Milho, sorgo e trigo ampliam a gama de opções; agave, planta com que se faz tequila, tem potencial para ser um importante insumo do biocombustível
Há 50 anos, desde que o Programa Nacional do Álcool (Proálcool) foi criado, em 1975, a cana-de-açúcar é o insumo predominante do etanol brasileiro. A novidade é que outras matérias-primas começam a ganhar relevância na geração do biocombustível. Em 2024, o milho respondeu por cerca de um quinto da produção de etanol no país. As primeiras usinas comerciais que utilizam sorgo e trigo devem entrar em operação ainda este ano. O agave, por sua vez, apresenta potencial para se tornar um insumo de etanol nacional. A planta, um gênero de suculentas típicas de regiões semiáridas, é utilizada no México para fazer tequila e, na Bahia, fibra de sisal (ver box).
A produção brasileira de etanol em 2024, a maior já registrada, foi de 36,8 bilhões de litros (L), segundo dados da União da Indústria de Cana-de-Açúcar e Bioenergia (Unica). De acordo com o Plano Decenal de Expansão de Energia 2035, elaborado pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), vinculada ao Ministério de Minas e Energia, a demanda total do biocombustível deverá crescer para 48,2 bilhões de L ao fim de 10 anos.
O estudo da EPE também avalia que haverá no próximo decênio uma expansão significativa da oferta de etanol de milho. Hoje a principal alternativa à cana-de-açúcar, passará dos 7,4 bilhões de L verificados em 2024 para em torno de 16,3 bilhões de L em 2035, correspondendo a 30% da produção nacional. A União Nacional do Etanol de Milho (Unem) relaciona 24 usinas de etanol em operação no país que usam o cereal e 38 projetos de construção de novos estabelecimentos, sendo que 19 deles já foram autorizados pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) (ver infográfico abaixo). Sinop, em Mato Grosso, abriga a maior usina do mundo dedicada à produção de etanol de milho. Operada pela Inpasa, tem capacidade para processar 4,6 milhões de toneladas (t) de milho e produzir 2,1 bilhões de L de etanol por ano.
Uma das grandes vantagens do milho como insumo do etanol é a possibilidade de armazenamento do cereal, que pode ser processado em qualquer momento do ano. A cana-de-açúcar precisa ser beneficiada em até 48 horas após ser colhida, antes que o açúcar seja degradado. Além disso, devido ao seu processo de crescimento e maturação, a cana não está pronta para a colheita em todos os meses do ano. Essa característica faz com que as usinas de cana parem no período de entressafra, entre novembro e março.
O milho utilizado para a produção de etanol no último ano, de acordo com a EPE, representou apenas 15% da safra colhida em 2023/2024. No Brasil, mais de 75% da produção de milho ocorre na chamada “safrinha”, durante a entressafra da soja, que ocorre no outono e inverno. Outro cereal de cultivo na safrinha é o sorgo, usado na alimentação animal.
Além de etanol, as usinas que processam milho e outros cereais geram um subproduto destinado principalmente à ração animal, conhecido pela sigla DDGS, de grãos secos de destilaria com solúveis. Segundo o agrônomo Flávio Dessaune Tardin, da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) Milho e Sorgo, por apresentar um custo entre 15% e 25% menor do que o milho para um rendimento em etanol e DDGS quase equivalente, o sorgo tem sido adotado desde 2024 por usinas de etanol de milho para compor o mix de insumos. “Empresários já falam em processar 50% milho e 50% sorgo”, afirma o agrônomo.
Em 2025 foram anunciadas as primeiras usinas de etanol planejadas para trabalhar especificamente com sorgo, no Maranhão, em Mato Grosso do Sul e Alagoas. “Em regiões e microrregiões mais secas, o sorgo, que tem menor necessidade hídrica, apresenta desempenho melhor do que o do milho”, compara Tardin. A área produtora de soja do Matopiba, região que se estende por territórios do Maranhão, do Tocantins, do Piauí e da Bahia, e municípios do leste de Mato Grosso, conhecidos como vale do Araguaia, apresentam-se como os mais propícios para investimentos em usinas de etanol a partir do sorgo, conforme pesquisador da Embrapa Milho e Sorgo.
