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Fatores intervenientes na cristalização da estruvita para a recuperação do fósforo de esgoto

Resumo

O ciclo aberto que o fósforo percorre na sociedade contemporânea pode ser visto como uma das maiores falhas da sua sustentabilidade. Sendo este um elemento básico para qualquer ser vivo, é realmente incômodo pensar que todo o fósforo que percorre as diversas instâncias da sociedade (como agricultura, alimentos ou consumo humano) provém direta ou indiretamente da mineração, portanto, de uma fonte esgotável. Se algumas estimativas da duração de toda a reserva de rochas fosfatadas do planeta não estivessem beirando a casa de um século, esse tema, acerca da geração de uma fonte renovável e sustentável de P, não teria o mesmo peso. A presente pesquisa, realizada com uma visão multidisciplinar – levando em conta estudos mineralógicos; agrícolas; de crescimento de cristais; formação de carapaça de crustáceos marinhos; tratamento de esgoto; termodinâmica e cinética de precipitações químicas – traz à luz da realidade nacional uma discussão acerca dos parâmetros que possibilitam a recuperação do fósforo (e do nitrogênio) diretamente do esgoto. Nos últimos anos, diversas tentativas de precipitação de estruvita no Brasil não foram bem sucedidas. Por esse motivo, essa dissertação foi desenvolvida com o intuito de contribuir com uma melhor compreensão a respeito dos fenômenos envolvidos na formação e crescimento desses cristais. Para isso, foram realizados ensaios com amostras de água ultrapura; efluente do reator anaeróbio de fluxo ascendente com manto de lodo da estação de tratamento de esgoto (ETE) Anhumas; urina pura e efluente dos processos de desaguamento do lodo da ETE Franca (um sistema de lodos ativados convencionais). Este último apresentou altas concentrações de cálcio, o maior interveniente na formação de estruvita, devido ao recebimento de lodo de estação de tratamento de água. A investigação experimental foi dividida em três etapas: (1) Primeiramente, as principais variáveis da reação de cristalização foram avaliadas e percebeu-se que, o que a rege é o quanto o meio se encontra supersaturado com relação aos sais de estruvita. Portanto, as variáveis que influenciam na supersaturação (como pH e concentração de reagentes) podem ser manipuladas para que a reação ocorra da maneira que for desejável. (2) Quando a água residuária contém cálcio, forma-se uma fase amorfa de carbonato de cálcio, que é muito reativa e bastante metaestável (que nesse caso acaba sendo estabilizada), na qual o fósforo e o magnésio adsorvem, podendo inclusive causar uma falsa impressão de que se formou estruvita, devido ao consumo dos reagentes. Deste entendimento, foi possível uma proposta bastante simples de solução para o problema: semeadura com cristais de estruvita. (3) A última etapa da dissertação explica o porquê da dificuldade de encontrar os picos de estruvita nos difratogramas de raios-x, tanto em algumas pesquisas nacionais quanto no começo do presente estudo. Esta dificuldade está relacionada às mudanças de fases do cristal quando exposto a altas temperaturas, isto é, durante o processo de secagem em estufa.

Introdução

Segundo a United Nations Development Program (UNDP) “a mais de 1 bilhão de pessoas é negado o direito de água limpa e 2,6 bilhões de pessoas são desprovidas de condições adequadas de saneamento básico” (UNDP, 2006; p. v). Após uma extensa análise sobre as atuais condições sanitárias do mundo, esta organização chegou à conclusão que o “saneamento inadequado continuará, (…), entre as maiores ameaças para o projeto de Metas de Desenvolvimento do Milênio.” (UNPD, 2006; pg.129). Um grave problema decorrente desta inadequação é a eutrofização acelerada dos corpos d’água, consequência do aporte de nutrientes, provenientes da descarga de esgoto doméstico não tratado ou que recebe apenas tratamento a nível secundário.

