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Qualidade da água para consumo humano e concentração de fluoreto

Rev. Saúde Pública vol.45 no.5 São Paulo Oct. 2011 Epub July 22, 2011

http://dx.doi.org/10.1590/S0034-89102011005000046

Qualidade da água para consumo humano e concentração de fluoreto

Calidad del agua para consumo humano y concentración de fluoruro

Paulo FrazãoI; Marco A PeresII; Jaime A CuryIII

IDepartamento de Prática de Saúde Pública. Faculdade de Saúde Pública. Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil
IIDepartamento de Saúde Pública. Centro de Ciências da Saúde. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, SC, Brasil
IIIDepartamento de Ciências Fisiológicas. Faculdade de Odontologia de Piracicaba. Universidade Estadual de Campinas, Piracicaba, SP, Brasil

Correspondência

 

RESUMO

O artigo visa analisar a concentração de fluoreto na água para consumo humano, considerando o balanço entre benefícios e riscos à saúde, e produzir subsídios para atualização da legislação brasileira. Estudos de revisão sistemática, documentos oficiais e dados meteorológicos foram examinados. As temperaturas nas capitais brasileiras indicam que o fluoreto deveria variar de 0,6 a 0,9 mg/L para prevenir cárie dentária. Concentração de fluoreto natural de 1,5 mg/L é tolerável para consumo no Brasil se não houver tecnologia de custo-benefício aceitável para ajuste/remoção do seu excesso. A ingestão diária de água com fluoreto em concentração > 0,9 mg/L representa risco à dentição em menores de oito anos de idade e os consumidores deveriam ser expressamente informados desse risco. Considerando a expansão do programa nacional de fluoretação da água para regiões de clima tipicamente tropical, deve-se revisar a Portaria 635/75, relacionada ao fluoreto adicionado às águas de abastecimento público.

Descritores: Água Potável. fluoretação. Qualidade da água. Revisão. Fluorose dentária.

RESUMEN

El artículo busca analizar la concentración de fluoruro en el agua para consumo humano considerando el balance entre beneficios y riesgos a la salud y producir subsidios para actualización de la legislación brasileña. Estudios de revisión sistemática, documentos oficiales y datos meteorológicos fueron examinados. Las temperaturas en las capitales brasileñas indican que el fluoruro debería variar de 0,6 a 0,9 mg/L para prevenir caries dentaria. Concentración de fluoruro natural de 1,5 mg/L es tolerable para consumo en Brasil si no hay tecnología de costo-beneficio aceptable para ajuste/remoción de su exceso. La ingestión diaria de agua con fluoruro en concentración > 0,9mg/L representa riesgo para la dentición en menores de ocho años de edad y los consumidores deberían ser expresamente informados de este riesgo. Considerando la expansión del programa nacional de fluorificación del agua para regiones de clima típicamente tropical se debe revisar el Documento Público 635/75, relacionado con el fluoruro adicionado a las aguas de abastecimiento público.

Descriptores: Agua Potable. Fluoruración. Calidad del Agua. Revisión. Fluorose dentaria.

INTRODUÇÃO

A água é um bem público indispensável para a vida e sua importância para a saúde pública é largamente reconhecida; porém, mais de um bilhão de pessoas em todo o mundo não têm acesso à água tratada, entre as quais 19 milhões residem no Brasil.26

Estudos observacionais nos Estados Unidos, na primeira metade do século XX, revelaram correlação inversa entre teores de fluoreto na água de abastecimento e a média de dentes atacados pela cárie na população. Entretanto, a partir de determinada concentração, a experiência de ataque de cárie não diminuía de modo importante, mas a prevalência de fluorose dentária aumentava significativamente. Essa série de estudos foi essencial para estimar o teor ótimo que representava o máximo de benefício de redução de cárie com o mínimo de risco de fluorose dentária e a conseqüente adoção da fluoretação de águas como medida de saúde pública.3

A fluoretação das águas na estação de tratamento é obrigatória no Brasil desde 1974, conforme a Lei Federal 6.050.ª Em 1975, a Portaria 635 estabeleceu padrões para a operacionalização da medida,b incluindo os limites recomendados para a concentração do fluoreto em razão da média das temperaturas máximas diárias. Desde então, a cobertura da fluoretação das águas vem aumentando e atinge cerca de metade da população do País na primeira década do século XXI. A fluoretação de águas tem sido apoiada tanto pelas deliberações aprovadas nas Conferências de Saúde e de Saúde Bucal quanto pelo Ministério da Saúde, e pelas principais entidades profissionais da área de Odontologia e Saúde Coletiva de âmbito nacional.21

