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Geração de hidrogênio a partir de fontes limpas mobiliza cientistas

Projeto multi-institucional sediado na Unicamp busca soluções para a transição energética sustentável

Célula eletroquímica de dois compartimentos usada por pesquisadores no Instituto de Química, com o cátodo à esquerda e o ânodo à direita: grupo do Cine estuda a obtenção de hidrogênio verde a partir da eletrólise da água

 

Um relatório recente da Administração Nacional Oceânica e Atmosférica (Noaa, na sigla em inglês), uma agência dos Estados Unidos, mostrou uma realidade assustadora: 2023 registrou o agosto mais quente dos últimos 174 anos, com temperaturas 1,25°C acima da média registrada no século passado. No Brasil, dados do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) informam que, desde 1961, não se via um inverno tão quente quanto o deste ano, quando houve mais de cinquenta dias de calor intenso em quatro das cinco regiões do país. É inegável que o planeta passa por uma grave crise climática e que, se quiser sobreviver, a humanidade precisará se unir para atacar os principais responsáveis por esse quadro.

“A gente está vivendo uma grande transformação, e o custo de não adequação para os próximos anos vai ser tão grande que não acredito que órgãos internacionais de regulamentação vão permitir que isso aconteça”, comenta o químico Ernesto Chaves Pereira. Professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Pereira coordena, em conjunto com a professora Lúcia Helena Mascaro Sales, da mesma universidade, as pesquisas sobre hidrogênio verde (H2V) no Centro de Inovação em Novas Energias (Cine) da Unicamp, um projeto multi- -institucional sediado na Universidade. O projeto conta com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e da Shell e busca soluções para uma transição energética sustentável. “O grande problema é a emissão de gás carbônico. As mudanças climáticas estão intimamente associadas a questões relativas ao uso de energia, e o vetor energético que move o mundo são os combustíveis fósseis”, acrescenta.

Quando se fala em matriz energética limpa e sustentável, as principais referências são as fontes de energia solar e eólica, que não emitem poluentes, geram pouco impacto ambiental e têm a capacidade de atender a uma alta demanda populacional. Para se ter uma ideia, destaca Pereira, a energia enviada pelo Sol para a Terra em um dia é suficiente para suprir as necessidades energéticas de toda a humanidade por 18 meses. O problema é que tanto o Sol como o vento são tipos de energia intermitente, ocorrendo em intervalos de tempo desiguais. A energia solar, por exemplo, não pode ser obtida durante a noite, o que torna necessário a estocagem para garantir a continuidade do suprimento energético.

Aqui entra em cena o hidrogênio, uma molécula com alta densidade de energia capaz de armazenar o excesso de energia solar ou de outras matrizes energéticas. Com esse hidrogênio, é possível obter energia elétrica gerando como subproduto apenas água, o que não impacta o meio ambiente. No entanto, como essa substância química não é encontrada na natureza em sua forma pura, a obtenção dela requer geração a partir de fontes nem sempre renováveis. Atualmente, a forma mais eficaz para se obter essa molécula é por meio do gás metano – uma molécula que contém um átomo de carbono e quatro átomos de hidrogênio. Esse processo, ainda que mais eficiente, contribui com o aquecimento global pelo fato de o metano ser um dos principais responsáveis pelo efeito estufa.

Por esse motivo, diversos grupos ao redor do mundo vêm trabalhando com a geração de hidrogênio a partir de fontes limpas. A divisão de hidrogênio verde do Cine, por exemplo, estuda a obtenção desse elemento a partir da eletrólise da água. Nesse processo, uma corrente elétrica provoca uma reação que decompõe a molécula de H2O em oxigênio (O2 ) – conhecida como oxidação – e em hidrogênio (H2 ) – chamada de redução. A energia produzida por 1 quilo de hidrogênio é três vezes maior do que a gerada por 1 quilo de gasolina – embora o processo de armazenamento e transporte do hidrogênio seja mais complexo do que o da gasolina. Caso a matriz energética utilizada para gerar a corrente elétrica envolvida na decomposição da água seja renovável, o hidrogênio obtido passa a ser considerado limpo. De acordo com dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), 83,79% da matriz elétrica brasileira vem de fontes renováveis. Logo, por aqui, a produção de hidrogênio via eletrólise já é considerada verde.

