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A Covid-19 expõe o limite do sistema de saneamento no Brasil: repercussões sociojurídicas

O problema que possuímos com o saneamento, no que tange ao acesso à água e ao esgoto tratado, não é novidade, entretanto está mais exposta ainda por mais uma doença, agora em grau de pandemia, cujas repercussões na saúde humana ainda são incertas, a COVID-19

 

agua

 

Já convivemos com diversas doenças que são veiculadas por meio da água e do esgoto não tratado a exemplo de doenças gastrointestinais infecciosas, febre amarela, dengue, leptospirose, malária e esquistossomose.

Entretanto, o fato novo dessa pandemia de COVID19 está na sua potencialidade de transmissão e, também, na possibilidade concreta dessa ocorrer por meio de resíduos contaminados, seja por “lixões” irregulares, pelo esgoto e água sem tratamento. Dessa forma, um detalhe chama a nossa atenção como pesquisadores e juristas: será que temos mais uma doença de veiculação hídrica que pode gerar a responsabilidade dos gestores públicos por sua inércia na não execução de políticas públicas básicas? É interessante citar a Nota Técnica divulgada semana passada sobre a questão do COVID e sua potencial relação com o saneamento:

  • Primeiro, que uma boa estratégia para detecção da presença de uma doença ou infecção viral na população, inclusive na parcela que não manifesta a doença – portadores assintomáticos, consiste no monitoramento do esgoto para a presença do agente infeccioso;
  • A segunda implicação é que os profissionais que atuam na área de esgotamento sanitário, notadamente os diretamente envolvidos com a operação e manutenção das redes coletoras e ETEs, bem como os pesquisadores que têm contato ou manuseiam amostras de esgoto, devem reforçar os cuidados e não abrir mão da utilização de equipamentos de proteção individual (EPI), a fim de evitar a ingestão inadvertida de esgoto, ainda que por meio da inalação de aerossóis, evitando assim a contaminação. Ressalta-se que as medidas de proteção e segurança ocupacional, repassadas e adotadas como padrão para esses profissionais e pesquisadores, são eficazes na proteção contra o novo coronavírus e outros patógenos presentes no esgoto. Além disso, como qualquer outra pessoa, esses profissionais e pesquisadores devem adotar e intensificar as medidas de higiene recomendadas, como lavar as mãos com água e sabão ou higienizá-las com álcool em gel, não tocar os olhos, face e boca antes de lavar as mãos;
  • Outra implicação importante, considerando a situação sanitária do Brasil, em que apenas 46% do esgoto gerado no país são tratados (segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento – SNIS 2018), é que nos meses em que durar a pandemia poderemos estar despejando em nossos rios uma enorme carga viral. Como consequência, poderá ocorrer o aumento da disseminação do vírus SARS-CoV-2 no ambiente e a infecção da parcela mais vulnerável da população, aquela que não tem acesso a uma adequada infraestrutura de saneamento básico.

Transmissibilidade do COVID-19 por meio do esgoto não tratado

Ainda outras informações dão pista da possibilidade de potencialização da transmissibilidade do COVID-19 por meio do esgoto não tratado ou pela água não tratada, como o caso da evacuação do prédio em Hong Kong, ou mesmo especialistas pelo mundo já dão conta da possibilidade da doença ser espalha por meio da tubulação de esgotos em virtude do vírus está nas fezes. Além dessas, pesquisas em Cingapura e Holanda já dão conta que há uma relação entre transmissão do COVID e o esgoto não tratado.

Trabalhos recentes, publicados na revista científica Lancet Gastroenterol Hepatol (vol. 5 abril/2020), mostraram que pacientes com a COVID-19 apresentaram em suas fezes o RNA viral. Em cerca de 50% dos pacientes investigados no estudo, a detecção do RNA do SARS-CoV-2 nas fezes aconteceu por cerca de 11 dias após as amostras do trato respiratório dos pacientes terem sido negativas, indicando a replicação ativa do vírus no trato gastrointestinal e que a transmissão via feco-oral poderia ocorrer mesmo após o trato respiratório já estar livre do vírus.