Em 1988, fluoreto foi adicionado a uma marca de creme dental muito consumida no País e em 1989 mais de 90% dos produtos disponíveis para os consumidores estavam fluoretados.8 O uso do fluoreto na água e no creme dental tem sido responsável por significativo declínio da experiência de cárie na população infantil e adolescente brasileira e projeta importante mudança, que poderá conferir padrão de saúde bucal distinto do atual para as próximas gerações.

Dois anos depois da aprovação da Lei Federal da fluoretação, o Ministério da Saúde, por meio da Portaria 56/1977,c aprovou normas e critérios de padrão de potabilidade da água. Do ponto de vista da presença de fluoreto em águas de consumo humano, agregado ou de ocorrência natural, 1,7 mg F/L foi fixado como Valor Máximo Permissível. Esse valor seria alterado em 2000,d com a publicação da Portaria 1.469, que definiu 1,5mg F/L como Valor Máximo Permitido (VMP). Essa orientação foi mantida na Portaria 518.e Em 2009, o Ministério da Saúde instituiu um grupo de trabalho com a finalidade de revisar essa Portaria.

Assim, a concentração de fluoreto é um parâmetro relevante para avaliação da qualidade nas águas de consumo, seja pela possibilidade de prevenção da cárie dentária, quando presente em níveis adequados, seja pelo potencial de provocar fluorose dentária, quando em níveis elevados. Estabelecer níveis de segurança para o fluoreto em águas de consumo é uma medida imprescindível de proteção à saúde humana.

O objetivo desta revisão foi analisar a potabilidade da água para consumo humano quanto ao teor de fluoreto, considerando o balanço entre benefícios e riscos à saúde no contexto brasileiro. Adicionalmente foram produzidos subsídios com vistas à revisão da legislação nacional.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Para seleção do material analisado, foi consultada a base de dados do Centro de Revisão e Disseminação da Universidade de York, mantida pelo Instituto Nacional para Pesquisa em Saúde do Reino Unido para subsidiar tomadores de decisão. A base é atualizada diariamente abrangendo, entre outros, estudos indexados em PubMed/Medline e trabalhos produzidos por importantes centros de revisão sistemática. Foi utilizada a palavra “Fluoride”. Foram incluídas as revisões sistemáticas sobre os benefícios e riscos da água fluoretada para a dentição e para a saúde óssea publicadas entre os anos 2000 e 2009. A partir da busca foram encontrados 77 trabalhos de revisão sistemática, dos quais cinco abordavam as questões de interesse. Duas delas tinham como objetivo verificar possíveis efeitos adversos.18,31 Outras três tratavam dos efeitos de fluoretos na saúde óssea.10,13,33 Além disso, foi incluída uma revisão sistemática, realizada a pedido do Governo da Austrália, sobre eficácia e segurança da fluoretação das águas.f

Para determinar os teores ótimos de fluoreto no Distrito Federal e nas capitais brasileiras, dados de latitude, longitude, altitude e temperatura (de 2008) foram obtidos do Instituto Nacional de Meteorologia.

Além disso, foram consultados sítios eletrônicos de agências governamentais e documentos oficiais atinentes ao tema.

Os resultados da análise focalizaram três tópicos: benefícios do fluoreto na água, seus riscos e padrões adotados em diferentes países.

BENEFÍCIOS DO FLUORETO NA ÁGUA

Nas últimas décadas do século XX, o declínio da cárie dentária na população infantil foi descrito em vários países desenvolvidos. A causa mais importante desse fato epidemiológico, inédito até então, tem sido atribuída à expansão do uso de fluoretos.

