passado, pois represaria as águas e reduziria a força no trajeto.
As terras alagáveis seriam, em maior parte, áreas hoje ocupadas pelo agronegócio, que teria de dar sua contribuição.
Com cuidado ambiental, a área de lago ocuparia hoje espaço de produção agropecuária, que tem valor econômico, mas que desvaloriza tanto com água de mais quanto de menos – pondera o professor.
A agricultura, a pecuária e a produção florestal respondem juntas por 97,4% da água consumida no país. Cerca de dois terços do consumo de água doce no país é destinado à irrigação de lavouras.
As hidrelétricas não consomem a água que aciona as turbinas. Depois de gerar energia, a água fica disponível para vários outros usos.
É essencial guardar água. Com a mudança do clima tudo passou a ser mais aleatório. Não podemos mais basear o futuro no passado, pois os modelos de previsão estão difíceis de acertar — afirma Ricardo Baitelo, do Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Iema).
Doutor em planejamento energético pela Escola Politécnica da USP, Baitelo essalta que a variação climática dificulta o planejamento do setor elétrico.
Para ele, as hidrelétricas podem inverter seu papel. O Iema propõe uma mudança no papel estratégico. Além de contribuir na oferta de energia, elas podem atuar no sistema para armazenamento de energia para atender a demanda de potência em momentos críticos, equacionando a variação das fontes solar e eólica.
Para o instituto, a UHE de Sobradinho, na Bahia, por sua localização estratégica permitiria parte do seu uso para a prestação de serviços de flexibilidade.
Apesar da relevante produção de energias renováveis, o Brasil tem hoje a energia mais cara do mundo.
Hoje temos uma bagunça (precificação). Falta uma mudança regulatória para avaliar o custo da energia e a remuneração não só por geração, mas por potência fornecida nos períodos críticos – diz ele.
A produção de energia hidrelétrica pode ser otimizada e, em algumas usinas, reservadas apenas para os horários de pico, quando eólicas e solares arrefecem. O mesmo pode ser avaliado em relação aos períodos do ano.
No caso das eólicas, os meses de maior produção, devido aos ventos, vai de maio a novembro. Ou seja, a produção recua justamente quando começa o período de chuvas nos principais reservatórios do Sudeste.
Há ainda modelos de hidrelétricas pouco discutidos, como as usinas reversíveis, projetadas para armazenar energia nos horários de baixa demanda e liberá-la nos picos de consumo. Elas funcionam com dois reservatórios menores e a água é bombeada entre eles de acordo com o funcionamento das turbinas – um modelo de reúso.
O Plano Nacional de Energia (PNE) 2050 informa que apenas na divisa de São Paulo com Minas Gerais, cálculos indicam potência significativa com três horas de funcionamento por dia.
Níveis baixos em reservatórios do Sudeste
A redução do nível de reservatórios do Sudeste registrada no ano passado só não preocupa mais devido à oferta de novas fontes de energia elétrica. Sozinha, a Bacia do Rio Paraná responde por 50% da capacidade de geração de energia elétrica brasileira.
Em 2024, vários reservatórios de hidrelétricas no Sudeste ficaram com baixo volume de água. Furnas, o principal da sub-Bacia do Rio Grande, por exemplo, chegou a 35% de sua capacidade. Na Bacia do Paranaíba, que junto com o Rio Grande é um dos formadores do Rio Paraná, todos os reservatórios ficaram abaixo de 50% da capacidade.
O que ajudou a “economizar” a água dos reservatórios foi justamente a geração de energia eólica e solar, dizem os especialistas. A situação, portanto, não seria tão grave quanto em crises hídricas anteriores.
O problema, reafirma a ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico), é o fornecimento no horário de pico. A energia solar, por exemplo, para de ser gerada às 18 horas, horário em que começa o pico de consumo nas grandes cidades. Por isso, a recente recomendação pela volta do horário de verão
Em nota ao GLOBO, a ONS informou que a capacidade armazenada de geração de energia no subsistema Sudeste/Centro Oeste ficou em 46% no fim de setembro, patamar ainda superior aos últimos períodos de escassez hídrica – 33% em 2020 e 17% em 2021. O nível mais crítico foi de 2021, o pior em 90 anos.
O problema hoje é a dificuldade de planejamento futuro. A variação climática dificulta a previsibilidade. Olhar o passado não vale mais – diz Baitelo.
Segundo dados da Agência Internacional de Energia de 2020, no mundo, a participação da energia hidrelétrica na geração total é de 17% e há um potencial econômico inexplorado de 47%. No Brasil, embora essa participação alcance 66%, o potencial ainda inexplorado é calculado em 48%.
O Sistema Interligado Nacional (SIN) reúne hoje 147 usinas hidrelétricas. Dados do Plano Nacional de Energia (PNE) – 2030 indicavam que cerca de apenas 30% do potencial hidrelétrico nacional já foi explorado, percentual bem menor do que na maioria dos países industrializados. Do potencial a ser explorado, mais da metade (57%) ainda estava fora da Amazônia.
O Centro-Oeste, por exemplo, mantinha 46% de seu potencial inexplorado, patamar semelhante ao da região Norte, onde está a Amazônia. O Sul e Sudeste têm, cada uma das regiões, 53% de seu potencial em uso. Os mais de 47% restantes, embora já inventariados, ainda não são aproveitados. Se consideradas apenas as usinas em operação, em construção ou concedidas, o Nordeste é que detém a maior parcela de aproveitamento, com 65%.
Fonte: Um só planeta