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Essas informações provocam alguns questionamentos que possuem repercussões jurídicas, principalmente uma questão crucial: se a nossa Política Nacional de Recursos Hídricos e a Política Nacional de Saneamento Básico são suficientes e eficazes? Os números que atestam a existência de uma crise hídrico-sanitária são patentes já estão exaustivamente expostos (SILVA, 2020), entretanto é importante lembrar alguns problemas relacionados ao saneamento e a uma crise estrutural nas cidades e no campo brasileiro:

  • 13 milhões de pessoas em áreas irregulares, segundo dados do IBGE (2016);
  • 80% das águas residuais no mundo são lançadas nos mananciais sem tratamento (UNESCO, 2019);
  • Só o Brasil interna anualmente cerca de 300 mil pessoas por doenças relacionadas à falta de saneamento;
  • A falta de implementação da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS);
  • O abastecimento difuso em comunidades remotas praticamente não existe, como no caso das populações do campo (IBGE, 2016);
  • O saneamento rural está muito abaixo do mínimo necessário se comparado com o saneamento urbano (IBGE, 2016);
  • A população branca tem muito mais acesso ao saneamento do que a população negra ou parda (IBGE, 2016);
  • A dificuldade de acesso à água pelas populações do semiárido é enorme (INSA, 2014);
  • O acesso à água pela população de rua inexiste.

Essas questões somadas a uma pandemia das proporções do COVID-19 vem reforçar a necessidade de termos um novo marco legal nacional em face da proteção das águas, unificado em apenas um estatuto legal, sem fragmentações, pois cada vez mais vemos que essas questões estão interligadas, seja saúde, seja desenvolvimento, seja água, seja meio ambiente. Precisamos interligar essas políticas no plano legal e no plano mais pragmático nas formulações e implementações na gestão pública diária.

Segurança Hídrica Ecológica

Um passo importante seria a mudança da percepção de Segurança Hídrica como sendo algo ligado apenas à escassez de água o que verificamos ao longo de nossas pesquisas, sendo a necessidade de ampliarmos e mudar de paradigma essencial, realizando uma transposição para uma Segurança Hídrica Ecológica (SHE), o que, inevitavelmente geraria uma Política Nacional de Gestão Hídrica Ecológica.

Assim, gostaríamos de compartilhar um conceito de Segurança Hídrica Ecológica, que elaboramos em nossa tese recentemente defendida no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal da Paraíba, sob orientação do Prof. Dr. Talden Farias e coorientação da Profa. Belinda Cunha, cujo teor é muito pertinente para o momento atual, afirmando o seguinte: essa SHE é a a disponibilização de água minimamente suficiente para toda forma de vida e que tenha padrão de qualidade compatível com seu uso, sendo envidados esforços no sentido de preservar as bacias hidrográficas, reconhecendo e quantificando os serviços ecossistêmicos, levando-se em consideração a resiliência dos aglomerados urbanos, a preservação de todos os elementos que tem relação direta com o ciclo da água e, portanto, com a produção de água, cuidar para a diminuição da impermeabilização do solo, bem como adotando tecnologias para o uso racional de água na agricultura, sem a aplicação de agrotóxicos, e em todos os processos industriais, adotando equidade e a justiça ambiental como pilares e aplicando o reuso de modo que se possa manter o máximo de tempo possível a água no ciclo natural e no ciclo urbano. (SILVA, 2020, p. 364-365). Essas ações em forma de conceito tem implicações diretas na saúde.

Portanto, algumas questões pontuais precisam ser observadas não só nessa época de COVID-19, mas também para o período pós pandemia, principalmente em relação às falhas de planejamento que possuíamos com tantos planos discutidos e executados separadamente e que deveriam ser, na prática, interligados, pois na verdade na essência já o são, quais sejam:

  1. Equidade;
  2. Saúde/Qualidade;
  3. Quantidade;
  4. Resiliência/Desastres;
  5. Serviços Ecossistêmicos;
  6. Risco de Poluição Difusa;
  7. Drenagem/Impermeabilização;
  8. Uso e Ocupação do Solo;
  9. Mapeamento;
  10. Modelo de Governança;
  11. Participação.

Esses elementos devem pautar as discussões relacionadas ao repensar do próprio entendimento jurídico do que vem a ser saneamento, ampliando e abarcando outros setores da vida humana, bem como repensando a responsabilidade dos gestores frente à inexecução do que foi proposto nos planos e cujo o resultado pode ser negativo para toda a sociedade. Inclusive, é interessante recolocar a discussão da execução real de uma região metropolitana que trata de questões comuns como saneamento e do instrumento jurídico dos consórcios para a solução desses problemas comuns e que coletivamente seria, em tese, mais fácil resolver.

Artigo escrito pelo Prof. Dr. José irivaldo, Professor Adjunto da Universidade Federal de Campina Grande – UFCG, Professor do Mestrado em Gestão de Recursos Hídricos – UFCG/UNESP, Pesquisador Produtividade CNPq.

Fonte: Estadão.

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