Por outro lado, embora a eletrólise da água seja uma tecnologia comercial, 80% da geração de energia no mundo provém de combustíveis fósseis, segundo dados da Agência Internacional de Energia (IEA, na sigla em inglês), indicando que, na maior parte dos países, a obtenção de hidrogênio está longe de ser considerada verde. Além disso, como o preço da produção do hidrogênio via eletrólise é quatro vezes maior do que o produzido via metano, o procedimento revela-se economicamente inviável, conta o professor Juliano Alves Bonacin, do Instituto de Química (IQ) da Unicamp.

“Hoje, até 70% do custo da eletrólise vem da eletricidade. Então, nós vamos ter que fazer um investimento em produção de energia. A ideia é que, a partir de 2025, o Brasil já tenha uma produção considerável. Os investimentos estão começando a ser feitos agora”, explica Bonacin, acrescentando que, na próxima década, o restante do mundo também deve passar por uma revolução na produção de hidrogênio verde devido à guerra entre a Rússia e a Ucrânia. A Ucrânia é o maior exportador do mundo de amônia, que é produzida com o uso de hidrogênio e muito usada na fabricação de fertilizantes. Com o conflito, houve aumento dos preços e há ameaça de escassez do produto.

O professor Ernesto Chaves Pereira, coordenador do projeto: se nada for feito nos próximos anos, o custo vai ser grande

Rendimento

Outro fator que contribui para o alto custo da produção de hidrogênio verde é o preço dos eletrolisadores – os equipamentos que realizam a eletrólise. Atualmente, o rendimento de uma reação gira em torno de 80%, com a maior limitação ocorrendo no ânodo – o eletrodo onde ocorre a oxidação, que acontece de forma mais lenta do que a de redução, que se dá no cátodo. Como a separação do oxigênio e do hidrogênio precisa acontecer ao mesmo tempo, a primeira acaba atrasando a segunda. Embora esse problema possa ser minimizado com o uso de catalisadores – substâncias que aumentam a velocidade da reação sem serem consumidas no processo –, os materiais mais eficientes para cumprir essa função são minerais pouco abundantes no planeta, o que encarece a reação, principalmente quando se pensa em uma escala industrial.

Por esse motivo, uma das principais linhas de pesquisa do grupo tem sido a busca por catalisadores não tóxicos, baratos, de alta durabilidade e abundantes no Brasil, visando substituir os produtos tradicionais e diminuir a dependência tecnológica do país.

“Os melhores materiais para oxidar a água e outras moléculas orgânicas pequenas são metais nobres como o irídio e a platina, que são caros e raros. Portanto, nós trabalhamos na síntese de materiais mais baratos que não contenham esses metais ou que os contenham nas menores quantidades possíveis”, explica o docente do IQ e pesquisador do Cine Pablo Sebastián Fernández.

Além da busca por catalisadores mais eficientes, o grupo de Fernández vem tentando atacar o problema do custo do processo por meio de pesquisas que substituam a eletrólise da água por derivados da biomassa. Por biomassa entenda-se toda matéria orgânica capaz de ser usada como fonte de energia limpa e sustentável – como o bagaço de cana-de-açúcar – e que, em muitas ocasiões, se oxida de maneira mais fácil e rápida do que a molécula de H2O. Nesse caso, a equipe tem estudado o uso do glicerol, do bioetanol e da lignina – o resíduo de biomassas lignocelulósicas, como o papel. Esses materiais, quando oxidados, geram produtos como a dihidroxiacetona, que é um componente dos bronzeadores. Dessa forma, apresentam maior valor agregado que o oxigênio, que não costuma ter aplicação comercial e é descartado.