Acreditava-se que o principal efeito preventivo era decorrente da sua ingestão durante a formação do esmalte dentário, tornando-o mais resistente ao ataque de cárie. Hoje, sabe-se que o efeito anticárie do fluoreto depende essencialmente de sua presença constante no meio ambiente bucal (saliva, placa bacteriana dentária e superfície do esmalte), o que pode ser assegurado tanto pelo uso sistêmico do flúor (água e sal de cozinha) quanto pelo uso tópico (creme dental, enxaguatório, gel, verniz).9

O emprego do fluoreto em medidas de saúde pública é bastante amplo em todo o mundo. Em alguns países, o uso difundido de creme dental fluoretado é a única estratégia populacional para prevenção da cárie dentária. A despeito disso, a seleção da melhor opção para assegurar o acesso a fluoretos em termos de estratégia de saúde pública depende da prevalência e distribuição da doença, bem como da mobilidade, do nível educacional e econômico e aceitabilidade da população.

A utilização dos fluoretos como meio preventivo e terapêutico da cárie dentária iniciou-se em 1945 e 1946 nos EUA e Canadá com quatro estudos pioneiros, cujo principal objetivo foi investigar a efetividade da medida.3 Em 1951, a fluoretação de águas passa a ser política oficial dos EUA. Em 1960, cerca de 50 milhões de residentes nos EUA eram beneficiados pela medida, que atingiu, em 2006, cerca de 60% da população daquele país, sendo considerada uma das dez medidas de saúde pública mais importantes do século XX.5

No Reino Unido, a medida se disseminou a partir de 1960.1 Na Nova Zelândia, perto de 65% da população recebia o benefício em 1968.23 Na República da Irlanda, por volta de 1996, 66% da população do país era beneficiada pela medida.23

O método tem sido recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), entre outras importantes entidades mundiais da área da saúde. Em 1986, em uma conferência internacional intitulada “Uso apropriado de fluoretos”, foi destacado que a fluoretação de águas é efetiva, segura e barata, e que deveria ser implementada e mantida onde fosse possível.35

No Brasil, a fluoretação ao tratamento das águas de abastecimento iniciou-se em 1953 no município de Baixo Guandu. Comparações entre o índice de cárie em escolares entre seis e 14 anos de idade entre 1953 e 1963 mostraram resultados semelhantes aos obtidos nos EUA e Canadá. Estudo realizado em Barretos, SP, em população similar, confirmou os resultados de Baixo Guandu.25 Após tornar-se lei federal, a medida expandiu-se intensamente nos anos 1980. Em 2006, o benefício atingia cerca de 100 milhões de pessoas. O Brasil apresentou importante redução na experiência de cárie entre 1986 e 2003. O índice de cárie aos 12 anos reduziu-se de 6,7 para 2,8 dentes atingidos.22 Dados de 2003 mostraram que crianças e adolescentes residentes em cidades com fluoretação das águas apresentavam índice de cárie cerca de um terço menor do que os residentes em cidades sem o benefício.g

Entre os mais de 60 países que adotaram a fluoretação de águas como método de prevenção e controle da cárie dentária destacam-se, com maiores coberturas da medida, Hong Kong (100%), Singapura (100%), Israel (75%), Colômbia (70%), Malásia (aproximadamente 70%), Irlanda (66%), Austrália (61%), EUA (61%), Nova Zelândia (61%), Brunei (56%), Brasil (aproximadamente 50%), Canadá (43%) e Chile (40%). No início do século XXI, a fluoretação beneficiava cerca de 400 milhões de pessoas.1

Uma das revisões consultadas18 incluiu dois estudos de coorte prospectivos, um de coorte retrospectivo e 23 outros comparando índices de cárie antes e depois da fluoretação de águas. Os resultados indicaram que a fluoretação das águas foi efetiva na prevenção de cáries e foi estatisticamente associada com (i) diminuição da proporção de crianças com cárie, com mediana das proporções de redução obtidas nos estudos de 14,6%; e (ii) redução nas médias de dentes cariados, perdidos e obturados devido à cárie equivalente a 40% de prevenção de novas cáries. O efeito da fluoretação das águas foi evidente, mesmo assumindo-se a presença de outras fontes de uso de fluoretos, como os dentifrícios fluoretados; quando a fluoretação foi interrompida, as diferenças nos desfechos de cárie entre regiões com e sem fluoretação reduziram.18

A revisão publicada nos EUA31 incluiu oito estudos transversais, um ensaio clínico não randomizado, oito estudos prospectivos e um estudo de séries temporais. Os resultados indicaram i) redução média entre 30% e 50% na experiência de cáries de indivíduos residentes em regiões com água fluoretada, comparados com residentes em regiões sem a medida; ii) a paralisação da medida implicou aumento de 17,9% na experiência de cárie.

