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Avaliação da viabilidade do reúso de água para recarga de aquíferos na região metropolitana de São Paulo

Resumo

Na Região Metropolitana de São Paulo, onde a disponibilidade hídrica foi classificada como “Crítica”, durante os anos de 2014 e 2015 ocorreu um período de seca que originou a denominada “crise hídrica”, agravando a situação dos mananciais que abastecem a região. Os estudos sobre mudanças climáticas demonstram não ser um fenômeno isolado e, diante disso, a adoção de tecnologias para reúso de água é essencial para aumentar a disponibilidade hídrica de locais que enfrentam cenários de escassez, como a RMSP. A recarga de aquíferos com efluentes tratados para reúso de água é uma técnica que, se adotada corretamente, pode trazer benefícios como o aumento do volume de água subterrânea disponível para a população. Para estudo da tecnologia, buscou-se como referência as plantas de Shafdan (Israel), Atlantis (África do Sul), Sabadell (Espanha), Adelaide (Austrália), avaliando principalmente os processos de tratamento, métodos de recarga e características qualitativas dos efluentes utilizados para recarga de aquíferos. Foram consultadas as legislações de Estados Unidos e da Espanha sobre o assunto e, com base nestas referências, foram adotados os seguintes requisitos de qualidade do efluente para recarga de aquíferos: sólidos suspensos (35 mg/L), carbono orgânico dissolvido (125,0 mg/L), DBO5,20 (25,0 mg/L), nitrato (25,0 mg/L) e Escherichia coli (1000 UFC/100 mL). A partir dos estudos de caso e das legislações, foi definido que o requisito mínimo de tratamento para recarga é o tratamento terciário para remoção de nitrogênio. Foi avaliada a replicabilidade desta técnica na Região Metropolitana de São Paulo através de comparativos entre os requisitos definidos e as características do efluente e da água de reúso produzida na RMSP em quatro cenários: legislação aplicável ao lançamento de efluentes tratados, características do efluente tratado a nível secundário de uma das ETEs da RMSP, características da água de reúso produzida na RMSP para usos urbanos e características da água de reúso produzida para uso industrial na planta Aquapolo. Verificou-se que atualmente apenas a água de reúso produzida no Aquapolo é submetida a tratamento terciário e atende aos requisitos qualitativos para recarga adotados neste trabalho. O custo de operação de um sistema de produção de água de reúso e recarga de aquíferos foi estimado em US$ 1,41/m³, valor superior à tarifa de água potável comercializada para residências na RMSP, atualmente US$ 0,75/m³. Concluiu-se que há potencial para adoção da tecnologia de recarga de aquíferos com água de reúso na RMSP, visto que há tecnologia disponível para produzir água de reúso na qualidade requerida. Ainda assim, é necessária a avaliação da hidrogeologia local antes de praticar a recarga. Em relação ao custo, o valor da tarifa de água potável vigente é expressivamente menor quando comparado ao valor caso a tecnologia proposta nesse trabalho fosse implantada. Entretanto, deve-se avaliar a importância da adoção de alternativas para disponibilização de água para a população. Ou seja, mesmo que em primeira vista seja mais onerosa, esta técnica é uma oportunidade para obtenção de água para diversos usos em situações de extrema seca, quando o valor da água passa a ser inestimável.

Introdução

As civilizações antigas, desde os tempos remotos, através de experiências construíram suas formas de organização em torno das bacias hidrográficas e costas marítimas. A água era um elemento vital para todas as culturas e foi objeto de veneração e temor (PITERMAN e GRECO, 2005).

Tomasoni et. al. (2009) afirmam que a água é componente essencial para a vida humana e para a dinâmica de todos os sistemas ambientais, determinando as características dos ecossistemas, do potencial humano e econômico a ser manejado sob as mais diversas condições ambientais de sua oferta, gerando, portanto, tensões e conflitos de interesses em todo o mundo.

Segundo dados da ANA (Agência Nacional de Águas), aproximadamente 8% da reserva de água doce no mundo se encontra em território brasileiro, sendo que desse percentual, 80% está na região Amazônica e 20% concentra-se em regiões brasileiras onde vivem 95% da população.

A classificação adotada pela Organização das Nações Unidas define quatro níveis para a disponibilidade hídrica:

  1. Abundante: acima de 20.000 metros cúbicos por habitante por ano;
  2. Correta: 2.500 a 20.000 metros cúbicos por habitante por ano;
  3. Pobre: 1.500 a 2.500 metros cúbicos por habitante por ano;
  4. Crítica: inferior a 1.500 metros cúbicos por habitante por ano.

O Brasil é considerado “Abundante” em relação à classificação de disponibilidade hídrica da ONU, contando com 35.000 m³ de oferta de água por habitante em um ano. Entretanto, para o estado de São Paulo, o índice cai para 2.209 m³/hab/ano, sendo classificado como “Pobre”. Este índice diminui ainda mais quando se considera a Bacia do Alto Tietê, que concentra em torno de 20 milhões de habitantes: são 200 m³ de água por habitante por ano e a bacia hidrográfica é classificada como “Crítica” em relação à disponibilidade hídrica (CMSP, 2011 apud MARTIRANI e PERES, 2016).

