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O sistema pré-pago de abastecimento d’água e a geração dos sem água

Ana Candida Echevenguá – advogada
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OAB/RS 30.723

O sistema pré-pago de abastecimento d’água e a geração dos sem água

“Quem pode pagar, tem acesso à água e quem não pode, não tem. Estamos formando uma sociedade em cima do ter e não do ser. Em números percentuais, aqueles que têm são em menor número do que os que apenas são e só por serem já mereceriam nosso respeito”. Ricardo Morishita Wada Diretor do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor do Ministério da Justiça.

Ana Candida Echevenguá *

I – Introdução

Há previsão de que, em 2050, faltará água no planeta.

A água é um direito humano prévio a todos os outros. Sem o acesso a um mínimo essencial dessa não há que se falar nos demais direitos consagrados: vida, saúde, dignidade humana…

Apesar do valor econômico, ela é fulcral para a saúde pública.

Em novembro de 2002, o Comitê da ONU para os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais afirmou que o acesso a quantidades suficientes de água limpa para uso pessoal e doméstico é direito fundamental do ser humano.

O abastecimento de água é um serviço tão essencial que a Organização Mundial da Saúde recomenda que seja fornecido gratuitamente aos destituídos de condição financeira de arcar com seus custos.

Tanto a Organização Mundial da Saúde como a Organização Pan-Americana da Saúde comprovam que a melhoria do abastecimento de água e a destinação adequada para os dejetos sólidos previne 80% dos casos de febre tifóide e paratifóide e reduzem até 70% dos casos de tracoma e esquistossomose. As ações evitam ainda metade dos casos de desinteria, amebíase, gastroenterites e infecções cutâneas. Afinal, uma das causas das epidemias é a falta de água tratada para o consumo humano.

Ainda assim, atualmente, mais de um bilhão de pessoas no mundo encontram-se privadas do acesso à água potável. Conforme dados da Organização das Nações Unidas, uma em cada seis pessoas no mundo não tem acesso à água. Segundo o Programa Mundial de Avaliação dos Recursos Hídricos, da UNESCO, na pior das hipóteses, sete bilhões de pessoas em 60 países estarão enfrentando falta de água na metade deste século. Na melhor das hipóteses, dois bilhões de pessoas em 48 países estarão nesta situação. Isto vai depender de fatores como o crescimento populacional e o desenvolvimento de políticas. E, em outubro de 2003, o Programa para Assentamentos Humanos – HABITAT, da ONU, divulgou que:

– mais de um bilhão de pessoas nos países em desenvolvimento estão sem água segura para beber

– quase três bilhões de indivíduos vivem sem acesso a saneamento adequado.

II – Sistema de abastecimento pré-pago de água

Algumas companhias de saneamento, no Brasil, estão efetuando testes com a tecnologia de medição eletrônica de consumo de água para implantação do polêmico sistema de cobrança antecipada.

II.a. Implantação do sistema no mundo

A nova tecnologia que preconiza a cobrança antecipada de prestação do serviço público de fornecimento de água é incentivada pelo Banco Mundial, que a considera ideal na redução do inadimplemento e do aumento do débito acumulado em áreas pobres. Ele afirma que o sistema facilita a recuperação do custo e acelera o ingresso do setor privado na prestação de serviços d’água.

Na Inglaterra, em 1996, mais de 16 mil sistemas de cobrança antecipada foram instalados. A cidade de Birmingham contestou judicialmente a legalidade do procedimento comprovando que, no seu território ocorreu, em um mês, mais de 2.500 autodesconexões. Outras cidades experimentaram aumento de problemas de saúde devido à exclusão do acesso d’água. Em 1998, o sistema mencionado restou proibido no Reino Unido.

Na África do Sul, a limitação do consumo de água devido ao pré-pagamento implicou aumento de doenças como o cólera e dengue.

Na Argentina e na Bolívia a privatização – forçada por acordos internacionais enfraquecedores da soberania – mostrou-se ineficaz, piorando a qualidade dos serviços prestados e implicando majoração de tributos.

II.b. O sistema pré-pago no Brasil

Segundo o Censo 2000 do IBGE, de 44.795.101 domicílios no Brasil, somente 34.859.393 dispõem de abastecimento de água e 21.160.735 possuem banheiro e esgoto sanitário. Aproximadamente 6,97 milhões de domicílios utilizam poços ou nascentes e 2,95 milhões usam outras formas de abastecimento.