A revisão australianaf contemplou as publicações anteriores e adicionou um estudo conduzido na Finlândia,28 sem que essa inclusão modificasse as conclusões relativas à redução da prevalência de cáries decorrente da fluoretação de águas.

Por todos esses aspectos, pode-se concluir que a fluoretação de águas é uma medida efetiva de controle e prevenção da cárie dentária em crianças e adolescentes.

RISCOS DO FLUORETO NA ÁGUA

Uma das revisões consultadas avaliou os efeitos negativos da fluoretação das águas documentados na literatura científica.18 A principal associação encontrada em níveis abaixo de 4,0 mg F/L foi com fluorose dentária, distúrbio de desenvolvimento do esmalte que ocorre durante a formação do dente, caracterizado por hipomineralização e maior porosidade da região imediatamente abaixo da superfície do esmalte dentário. Com concentrações acima de 1,0 mg/L de flúor na água de abastecimento, opacidades começam a ficar visíveis na superfície do esmalte.27

As opacidades são simétricas, pois os dentes formados no mesmo período têm a mesma alteração. Entretanto, existem opacidades de esmalte de origem não-fluorótica e que podem se manifestar simetricamente.7 Enquanto as opacidades não-fluoróticas são arredondadas e delimitadas (Figura 1), as fluoróticas são difusas e transversais (Figura 2).

 

 

O efeito do fluoreto sobre o esmalte é dose-dependente, ou seja, sempre que houver ingestão de fluoreto durante a formação do esmalte, haverá certo nível de fluorose, porém seu significado clínico não é linear, mas vai depender das várias fontes a que o indivíduo estiver exposto e do tempo que essa exposição durar.

Com o aumento da dose de fluoreto a que uma criança é exposta, as opacidades ficam ainda mais visíveis, podendo caracterizar a fluorose dentária num grau mais severo. Na Figura 3 é apresentado um caso de fluorose severa devido a água de poço com 3,6 mg F/L – valor cinco vezes maior que a concentração ótima para nosso clima.

 

O período crítico de exposição a doses excessivas de fluoreto para as duas dentições é do nascimento até oito anos de idade.17

Devido aos efeitos esperados da fluoretação da água diante dos elevados padrões de prevalência e gravidade da cárie dentária nos anos 1950, a fluorose dentária esteticamente aceitável decorrente da medida foi considerada como o preço a ser pago pelo benefício da prevenção da cárie.

Entretanto, reconhecia-se que esse valor poderia variar, conforme o volume diário de ingestão de água, e algum tempo depois foi mostrado que crianças residentes em regiões mais quentes tinham menos cárie e mais fluorose, em comparação com as residentes em regiões mais frias, mas de mesmo teor de flúor nas águas de consumo.12

Por essa razão, um método foi formulado para determinar o teor ótimo de fluoreto na água de abastecimento, levando em consideração o efeito da média das temperaturas máximas diárias sobre o consumo de água por crianças. Assim, um intervalo de valores foi estabelecido de modo a expressar a concentração ótima de fluoreto (0,7 a 1,2 mg F/L), conforme a temperatura nas diferentes regiões dos EUA (Figura 4), que oscilava de 10,9ºC (51,7°F) a 29,6°C (85,3ºF).12 Assim, o teor ótimo de fluoreto específico para cada região passou a ser definido por meio de uma fórmula matemática que considera a ingestão de líquidos e a temperatura ambiental.

 

Os efeitos adversos provocados pela ingestão prolongada de elevados teores de fluoreto de ocorrência natural na água também são conhecidos em nosso meio. Distúrbios no esmalte dentário de escolares expostos a águas com teores elevados de fluoreto foram documentados em Pereira Barreto, SP, e em Cocal do Sul, SC.4,32 Com a interdição das fontes, os casos múltiplos de fluorose, que caracterizavam a endemia, deixaram de ocorrer.