Como são muito poucas as estações de tratamento de esgoto (ETEs) que realizam a remoção dos nutrientes no Brasil, este é um dos maiores problemas na qualidade dos corpos d’água. Sawyer (1968) classificou o fósforo como nutriente crítico (lei de Leibig), ou seja, que a sua concentração varia inversamente com o nível de produção primária1. Dada a ubiquidade de cianobactérias fixadoras de nitrogênio, Sawyer propôs que apenas o aporte de fósforo pode ser responsabilizado pela eutrofização, o que é aceito até hoje (WHO, 2006).

A presença de fósforo no esgoto doméstico está relacionada principalmente aos detergentes e às proteínas excretadas pelo corpo humano.Por outro lado, até chegar ao esgoto, o fósforo percorre um longo caminho pelos meios de produção.

Ao analisar especificamente a agricultura – base da indústria alimentícia – encontra-se uma grande lacuna de sustentabilidade do sistema produtivo mundial. Ela consome cerca de mais de 100 milhões de toneladas por ano de fósforo na forma de P2O5 – fertilizantes agrícolas extraídos por mineração – uma vez que este elemento é insubstituível para a agricultura. No entanto, a reserva2 mundial de fósforo está estimada em cerca de 15,5 bilhões de toneladas, na forma de depósitos na litosfera terrestre (USGS, 2010). A produção mundial anual de fósforo, em milhões de toneladas, documentada nos Relatórios Anuais de Bens Minerais de rochas fosfatadas do Serviço Geológico dos Estados Unidos entre 1994 e 2008 (USGS, 1996-2010), está mostrada na tabela 1:

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Observando esses dados, é inegável que a produção de fósforo vem crescendo bastante desde 1994. Considerando uma tendência média de crescimento linear, levando apenas em conta os dados da década passada, as reservas serão exauridas em 53 anos (em 2065). Algumas pesquisas preveem uma durabilidade maior para tais reservas. A associação de produtores de fertilizantes fosfatados da Europa, p. ex., assume um limite de 100 a 250 anos para a exaustão se nada for feito para aumentar a sustentabilidade da produção (cf. European Fertilizer Manufacturer Association, 2000 apud. SHU et al., 2006)3.

Em estudos mais recentes, assume-se que a estimativa das reservas de rochas fosfatadas do planeta é muito imprecisa e pode variar muito, mas como a tendência do crescimento do consumo está cada vez mais acentuada, esta duraçãonão deve ultrapassar a um século (c.f. CORDELL et al., 2009; SMIL, 2000 e GUNTHER, 2005). Isso faz com que tecnologias de recuperação de fósforo e de melhoria da eficiência na sua produção devam ser priorizadas no contexto mundial. Nestes estudos, é mostrado que o grande responsável por toda essa crise é o aumento da quantidade de carne na mesa das pessoas em todas as partes do planeta. Com isso, a agropecuária cresce a um ritmo bastante acelerado, e, proporcionalmente, aumenta a demanda por fertilizantes fosfatados. Entretanto, todo o suprimento de fósforo para a nutrição das plantas (e também dos animais e seres humanos) provém direta ou indiretamente da mineração.

A demanda pelo fósforo é potencializada pelo sistema de produção agrícola praticado hoje no Brasil, o agronegócio, baseado apenas na otimização da produção. Segundo Pizzolatti (2003), este setor econômico, em 2003, era responsável por 40% do PIB brasileiro e por 17 milhões de empregos; estava em crescente progresso e aumentava a produtividade por modificações genéticas animais e vegetais, de forma que o autor relatou: “o uso de fertilizantes praticamente dobrou nos últimos dez anos” (p.7).

No Brasil, o governo oferece bastante subsídio para o setor agrícola; isso favorece uma aplicação de fertilizantes ineficiente e em excesso, o que também contribui para o agravamento da eutrofização dos corpos d’água pelo escoamento superficial, como comenta García (2006).