A tecnologia do pagamento antecipado é testada há mais de quatro anos, em cem domicílios, pela SANEATINS – Companhia de Saneamento de Tocantins, precursora na implantação do sistema pré-pago, que aguarda autorização do PROCON e do Ministério Público para instalá-lo em escala comercial. A primeira fase do plano prevê o investimento de R$ 3 milhões e instalação de 10 mil gerenciadores (hoje, no Estado há 210 mil ligações de água). Segundo seu presidente, Dorival Roriz, o sistema “elimina diversos custos para a companhia e isso será revertido numa diminuição da tarifa que facilitará o acesso (…)E possibilita a existência de um cartão social, que forneça água gratuitamente para a população de baixa renda. Depende apenas das políticas do governo. SANEATINS afirma que, mensalmente, ao usuário será concedido um empréstimo: no final dos créditos, esse continuará recebendo água por três dias úteis, que serão descontados do cartão seguinte. Até o fim do ano, funcionará em 10 mil casas de Palmas. Para a empresa, o novo sistema é dotado das seguintes vantagens:

– para si: diminuição de reclamações e fraudes, redução do processamento de dados e do volume de água produzido, devido à melhor utilização e controle do consumo

– e para o usuário/consumidor: apurado controle do consumo, detecção imediata de vazamentos e uso de água de acordo com a capacidade financeira.

A SINEAGO, de Goiás, realiza testes em 800 domicílios em Abadia de Goiás. A SABESP, de São Paulo, efetua testes laboratoriais, por enquanto.

II.c. Como funciona este sistema?

O sistema de cobrança pelo cartão pré-pago é composto de um medidor eletrônico de consumo residencial – uma turbina acoplada a uma central eletrônica, ligada a um gerenciador de consumo instalado na sala ou na cozinha da casa. Conectado (via linha telefônica) ao computador central da companhia de saneamento, o gerenciador tem dispositivo de abastecimento (similar ao telefônico), com um cartão, e de empréstimo. O usuário compra o cartão respectivo, raspa uma tarja e digita o código no gerenciador de consumo. Quando faltam três dias para o término dos créditos, o gerenciador avisa. Quando estes acabam, a água é cortada até a próxima reposição de créditos. O equipamento custa R$ 90,00.

Trata-se, portanto:

– de um processo célere e eficiente de corte de água diante do inadimplemento

– de marginalização pelo estigma de uma sociedade que se autodenomina de civilizada ao deixar compulsoriamente o hipossuficiente sem esse serviço essencial, pondo em risco a saúde da coletividade.

– de transformação da água em mercadoria (mercantilização da água)

– e de resolução facilitada do problema financeiro das companhias já que terão aumento de lucro, redução dos riscos do negócio com o desaparecimento da figura do usuário inadimplente.

II.d. (Des) vantagens do sistema

Os defensores deste sistema pregam a racionalização de consumo de água, diminuição de custos e de inadimplência. Falácia! Os cartões pré-pagos reduzirão o consumo ao aumentar o volume de pessoas sem acesso à água e ao saneamento básico. O usuário/consumidor, diante da dificuldade de pagamento, autodesconectar-se-á, recrudescendo o número dos “sem água”, em afronta à preconizada sadia qualidade de vida e à preservação da saúde pública.

A organização norte-americana Public Citizen, que atua há 30 anos na defesa do consumidor, foi a primeira a contestar a exigência do pré-pagamento porque este:

– gera impactos sociais negativos

– nega dignidade ao hipossuficiente, condicionando o acesso à água à capacidade de pagar, levando-o a buscar métodos alternativos de sobrevivência.

Sabrina Mello, assessora da Public Citizen no Brasil afirmou que, desta forma, “muitas famílias precisam escolher entre água, comida ou remédios.

III. Legislação vigente no Brasil

A Constituição Federal dita os princípios a serem seguidos pelos três Poderes. E defende os direitos da população, priorizando a vida digna desta ao:

– determinar a obrigação do Estado de prestar, direta ou indiretamente, os serviços públicos

– estabelecer o sistema único de saúde e o controle da água

– estabelecer que, ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, participar da formulação da política e da execução das ações de saneamento básico

– estabelecer os princípios de defesa do meio ambiente e

– determinar a formação de consórcios públicos e de convênios de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem como a continuidade dos serviços essenciais.