Apenas parte dos casos de fluorose dentária representa problema estético. McDonagh et al18 revisaram 88 estudos que atenderam aos critérios de inclusão, separando os efeitos decorrentes de qualquer grau de fluorose dentária dos efeitos associados a fluorose de significado estético. A prevalência de fluorose de significado estético foi estimada em 10,0% (IC95%: 5,0;17,9) e 12,5% (IC95%: 7,0;21,5) para 0,7 e 1,0 mg F/L, respectivamente. Análise de regressão mostrou forte associação entre o nível de fluoreto e a proporção de população com qualquer grau de fluorose. O efeito da exposição a diferentes concentrações de fluoreto na água comparado com áreas de até 0,4 mg F/L foi estimado, e diferença de 15% (IC95%: 4,1;27,2) foi encontrada em áreas com 1,0 mg F/L e de 18,9% (IC95%: 7,2;30,6), em áreas com 1,2 mg F/L.

Pode-se concluir que a proporção de níveis de fluorose de significado estético em crianças e adolescentes diminui conforme as concentrações de fluoreto na água se aproximam do intervalo entre 0,5 e 0,7 mg F/L. Isso corresponde a maior proporção de fluorose sem comprometimento estético e significa teor seguro de flúor, seja na água com fluoreto de ocorrência natural, seja na água artificialmente fluoretada (Figura 5).

 

Revisão de literatura sobre percepção de estética e fluorose dentária mostrou que graus muito leve e leve de fluorose dentária não produziram impacto negativo na qualidade de vida das populações investigadas.6 No Brasil, estudos em áreas com teor ótimo de fluoreto na água não têm mostrado impacto na insatisfação com a aparência dos dentes.19,20 Investigação com adolescentes em Pelotas, RS (água fluoretada desde 1962 e maioria dos casos de fluorose nas categorias muito leve e leve), mostrou associação positiva entre fluorose dentária e valores mais favoráveis de qualidade de vida.24

Águas engarrafadas também podem constituir risco de fluorose. No Reino Unido, os teores de 12 tipos de águas engarrafadas oscilaram entre 0,1 e 0,8 mg F/L.30 No mercado brasileiro, teores acima de 0,7 mg F/L foram notados em 10,6% de 104 marcas comerciais de águas minerais,34 indicando a necessidade de maior controle nas águas minerais industrializadas.

Ocorrências de câncer e de fratura óssea não foram associadas à fluoretação da água.18 A fluorose esquelética tem sido observada em áreas com concentração de fluoreto maior que 5,6 mg F/L.7 Revisões sistemáticas têm mostrado que: i) prescrição médica de suplementos com flúor pode aumentar a densidade mineral óssea de quadril e coluna vertebral, dependendo do tempo de duração; nenhuma evidência foi observada em relação ao risco de fratura de quadril ou coluna; dose baixa de flúor (20 mg por dia ou menos) foi associada com significativa redução do risco de fratura;33 ii) embora o flúor seja capaz de aumentar a densidade mineral óssea (DMO) da coluna lombar, ele não provoca redução da ocorrência de fraturas vertebrais; o aumento da dose de flúor pode resultar em maior risco de fraturas não vertebrais e efeitos adversos gastrointestinais sem qualquer efeito na taxa de fratura vertebral;13 iii) até 1,0 mg F/L não tem qualquer efeito adverso na resistência óssea, na DMO e na incidência de fraturas.10

Assim, concentração elevada de fluoreto na água representa risco de fluorose dentária para crianças com esmalte dentário em formação. A gravidade do efeito para a população está relacionada à concentração presente na água. Diferença de 15% (IC95%: 4,1;27,2) na prevalência de fluorose funcionalmente significativa foi encontrada na comparação de áreas com 1,0 mg F/L e 0,4 mg F/L em estudos envolvendo principalmente países de clima temperado.18

