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Fukushima e o dilema da água

Em março de 2021 se cumpre 10 anos da segunda maior tragédia nuclear da história: O desastre de Fukushima, atrás apenas do desastre de Chernobyl. A usina atômica de Daiichi (TEPCO) foi atingida por um terremoto de 9º na escala Richter seguido de um tsunami, com ondas de 14 metros de altura que invadiram a sala onde estavam as bombas de refrigeração dos reatores, fazendo com que o combustível se superaquecesse causando explosões de grandes dimensões em 3 dos 4 reatores. Estas explosões acabaram causando liberação massiva de material radioativo tanto para o ar quanto para a água que entrou em contato com o sistema.

Neste artigo, iremos trazer um enfoque aos desafios ainda existentes na planta e na descontaminação da área, e como a água contaminada e seu tratamento estão no centro de uma importante discussão no momento.

A água na geração de energia nuclear

Resumidamente, um reator nuclear funciona quando barras de material radioativo são colocadas próximas umas das outras, numa distância tal que o calor gerado pela radiação aquece a água, gerando vapor que move a turbina, gerando assim energia (veja esquema). Porém quando a água por alguma razão interrompe a circulação no reator, estas barras simplesmente se superaquecem, causando vários efeitos adversos. Isto foi o que ocorreu em Fukushima, e a única forma de evitar que maiores danos possam ocorrer, é de todas as formas tentar resfriar o combustível, que ainda está gerando calor desde 2011. E acredite, os desafios de tentar resfriar estas barras seguem até hoje.

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Água: o resfriamento e o sacrifício

Com a ruptura dos reatores, a água que anteriormente não entrava em contato direto com o material radioativo, agora refrigera diretamente estas barras, e cada vez que esta água sai da região do acidente, ela carrega mais de 62 diferentes elementos radioativos. Mesmo em baixa concentração, esta água não fica em um cirucuito fechado, e o tratamento dado a este efluente é o que vamos ver a seguir. Os detalhes do processo, concentrações, tecnologias empregadas são de certa forma mantidos em segredo, porém algumas informações são públicas, então vamos nos centrar no processo desenvolvido. Iremos apresentar dados muito simplificados, com uma visão de tratamento de água e efluentes, tentando aproximar de processos utilizados na indústria, porém o real desafio é bem mais complexo e certamente um engenheiro nuclear traria muito mais detalhes desta empreitada.

Os números do descomissionamento de Fukushima:

– Mais de 4000 trabalhadores atuam diariamente hoje

– Custo total estimado em 184 bilhões de dólares

1061 tanques foram construídos até agora

O processo de decontaminação atual

Desde o incidente, a agua é continuamente usada para resfriar o material radioativo. Olhando sob a perspectiva de um contaminante, ele se comporta como um metal dissolvido, sendo que os principais são o Césio-137 e o Estrôncio-90 (ambos radioativos). Se formos na tabela periódica, veremos que eles são metais alcalino e alcalino-terroso, com comportamento de carga semelhante ao sódio e ao cálcio, por exemplo.

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O primeiro processo pela qual a água contaminada passa é uma co-precipitação. Este processo é semelhante ao abrandamento a frio, onde água com alta dureza recebe uma dosagem de Ca(OH)2, elevando o pH e fazendo com que os metais precipitem e saiam como lodo ao fundo, com a ajuda de um coagulante, neste caso um sal de ferro. (mais aqui sobre abrandamento a frio). Desta forma, a maior parte dos metais radioativos são removidos e estocados como resíduo radioativo.

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Sistema de resinas do processamento final (ALPS)

O clarificado então é filtrado, porém a água ainda possui alguns ug/l de material radioativo, e então segue para uma central de osmose inversa. O permeado deste processo como é quase isento de metais radioativos retorna para refrigerar o reator, sobrando então o concentrado da osmose inversa, que vai para um processo mais sofisticado, chamado Sistema Avançado de Processamento Líquido (ALPS).

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Adaptado deste site

Este sistema é constituído de uma série de resinas de troca iônica, que retêm os metais presentes na corrente do concentrado da Osmose, fazendo com que a água, uma vez entrando em contato com o material radioativo saia do sistema isento de minerais radioativos. Tudo certo até então, a água que uma vez foi utilizada, é completamente tratada e pode ser então descartada ou reutilizada na refrigeração, correto? Que bom se pudesse ser assim.