Segundo a Agência Nacional de Águas (2005) é observado um cenário crítico de baixa disponibilidade hídrica em algumas regiões do país, onde é obrigatória a busca de fontes externas para abastecimento de água da população e suas atividades. Hespanhol (2002) afirma que a condição de disponibilidade hídrica crítica em uma determinada bacia hidrográfica leva à busca de recursos hídricos complementares em bacias vizinhas e, por consequência, aumenta o custo da água tratada, além dos problemas legais associados.

A Região Metropolitana de São Paulo possui uma população de 20.935.204 habitantes segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2014), a qual está 99% instalada no território da Bacia do Alto Tietê. O Plano da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê (FUSP, 2009) revela que o consumo total de água desta bacia excede, em muito, sua própria produção hídrica. Em 2009, apontou que a produção de água para abastecimento público representava aproximadamente 68 m3/s, dos quais 31 m3/s eram importados da Bacia do Rio Piracicaba e 2 m3/s eram provenientes de outras reversões menores.

Hespanhol (2002) ressalta que a prática da reversão de bacias tende a se tornar cada vez mais restritiva, frente à conscientização popular, presença efetiva de entidades de classe e desenvolvimento de comitês de bacias hidrográficas afetadas pela perda deste recurso valioso.

Mendonça (2004) cita os principais fatores que conduziram diversas regiões do mundo à situação crítica de abastecimento de água: limitação da oferta de água nas cercanias das populações, descuido com os mananciais, assoreamento dos rios devido ao desmatamento, práticas agrícolas inadequadas e crescimento desordenado das populações.

Além disso, durante muito tempo a água foi considerada um bem inesgotável. A extração indiscriminada desse recurso para satisfazer as necessidades de um país em processo de desenvolvimentos econômico, bem como a expansão territorial ocasionando o uso desordenado do solo e a falta de saneamento básico, compõem alguns fatores que intensificaram os problemas ambientais, entre eles os problemas relacionados aos recursos hídricos no Brasil.

A ocupação urbana desordenada em áreas de proteção de mananciais acarreta a poluição destes corpos hídricos por esgoto doméstico, resíduos sólidos e carga difusa de poluição gerada nas áreas urbanizadas, levando ao comprometimento da qualidade da água bruta e à possível inviabilização de uso do manancial, aumentando os custos do tratamento e restringindo seus usos (ANA, 2005; FUSP, 2009).

Alterações relevantes no ciclo hidrológico, na quantidade e na qualidade das águas devido a mudanças climáticas já podem ser sentidas em todo o mundo e interferem de maneira direta ou indireta na saúde da população humana. Tundisi (2008) afirma que um dos assuntos fundamentais a serem estudados para a promoção de soluções em relação aos recursos hídricos são os extremos hidrológicos.

Eventos extremos afetam populações humanas em razão de desastres (enchentes, deslizamentos, transbordamentos nas várzeas) ou secas intensas (aumento na semiaridez e aridez), e comprometem a saúde humana, a segurança alimentar e aumentam a vulnerabilidade dos ciclos e processos biogeoquímicos (TUNDISI, 2008).

O Portal Brasil (2012), utilizando pesquisas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), afirma que as projeções para as mudanças climáticas apontam para o aumento nos extremos de seca, chuva e temperatura no Sudeste que, com alta evaporação por causa do calor, afetará o balanço hídrico. Percebe-se, portanto, que a grande estiagem ocorrida entre os anos de 2014 e 2015 na Região Metropolitana de São Paulo não representa um fenômeno isolado, havendo a necessidade de adaptação a novas realidades climáticas na região.

Este extenso período de estiagem, marcado pelos baixíssimos níveis de água nos reservatórios que abastecem a RMSP, fragilizou o sistema de abastecimento de água da região como um todo, acarretando a denominada “crise hídrica” e agravando ainda mais a situação da baixa disponibilidade hídrica previamente relatada. Outro destaque deste período foi o aumento da explotação das águas subterrâneas para abastecimento público. Na Bacia do Alto Tietê estão os aquíferos Cristalino e Sedimentar, que contribuem com parcelas significativas para o abastecimento público de água, passaram a representar parcela ainda mais importante durante o período de seca.

Para o enfrentamento da crise hídrica, a concessionária de água e esgoto que presta serviços na RMSP tomou algumas medidas operacionais, como a redução da pressão na rede de abastecimento, o desconto na conta de água para os usuários que reduzissem o consumo e a aplicação de multa aos que o aumentassem. Para aumentar a oferta de água na RMSP foram aceleradas e priorizadas obras que realizarão a transposição de bacias e incentivados alguns programas, como o de redução das perdas de água na rede de abastecimento e o de reúso de água para fins não potáveis. A população também foi engajada e representou uma parcela significativa da economia de água durante o período.