POTABILIDADE DA ÁGUA E CONCENTRAÇÃO DE FLUORETO

Vários países possuem recomendações específicas em relação ao parâmetro fluoreto. Na América do Sul, a maioria dos países adota 1,5 mg F/L como VMP.h Nos EUA, a Agência de Proteção Ambiental definiu 4,0 mg F/L como o nível de concentração máximo para os fluoretos em sistemas de abastecimento público como padrão de potabilidade da água. Entretanto, existe recomendação específica para que se adote o limite de 2,0 mg F/L, a fim de reduzir o risco de fluorose dentária.i No Canadá, a fluoretação das águas é uma decisão de cada município. O Comitê Federal sobre Fluoretação recomenda concentração ótima entre 0,8 e 1,0 mg F/L. O governo canadense recomenda o valor de 1,5 mg F/L como concentração máxima aceitável.j Nos países europeus, a concentração máxima de fluoretos permitida em águas de abastecimento é de 1,5 mg F/L. A Irlanda adota legislação específica, mais restritiva que a européia, limitando a 1,0 mg F/L a concentração em água de abastecimento.k Na Austrália, admite-se até 1,5 mg F/L quando de ocorrência natural.l Na Ásia, Hong Kong tem reduzido nos últimos anos os níveis ótimos de fluoretos adicionados à água de abastecimento. Até 1978, o teor ótimo era de 1 mg F/L, quando foi reduzido para 0,7 mg F/L,11 e em 1988 foi diminuído para 0,5 mg F/L.15 Cabe destacar que a média das temperaturas máximas diárias da região de Hong Kong é de 24,7°C.

Em 1984, a OMS definiu 1,5 mg F/L como limite para água potável e segura. Esse valor foi reavaliado na última revisão,37 concluindo-se não haver evidências para alterá-lo. Entretanto, a OMS enfatiza que esse valor não é fixo, mas deve ser considerado em cada contexto.

No Brasil, a primeira norma federal foi publicada em 1977 e adotou o valor de 1,7 mg F/L como critério de padrão de potabilidade da água. Atualmente, o teor de 1,5 mg F/L é adotado para o território nacional como VMP.d Esse valor foi estabelecido com base em relatórios técnicos da OMS, os quais serviram de referência para muitos países, independentemente de suas condições climáticas. Destaca-se na norma que “os valores recomendados para a concentração de íon fluoreto devem observar a legislação específica vigente relativa à fluoretação da água, em qualquer caso devendo ser respeitado o VMP desta Tabela”.d

Essa redação pode levar à interpretação de que a expressão “em qualquer caso” diz respeito tanto ao fluoreto de ocorrência natural quanto ao agregado à água para fins de prevenção de cárie dentária, o que não se justifica diante dos conhecimentos apresentados. Assim, o VMP para fluoreto naturalmente presente na água não pode ser usado para limite do fluoreto agregado durante o tratamento da água.

Tem sido sugerido estabelecer concentração ótima de fluoreto na água levando em conta, em vez da temperatura do ar, a dose a que crianças são expostas (mg F/dia/kg de peso corporal). Assim, Burt2 sugeriu em 1992 que a dose diária de 0,07 mg F por kg de peso corporal deveria ser considerada como o limite superior, para que a fluorose decorrente não comprometesse os benefícios anticárie do fluoreto ingerido por criança na faixa etária de risco. Entretanto, essa sugestão foi feita sem qualquer estudo longitudinal de dose-efeito e a associação entre dose e fluorose decorrente não foi encontrada,16 o que requer estudos adicionais.

Com base na média das temperaturas máximas diárias registradas nas capitais brasileiras apenas para o ano de 2008 (Tabela), é possível calcular os valores de concentração ótima de fluoreto conforme a fórmula recomendada na Portaria 635/75 e verificar sua variação em torno de 0,6 mg F/L (Boa Vista, RR) e 0,8 mg F/L (Curitiba, PR). Embora não haja registro dos valores diários de temperatura do ar para todos os municípios brasileiros, com base nas características da temperatura nas diferentes regiões pode-se afirmar que o teor adequado de fluoreto recomendado para a maioria dos municípios brasileiros varia em torno dessa faixa (Tabela).

Em consulta às bases eletrônicas das legislações estaduais e municipais, observou-se que dois estados apresentam legislação complementar. No Estado de São Paulo, a Resolução SS-65/2005 estabelece que a água deve conter 0,7 mg F/L, aceitando-se variação entre 0,6 e 0,8 mg F/L.m No Estado do Rio Grande do Sul, a Portaria SSMA 10/99 estabelece que a concentração ideal do fluoreto na água destinada ao consumo humano é de 0,8 mg F/L, admitindo-se variação entre 0,6 e 0,9 mg F/L.n