Assim como a soberania e a cidadania, a dignidade da pessoa humana é um sobreprincípio constitucional que ultrapassa o direito à vida, à saúde (ou seja, ausência de doença), ao bem-estar físico, psíquico e mental do cidadão e deve ser atingida através: do desenvolvimento social e econômico nacional, com a redução das desigualdades sociais e regionais da viabilização dos direitos sociais à saúde e à moradia da defesa do meio ambiente ecologicamente equilibrado e da defesa do consumidor.

Aqui, no Brasil, os serviços públicos, como o de abastecimento essencial de água, estão (ou deveriam estar) diretamente ligados às garantias constitucionais de proteção à vida, à saúde, à segurança e à dignidade da pessoa humana, previstas no texto constitucional. O saneamento básico é direito fundamental do consumidor, garantido tanto pela Carta Magna como pela Lei Orgânica da Saúde. Além deste, podemos citar: direito a um ambiente saudável direito à educação para o consumo direito a ser ouvido e a participar do processo decisório direito à informação direito ao acesso à água…

Importante repisar que o Código de Defesa do Consumidor define o saneamento básico como um dos fatores determinantes e condicionantes da saúde. E obriga, em seu artigo 22, que os órgãos públicos forneçam serviços adequados, eficientes, seguros e contínuos, se essenciais.

Art. 22, CDC – Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, SÃO OBRIGADOS A FORNECER SERVIÇOS ADEQUADOS, eficientes, seguros E, QUANTO AOS ESSENCIAIS, CONTÍNUOS.

Parágrafo único. Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste Código.

IV. Conclusão

O Banco Mundial apurou que o Brasil consome 150 litros/pessoa/dia de água. No Chile, 204 litros/pessoa/dia e nos EUA, 650 litros/pessoa/dia.

A implantação do sistema pré-pago agravará a situação do saneamento no Brasil. A interrupção da prestação do serviço de abastecimento de água, seja por inadimplemento ou por insuficiência de créditos (no caso do sistema pré-pago) é inconstitucional e ilegal. E implica ofensa direta à dignidade humana, afetando, diretamente, a população (e sua saúde) com baixo ou nenhum poder aquisitivo.

Segundo Ricardo Morishita Wada, diretor do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor, do Ministério da Justiça, o corte automático do fornecimento de água inflete diretamente na saúde pública. E o sistema em pauta é eficaz somente no controle da inadimplência: Não é possível o controle social quando a população é coagida a pagar e não tem opção em relação ao serviço (…) “Para conscientizar o consumidor não é necessário cortar sua água de uma maneira brusca e sim educá-lo para o consumo” (…) “Me preocupo com o que está atrás disso e me pergunto se a sociedade brasileira, em algum momento, está sendo ouvida. Quem pode pagar tem acesso à água e quem não pode, não tem. Estamos formando uma sociedade em cima do ter e não do ser. Em números percentuais, aqueles que têm são em menor número do que os que apenas são e só por serem já mereceriam nosso respeito”. O sistema vai legitimar o corte de água.

É inadmissível que uma prestadora desse serviço público, unilateralmente, interrompa o fornecimento de água destinada ao consumidor final, pois o sistema jurídico brasileiro não contempla a justiça privada: ele é dotado de medidas judiciais para responsabilizar o cidadão inadimplente. Vivemos sob o império da lei!

A continuidade e a essencialidade do mencionado serviço importa não somente ao indivíduo mas à sociedade e a cidadania brasileira. Além da ofensa à saúde pública, observa-se que, com a cobrança antecipada em discussão, o constrangimento e a exclusão do cidadão é irreversível.

Conclui-se que a prestação adequada do serviço público de natureza essencial, como o fornecimento de água tratada, deve ser efetivado de forma continua para preservação da saúde pública e da dignidade da pessoa humana. Não deve ser suspenso diante do inadimplemento ou de qualquer hipótese que não vise ao interesse da coletividade (situações de emergências que ponham em perigo a comunidade e/ou o consumidor).

* advogada ambientalista, Presidente da ong Ambiental Acqua Bios e Coordenadora Geral da Academia das Águas, email: [email protected].

Currículo do articulista:advogada ambientalista, Presidente da Ambiental AcquaBios, Coordenadora da Academia das Águas
Fonte: http://www.viajus.com.br

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