Aposta no trigo
Para a bióloga Glaucia Mendes Souza, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP) e coordenadora da Força Tarefa para a Descarbonização do Transporte com Biocombustíveis da Agência Internacional de Energia (IEA), diversificar as fontes de matérias-primas proporciona maior garantia à oferta de etanol. “Não é bom depender de uma única biomassa, que pode ter sua oferta e preço afetados de acordo com condições climáticas, doenças na lavoura e alterações na cotação internacional das commodities agrícolas”, argumenta.
No Sul do país, o trigo começa a ser utilizado para a produção de etanol. A primeira usina foi construída em Santiago, no Rio Grande do Sul, e terá capacidade para produzir mais de 13 milhões de L por ano, assim que sua licença operacional for aprovada, o que é aguardado para ocorrer ainda este ano. O estado quase não produz cana-de-açúcar, e o etanol, adquirido principalmente do Sudeste, não é competitivo diante da gasolina devido ao custo logístico. Na usina de Santiago será utilizado um trigo de baixa qualidade não aproveitado para a alimentação humana.
“É um trigo que, por condições climáticas, não atinge o padrão de qualidade exigido. Com isso, perde valor e acaba destinado para nutrição animal”, detalha Tiago Lacerda, diretor da CB Bionergia, companhia que investiu R$ 110 milhões na instalação da usina. Além de trigo, a planta poderá processar etanol com o uso de arroz, milho, sorgo, triticale, cevada e centeio.
Uma segunda usina de etanol de trigo e outros cereais, com capacidade para 210 milhões de L anuais a partir do fim de 2026, também está sendo erguida no Rio Grande do Sul, pela companhia Be8, com investimentos anunciados de R$ 1,2 bilhão.
O uso de milho e sorgo é predominante nos Estados Unidos, o maior produtor mundial do biocombustível, enquanto na Europa o trigo é mais usual. As usinas brasileiras que produzem etanol de cereais recorrem principalmente a fornecedores de tecnologia estrangeiros. Nos cereais, o principal componente energético é o amido. O processo de produção do etanol demanda a moagem do grão e sua mistura com água aquecida, formando um mosto de alta viscosidade.
Nesse mosto é acrescentada uma enzima, a alfa-amilase (ou a-amilase). Como detalha a bióloga Amanda de Souza, líder de aplicação da área de processamento de grãos da IFF América Latina, uma das principais fornecedoras de tecnologia para a produção de etanol de cereais no país, a enzima quebra a estrutura molecular do amido em cadeias menores. Essa etapa é conhecida como cozimento e liquefação. Em seguida, um segundo conjunto de enzimas, denominadas glucoamilase, “picota” as cadeias menores liberando glicose, um tipo de açúcar, permitindo o processamento pelas leveduras. Essa segunda etapa é conhecida como sacarificação e fermentação simultânea.
Na sequência, o processo de fabricação do biocombustível é idêntico ao da cana-de-açúcar. O líquido obtido é encaminhado para destilação, onde ocorre a separação do etanol.
“Uma das tarefas da IFF é fornecer a combinação de enzimas e leveduras, dentro do nosso acervo, mais adequadas para as características do insumo que vai ser processado em cada momento da safra, aumentando o rendimento do processo produtivo”, diz Souza.
Uma tendência que ganha força entre os produtores de etanol de cana-de-açúcar, avalia Tardin, da Embrapa, é o investimento em estabelecimentos flex. Essas unidades são usinas tradicionais de cana que incorporam as etapas de processamento enzimático de cereais. Com isso, sua estrutura produtiva é aproveitada durante todo o ano, pois passam a ser utilizadas durante o período da safra da cana e na entressafra podem dedicar-se à fabricação do etanol de milho, trigo ou sorgo.
Fonte: Revista Pesquisa