“Nós tentamos entender essas reações do ponto de vista microscópico. Muitas vezes, temos materiais em tamanho nanométrico, o que significa 1 milhão de vezes menores do que 1 metro. São coisas extremamente pequenas. Precisamos de técnicas muito avançadas para entender a estrutura desses materiais”, aponta o docente. A melhor maneira para fazer isso é analisar as reações no momento em que elas estão acontecendo – o chamado estudo in situ –, algo bastante complexo de ser realizado. Em geral, os pesquisadores trabalham com medidas ex situ, em que primeiro se realiza a reação, cujo produto é, então, levado para outro lugar a fim de ser analisado.

Tendo isso em vista, a divisão do Cine encarregou-se de desenvolver e aplicar técnicas voltadas à realização de medidas in situ. Uma delas é o Dems (sigla em inglês para espectrometria de massa eletroquímica diferencial), que identifica os produtos gerados em reações eletroquímicas ao acoplar um espectrômetro de massa ao eletrolisador. Esse equipamento permite identificar moléculas por meio da medição da sua massa e identificar sua estrutura por meio de um feixe de elétrons, que quebra as moléculas formadas durante as reações.

“Assim, é possível verificar se a corrente que a gente está observando é de fato hidrogênio, oxigênio ou uma reação paralela sem relação com a produção de hidrogênio”, explica Raphael Nagao, professor do IQ e integrante do Cine que coordenou uma equipe responsável por desenvolver essas técnicas de mensuração.

Da esquerda para a direita, os professores Raphael Nagao e Juliano Alves Bonacin: Cine da Unicamp tem como principal compromisso impulsionar a inovação na área de sistemas energéticos e sustentáveis

Perspectivas

Criado em 2018, o Cine da Unicamp tem como principal compromisso impulsionar a inovação na área de sistemas energéticos e sustentáveis a partir da colaboração entre pesquisadores dos mais diversos campos. No caso da divisão de hidrogênio verde, os últimos cinco anos giraram em torno da busca por melhorar a eficiência dos eletrolisadores.

Para além dos catalisadores e das pesquisas com biomassa, uma linha coordenada por Pereira envolveu o estudo sobre as bolhas formadas no processo de obtenção de hidrogênio. Quando essas bolhas ocorrem, prejudicam a reação responsável por gerar o hidrogênio. A fim de compreender esse fenômeno, o pesquisador utilizou um método matemático que permite analisar o fluxo da solução e seu efeito na aparição das bolhas.

“São centenas ou mesmo milhares de bolhas se formando ao mesmo tempo na superfície. Então, se eu conseguir mudar a condição de tal forma que a bolha não cresça, mas se desprenda logo após se formar, talvez seja possível incrementar a produção em alguns pontos percentuais. Apesar de ser algo aparentemente simples, custou-nos muito até desenvolver um sistema para avaliar o crescimento dessas bolhas”, relata o pesquisador, revelando que os próximos cinco anos de trabalho serão dedicados tanto a aumentar a escala dos novos materiais produzidos como a continuar a busca por novos catalisadores.

O grupo de Nagao, por exemplo, vai testar metais como o tântalo e o nióbio, que, abundantes no Brasil (e, consequentemente, mais baratos), permitirão uma menor dependência tecnológica do país, caso se provem eficazes.

“O tântalo e o nióbio são da mesma família. A gente espera encontrar propriedades parecidas nesses dois elementos, mesclando-os com o irídio. Infelizmente, não há como eliminar o irídio do processo, mas tentaremos diminuir a quantidade usada e combinar com outros materiais para diminuir a energia gasta e aumentar a velocidade de produção”, comenta o professor.

Nagao ainda defende que, apesar do emprego na geração de energia, o hidrogênio verde servirá também para a produção de amônia, que, além de ser o principal substrato de fertilizantes em todo o mundo, pode ser decomposta para gerar hidrogênio novamente. A amônia poderia ser, então, um carregador do hidrogênio – elemento difícil de transportar por ser inflamável e corrosivo e por ocorrer na forma de gás.

“Hoje em dia se fala muito do hidrogênio, mas a amônia é uma forte candidata [a integrar a cadeia de energia sustável] porque também é um portador denso de energia, tem selo verde, pode ser queimada diretamente e pode ser usada na agricultura. A amônia possui um potencial tal que, a longo prazo, abrem-se mais possibilidades de investigação e de conhecimento de forma geral”, finaliza.

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