Método combina eletroquímica com raios X de altíssima potência para observar como átomos metálicos se comportam dentro da enzima durante a reação; pesquisa usou infraestrutura do Sirius, acelerador de partículas em Campinas
Pesquisadores do Instituto de Química de São Carlos (IQSC) da USP desenvolveram um protocolo que permite a qualquer cientista acompanhar, em tempo real, como as enzimas – moléculas que aceleram reações químicas na natureza – atuam em diferentes processos. Descrito em artigo publicado na revista científica Nature Protocols, o método, baseado em eletroquímica e raios X de altíssima potência, oferece uma nova ferramenta para investigar sistemas biológicos complexos, abrindo caminhos para a geração limpa de energia e a produção de novos compostos químicos.
Intitulado Enzymatic X-ray absorption spectroelectrochemistry, o artigo descreve o uso e a adaptação de uma técnica que combina eletroquímica e raios X para observar como os átomos de metais dentro de enzimas se comportam durante reações químicas.
“Nosso grupo detalhou essa técnica aplicada especificamente a enzimas, enfrentando os desafios únicos que esse tipo de sistema impõe”, explica o professor Frank Crespilho, coordenador do Grupo de Bioeletroquímica e Interfaces e um dos autores do artigo. São moléculas delicadas, difíceis de estabilizar sob radiação e em condições experimentais específicas.”
O protocolo tem 30 páginas e cerca de 200 itens de discussão, com fotos e seções dedicadas à resolução de problemas. A ideia é que até mesmo grupos com pouca experiência prévia consigam usar a técnica com eficiência, extraindo dados valiosos mesmo em janelas curtas de tempo, algo fundamental para quem utiliza instalações científicas como o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS) do Sirius, localizado em Campinas (interior de São Paulo), como foi o caso dos pesquisadores. Hoje, grande parte do hidrogênio, considerado um dos combustíveis do futuro, ainda é produzidA a partir do petróleo, em processos caros e poluentes.
O que os cientistas buscam é encontrar alternativas que imitem a natureza, usando enzimas como inspiração para criar compostos artificiais que sejam baratos, eficientes e sem impacto ambiental. De acordo com a pesquisadora Graziela Sedenho, pós-doutoranda do IQSC, o desenvolvimento de novos catalisadores poderá ser aplicado em diversas áreas, desde a indústria farmacêutica, na síntese de medicamentos, até o desenvolvimento de sensores, biossensores e tecnologias de geração de energia limpa.
“A metodologia permite compreender em detalhe como a enzima funciona, e isso é essencial para ajustar processos em escala industrial” afirma. “Não estamos apenas observando, estamos criando as bases para projetar novos catalisadores.”
Eletroquímica e Raios X
O método combina eletroquímica com raios X de altíssima potência. Isso permite “enxergar” detalhes minúsculos de como os átomos metálicos se comportam dentro da enzima durante a reação. É como se fosse uma câmera de alta velocidade mostrando passo a passo como a natureza realiza transformações químicas. Por exemplo, na enzima bilirrubina oxidase, os pesquisadores conseguiram acompanhar apenas quatro átomos de cobrem responsáveis por acelerar a reação, em meio a uma estrutura com mais de 18 mil átomos. Essa precisão ajuda a entender exatamente o que torna uma reação eficiente e dá pistas de como reproduzir isso em laboratório. Além da bilirrubina oxidase, os pesquisadores utilizaram a enzima nitrogenase, que impôs um desafio adicional já que ela é extremamente sensível ao oxigênio.
“Tivemos que montar todo um sistema específico, incorporando uma câmara inerte onde toda a preparação dos eletrodos e amostras foi feita na completa ausência de oxigênio”, conta Rafael Colombo, primeiro autor do artigo e pós-doutor pelo IQSC.
Segundo Colombo, o tipo de experimento descrito no protocolo exige o uso de uma fonte de luz síncrotron. No Brasil, e em toda a América Latina, essa infraestrutura só existe na linha de luz Carnaúba, do LNLS. “A linha Carnaúba é uma das mais avançadas do mundo, parte de um acelerador de quarta geração que permite focalizar o feixe em uma escala submicrométrica com fluxo extremamente alto e estável”, destaca Colombo.
Para que o experimento se tornasse realidade, a equipe precisou submeter o projeto a um edital altamente competitivo, no qual critérios como mérito técnico, viabilidade experimental e relevância científica foram avaliados.
O acesso não apenas é limitado, como envolve custos elevados: cerca de R$ 100 mil por dia de operação.
“Trabalhamos por 15 dias, durante 24 horas, nos revezando em turnos para fazer as medições necessárias. Foi uma maratona técnica e humana”, relembra o pesquisador do IQSC.
Com a técnica consolidada em protocolo, o grupo agora trabalha em outras duas frentes de pesquisa. A primeira é o desenvolvimento de biocatalisadores otimizados, usando engenharia molecular para criar versões mais eficientes e resistentes das enzimas naturais. A segunda é baseada na formulação da teoria da “catálise tridimensional”, que propõe que a geometria do ambiente em que a reação química ocorre influencia diretamente sua eficiência.
“O nosso objetivo é traduzir o que a natureza faz, de forma extraordinária há bilhões de anos, em conhecimento aplicável”, defende Crespilho. Além dele, Colombo e Graziela Sedenho, o artigo também é assinado por Itamar Neckel, do LNLS.
Fonte: Jornal da USP