Quando Galagan & Vermillion12 propuseram uma fórmula para determinação do nível ótimo de fluoreto, ao considerarem a correlação entre a ingestão de líquidos e a média das temperaturas do ar trouxeram importante contribuição para a aplicação do método. Deve ser ressaltado que a concentração ótima foi calculada com base na oscilação de temperatura dos EUA, cujo clima é temperado, podendo não se aplicar para regiões de climas tropicais, para os quais 0,5 mg F/L pode ser considerado apropriado.36 No caso do Brasil essa não é a preocupação para as regiões Sul e Sudeste, onde predomina na maior parte do território clima subtropical,14 mas pode ser para cidades das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, de climas genuinamente tropicais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante dos conhecimentos revisados, observa-se que a maioria dos países adota 1,5 mg F/L como VMP para flúor de ocorrência natural. Irlanda, situada ao norte do Trópico de Câncer, e Hong Kong, localizado ao sul dele, constituem exceções. Na Austrália, país de variação climática semelhante à do Brasil, o VMP de 1,5 mg/L é explicitamente adotado para flúor de ocorrência natural, e de até 1,0 mg F/L para áreas em que o fluoreto é adicionado.l

No Brasil, os teores ótimos de fluoreto na água tratada (com máximo de benefício anticárie e mínimo de risco de fluorose dentária funcionalmente significativa), considerando as capitais e o Distrito Federal, variam entre 0,6 e 0,8 mg F/L. Para algumas cidades do Sul do País, até 0,9 mg F/L é admitido. Enquanto não se dispõe de outras fontes de captação de água potável nem de tecnologias de custo aceitável para o ajuste ou a remoção de fluoreto das águas, o VMP de 1,5 mg F/L pode ser aceito como nível tolerável em águas para consumo humano cuja ocorrência de fluoreto seja natural.

Entretanto, em cumprimento ao Decreto Federal 5440/2005,º quando a concentração de fluoreto de ocorrência natural estiver acima de 0,9 mg F/L, os responsáveis pelos sistemas e soluções alternativas coletivas de abastecimento de água devem fornecer aos consumidores a seguinte informação: “Esta água não deve ser consumida diariamente por menores de oito anos de idade”, conforme a legislação vigente.

A porcentagem da população brasileira abastecida com água naturalmente fluoretada é desconhecida, mas estudo feito em 74% dos municípios do Estado do Piauí mostrou que, apesar de em 151 deles a concentração ter sido baixa (< 0,3 ppm F), em 13 havia de 0,31 a 0,59 mg F/L.29 Apenas um terço dos serviços municipais de saneamento realizava análise da água bruta, sendo mais freqüente a análise de água proveniente de mananciais superficiais do que subterrâneos.p Embora os dados disponíveis não permitam traçar um panorama da população brasileira, estima-se que são poucas as localidades no País nas quais fluoreto de ocorrência natural atinja concentrações entre 1,0 e 1,5 mg F/L.

A obrigatoriedade de prestação de informação à população incentiva autoridades públicas de todos os níveis de governo (federal, estaduais e municipais), as empresas de saneamento e demais interessados a assegurar concentrações de fluoreto de ocorrência natural próximas dos teores ótimos. Isso poderá ocorrer em médio e longo prazos e depende de medidas locais, mas em muitos casos medidas mais complexas serão necessárias. Estas envolverão acordos entre diferentes esferas de governo e as empresas de saneamento. Esse processo constituirá importante subsídio para que os padrões de qualidade de águas minerais comercializadas no País sejam revisados e definidos por legislação específica.

Em relação ao fluoreto adicionado à água, o maior conhecimento sobre as condições climáticas das diferentes regiões brasileiras justifica a necessidade da revisão da Portaria 635, aprovada em 1975, tendo em vista a expansão do programa nacional de fluoretação da água de abastecimento público para locais de clima tipicamente tropical.

AGRADECIMENTO

À Coordenação Nacional de Saúde Bucal e à Secretaria de Vigilância à Saúde do Ministério da Saúde, ao Instituto Nacional de Meteorologia e ao Centro Colaborador do Ministério da Saúde em Vigilância da Saúde Bucal da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, pelo apoio.

Às Profas. Dras. Livia Tenuta e Maria da Luz Rosário de Sousa, da Faculdade de Odontologia da Unicamp, pela cessão das fotos utilizadas no artigo.

REFERÊNCIAS

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