O fato é que planejamento é fundamental em regiões que enfrentam condições climáticas extremas, situação que é recente na RMSP. Hespanhol (2002) afirma que a escassez de água não é exclusiva de regiões de climas áridos e semiáridos, visto que muitos locais possuem recursos hídricos abundantes, porém insuficientes para satisfazer as elevadas demandas, vivenciando restrições de consumo que afetam o desenvolvimento econômico e a qualidade de vida da população.

Atualmente percebe-se que a preocupação gira em torno da adoção de estratégias no sentido de reduzir o consumo de água para o melhor aproveitamento deste bem (ALMEIDA, 2011). Em regiões dos Estados Unidos, México, Israel, Cingapura, Emirados Árabes, Argentina, Chile, Austrália e em cidades europeias, o abastecimento de água é feito a partir de tecnologias de dessalinização, reúso de água, explotação de aquíferos, derretimento de geleiras e até mesmo através da captação de gotas de neblina.

Estes métodos são eficazes do ponto de vista da tecnologia, mas ao mesmo tempo podem ser extremamente onerosos. Portanto, o incentivo a estas tecnologias, via de regra, ocorre em locais onde se vive em situações de extrema seca, quando não há outras opções viáveis. No Brasil, com a falsa ideia de abundância de água em todo o território, tecnologias como estas são dificilmente empregadas.

O reúso de água, por exemplo, é amplamente utilizado em todo o mundo, mas no Brasil ainda é pouco empregado e se mostra avançando lentamente, seja pela falta de incentivo, por questões culturais, ou mesmo pela legislação que vem surgindo apenas recentemente. Crook (1993) afirma que o reúso de água reduz a demanda sobre os mananciais de água bruta, devido à substituição da fonte, isto é, pela substituição da água potável por uma água de qualidade inferior quando tal substituição for possível, tendo em vista a qualidade requerida para consumo.

A intenção do reúso da água é aumentar o suprimento de água ou gerenciar nutrientes no efluente tratado, e seus benefícios incluem a melhoria da produção agrícola, redução do consumo de energia associado à produção, tratamento e distribuição de água, e benefícios ambientais significativos, como a redução da carga de nutrientes nas águas receptoras devido à reutilização das águas residuais tratadas (USEPA, 2012).

Complementando este pensamento, Metcalf e Eddy (2014, p. 1867) afirmam que, ao longo do tempo, o esgoto passou a ser encarado como fonte recuperável de recursos. Quevedo (2015), traz o alerta sobre a importância da recuperação do fósforo, por se tratar de um recurso natural, finito e com fontes cada vez mais escassas.

Segundo Okpala (2011), há um enorme potencial para aproveitamento de água de reúso na Região Metropolitana de São Paulo, visto que nela existem mais de 7 milhões de automóveis (incluindo táxis, que são lavados quase diariamente), uma frota de mais de 15 mil ônibus, trens, a maior concentração de indústrias do país e locais como parques, estádios e quadras esportivas irrigadas com água potável. E em razão da grande demanda, muitos destes locais perfuram poços para abastecimento.

Diante do cenário apresentado e dentre as tecnologias de reúso de água, a recarga artificial de aquíferos com efluente tratado se mostra interessante e pode ter seu espaço no Brasil. Segundo a USEPA (1999), a recarga gerenciada de aquíferos com efluentes tratados apresenta diversas vantagens, pois realiza um tratamento natural adicional e possui capacidade de armazenamento para variações sazonais de oferta e demanda. Levando em conta principalmente a questão da sazonalidade, esta técnica pode se encaixar na necessidade existente na RMSP de enfrentamento de eventos climáticos extremos, armazenando água quando há muita oferta e abastecendo a população quando a oferta convencional for baixa.

Hespanhol (2005) complementa afirmando que, quando esta técnica for adequadamente regulamentada e praticada no Brasil, trará benefícios e representará uma nova dimensão para a disposição de efluentes domésticos, pois além de contribuir para o aumento da disponibilidade de água, ainda se mostra eficiente na proteção de aquíferos costeiros contra salinização, controle de subsidência de solos e sustentação de níveis de aquíferos freáticos submetidos a condições inadequadas de demanda.

Mesmo benéfica, a recarga artificial de aquíferos com efluentes tratados possui suas limitações. A USEPA (1999) ressalta que, dentre as principais preocupações do uso desta tecnologia para obtenção de fontes alternativas de água, estão os contaminantes microbianos, contaminantes emergentes, interferentes endócrinos e fármacos.

O desenvolvimento de estudos de alternativas visando o aumento da disponibilidade hídrica na Bacia do Alto Tietê se justifica especialmente pela recente crise hídrica observada na RMSP. A adoção de tecnologias para diminuição da dependência de estações chuvosas para o abastecimento água proporciona maior segurança aos sistemas de abastecimento, podendo levar ao aumento dos volumes disponíveis de água para o abastecimento público, além de oferecer opções à busca de mananciais em bacias cada vez mais distantes.

Autora: Marina Westrupp Alacon Rayis.

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