Ilustrando esse ciclo, representado pela figura 1, a lacuna de sustentabilidade nos fluxos do fósforo na sociedade contemporânea é evidenciada. O ciclo começa nas reservas minerais e se encerra no lançamento nos corpos d’água.

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Figura 1 – Ciclo esquemático do fósforo na sociedade contemporânea

Uma tentativa de solução ou simplesmente atenuação dessa grande lacuna é a aplicação do lodo produzido nas ETEs na agricultura. Para que ele possa ser utilizado como fertilizante, no entanto, deve ser estabilizado para atenuação do seu potencial de putrefação e produção de odores desagradáveis e do seu conteúdo de patógenos (ANDREOLI; 2001). Entretanto, uma ETE a nível secundário remove de 10 a 30% do fósforo (METCALF & EDDY; 1991; p. 433) e a concentração deste elemento no esgoto, normalmente, não ultrapassa 6 mg/L no Brasil (VON SPERLING; 1996). Se for considerado que o lodo (do decantador secundário) é constituído apenas de micro-organismos, ainda assim a concentração deste nutriente no lodo seria muito baixa. O fósforo, nas células dos micro-organismos que não efetuam a remoção biológica de fósforo (EBPR), representa apenas de 1 a 3% da sua massa seca (BITTON; 2004; p. 91).

Desta forma, um fator intrínseco a essa proposição (recuperação do fósforo no lodo das ETEs para a utilização na agricultura) seria, portanto, que ele fosse proveniente de um sistema de remoção biológica de fósforo (EBPR). Porém, se submetido a condições anaeróbias, o lodo liberaria todo o fósforo acumulado, de forma que deveria haver um controle bastante severo sobre os processos de desaguamento e de estabilização do lodo para que isso não ocorresse, sem a aplicação de lodos de ETA, ou coagulantes (sais de ferro e alumínio), pois estes  inviabilizariam a utilização como fertilizante.

Outra forma de recuperar o fósforo presente no esgoto doméstico para a aplicação na agricultura é a precipitação como sal de estruvita. O magnésio amônio fosfato hexahidratado (MgNH4PO4•6H2O), ou apenas estruvita, apresenta-se normalmente na forma de cristais ortorrômbicos brancos pontudos, curtoprismáticos, hemimórficos4 e com profundas reentrâncias (Mineralogical Society of America, 2000). A formação de estruvita é um conhecido problema nas ETEs, pois ela precipita e causa incrustações nas tubulações dos sistemas anaeróbios de digestão e desaguamento do lodo (RAWN, BANTA e POMEROY; 1936). Em contrapartida, ao conseguir controlar os processos de cristalização e transformação de fase, ela pode resolver problemas de eficiência de remoção de nutrientes do tratamento de esgoto e fornecer uma fonte de baixo custo, renovável e ecologicamente sustentável de nutrientes para a agricultura.

Nos sistemas EBPR, a cristalização da estruvita é feita no sobrenadante do digestor anaeróbio somado a todas as correntes líquidas provenientes do processo de digestão e desaguamento de lodo. Essa soma de correntes é comumente chamada na literatura de sobrenadante do digestor de lodo, denominação que será usada na presente dissertação.

A estruvita, utilizada como fertilizante, apresenta as seguintes vantagens sobre os demais encontrados no mercado (BRIDGER, STALUTSKY e STAROSTKA; 1962; BHUIYAN; MAVINIC; KOCH, 2008; WANG et al. 2005): (i) sua dissolução é lenta e desta forma, as aplicações são menos frequentes – as plantas conseguem absorver os nutrientes antes que estes sejam lavados pelo escoamento superficial e elas não sofrem problemas relacionados à hipersaturação de nutrientes. (ii) Os fertilizantes de origem mineral costumam possuir concentrações de contaminantes (metais pesados) de duas a três casas decimais maiores que a encontrada na estruvita. (iii) Os macronutrientes essenciais N, P e Mg são introduzidos simultaneamente no solo, sem a aplicação de componentes desnecessários para as plantas. (iv) Pelo fato de ser um fertilizante de liberação lenta, não ocorre a poluição de águas subterrâneas pelo aporte de nutrientes nem dos corpos d’água por carga difusa.