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Foto atual do site de Fukushima, com os 1061 tanques

Impossível não perceber que o entorno do local do acidente está repleto de tanques. Estes tanques são usados basicamente para armazenar este “efluente tratado”, que ainda não foi descartado mas que precisará de uma destinação até 2022, pois o local nao terá mais espaço para armazenar este efluente. Logo após o acidente, parte desta água contaminada escoou para o mar e a parte que era recuperada da refrigeração, girava em torno de 500 m3

por dia. Com a implantação dos processos descritos acima, a geração da água de refrigeração está em torno de 150 m3 por dia. A quantidade de efluente tratado armazenado atualmente é de 1,25 milhão de metros cúbicos.

Porque então se armazena toda esta água, se ela está tratada e isenta de metais radioativos? É então que entra um elemento chave da discussão: o trítio.

Um hidrogênio pesado e instável

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Para explicar este ponto, temos que entender um pouco mais sobre esta molécula chamada água, ou H2O. O hidrogênio, é o elemento mais simples da natureza, composto apenas de um próton e um elétron. Porém, o material radioativo em contato com a água quando decai libera muitos neutrons, e quando estes neutrons encontram um núcleo de hidrogênio (que é apenas um próton), são formados os isótopos mais pesados: deutério e o tritio. O deuterio é um hidrogênio com peso 2 (1 próton e 1 neutron), quando reage com o oxigênio temos então a água pesada. O deutério é relativamente comum, e aproximadamente 0,015% do hidrogênio que há em você é deutério. Por sorte ele é um elemento estável. Já o trítio é um hidrogênio com peso 3 (1 próton e 2 neutrons) porém ele é instável, liberando radiação beta de relativa baixa energia. Como curiosidade, alguns relógios com ponteiros luminosos possuiam trítio como componente fluorescente, como o visto abaixo. Atualmente, alguns países limitam esta aplicação do trítio como agente de indicação luminosa permanente.

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Relógio com ponteiro iluminado pelo efeito fluorescente do trítio gasoso no ponteiro

Os processos utilizados em tratamento de água e efluentes se baseiam nas diferenças físico-químicas que os elementos a serem retidos apresentam comparados com a água. A clarificação se dá pela diferença de peso da matéria orgânica, resinas pela diferença de carga elétrica, um filtro ou osmose inversa pela diferença de tamanho da partícula ou da molécula. Agora o trítio em uma molécula de água muda apenas o peso molecular da água, mas a molécula é a mesma: H2O, o que torna muito difícil um processo em larga escala separá-lo das moléculas convencionais de água.

A concentração de trítio se dá por unidades distintas das que usamos em tratamentos de água. TU, Becquerel (Bq) ou Curie são utilizados porque apresentam escalas e medições mais usuais na engenharia nuclear. Porém, podemos converter também para concentração molar. No caso dos tanques que armazenam a água tratada em Fuckushima, o último informe apontava uma concentração de trítio nos tanques de 4 milhões de Becquerel por litro. Isto passado a uma concentração molar, resulta em um valor aproximado de 0,000004 mol por metro cúbico de água armazenada. Quando convertido para os 1,3 milhões de metros cúbicos acumulados, chegamos à um total dissolvido nos tanques de aproximadamente 15 gramas de trítio, ou 100 ml de água tritiada.

Mesmo com esta ínfima quantidade, os valores estão acima do padrão de lançamento japoneses (60.000 Bq/l), e com a possibilidade de se chegar ao fim da capacidade de estoque de água, existe um dilema sobre o que se fazer com estes efluente estocado. Uma força tarefa foi realizada à pedido da empresa TEPCO, que levantou inúmeras hipóteses como vaporizar a água, geoinfiltração, hidrólise, lançamento do hidrogênio em forma de gás, e lançamento offshore de forma controlada durante décadas.

Não existem muitos estudos a respeito do lançamento de trítio em alto mar e dos efeitos na vida marinha e na cadeia alimentar, mas parece que esta é a provável solução que será adotada já a partir do ano que vem, apesar dos protestos dos pescadores de Fukushima e dos países vizinhos, principalmente da Coreia do Sul.

Muitos estudos piloto estão sendo conduzidos no intuíto de separar o trítio contido nestes tanques em um processo industrial de larga escala, porém nenhum ainda se apresentou de aplicação viável.

O desastre atômico de Fukushima deixou diversas lições quanto à segurança e concepção das usinas atômicas, e alguns países decidiram reduzir gradativamente a dependência desta forma de energia, aproveitando a forte demanda por fontes renováveis e a renovação da matriz energética.

Fonte: https://www.aguaeefluentes.com.br

Jacques Bidone Filho
Engenheiro Químico
[email protected]

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