Como vantagens em relação à clássica remoção química de fósforo no esgoto, a precipitação de cristais de estruvita apresenta custos bem menores; reduz a produção de lodos de difícil desaguamento (SHU et al., 2006) e ainda proporciona a possibilidade de reutilização dos nutrientes, já que lodos de fosfato de ferro ou alumínio apresentam dificuldade de liberação de fósforo no solo (LESJEAN et al., 2003). Shu et al. (2006), Forrest (2004), Britton (2002) e muitos outros mostram que 90% do fósforo do sobrenadante dos digestores pode ser removido na forma dos cristais precipitados.

Uma vantagem do reaproveitamento dos nutrientes do esgoto como cristais de estruvita em comparação com a utilização do biossólido, é que os primeiros não apresentam patogenicidade ou biodegradabilidade. Com o processo de cristalização bem sucedido, os sais de estruvita apresentam um alto grau de pureza, não necessitando nenhum beneficiamento posterior. Desta forma, os custos operacionais associados são muito inferiores aos do biossólido.

A figura 2 mostra a proposta da inserção da recuperação do fósforo do esgoto doméstico como cristais de estruvita no fluxo deste elemento na natureza. Pode-se observar em verde um novo fluxo de fósforo que seria criado, fechando um ciclo de produção sustentável na sociedade contemporânea. Por suposto, as linhas pontilhadas não seriam extintas, mas atenuadas: (1) pela diminuição da demanda de fertilizantes fosfatados extraídos por mineração; (2) melhor eficiência da utilização do fósforo na agricultura em comparação aos fertilizantes convencionais; (3) recuperação do fósforo presente no esgoto doméstico, que atualmente é lançado diretamente nos corpos d’água.

Desta forma, espera-se que seja possível atingir uma condição de sustentabilidade, uma vez que os corpos d’água possuem uma capacidade – limitada, porém não desprezível – de absorção e depuração de poluentes por processos naturais. Pela legislação brasileira, a concentração de fósforo não é um padrão de emissão. Entretanto, ele constitui um dos parâmetros de enquadramento de corpos d’água, de forma que qualquer lançamento de efluente, não poderá resultar em um aumento na sua concentração para além do limite da classe na qual o corpo receptor se enquadra (CONAMA, resolução 357 de 2005; art. 28; alterada por CONAMA, resolução 430 de 2011).

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Figura 2 – Proposição de inserção da recuperação de fósforo de esgoto doméstico no ciclo deste elemento

Apesar da cristalização ser um tema bastante estudado em todo o mundo e extremamente desenvolvido em termos tecnológicos, sua utilização na engenharia sanitária ainda não é tão comum. A recuperação do fósforo de esgoto como cristais de estruvita ainda não é uma tecnologia totalmente dominada. (MARQUES, 2010; CRUTCHIK e GARRIDO, 2011). Isso se deve à falta de estudos minuciosos acerca dos fenômenos envolvidos na formação de estruvita: não há unanimidade nem mesmo sobre as variáveis a serem controladas para uma reação mais eficiente.

Pelas razões expostas anteriormente, foi concebido um projeto de pesquisa, intitulado “Recuperação de fósforo de esgoto doméstico na forma de cristais de estruvita” (com o financiamento da FAPESP). A presente dissertação refere-se à primeira fase deste projeto e consiste em um estudo mais detalhado das variáveis que influenciam na reação de cristalização. A outra fase está sendo desenvolvida pela aluna de mestrado Lina Marcela Sánchez Ledesma e tem por objetivo obter os parâmetros de projeto em escala piloto.

Autor: Fernando Ngan Aidar.

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