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Crise hídrica e energia: conflitos no uso múltiplo das águas

Resumo

O artigo tem como foco o conflito existente entre a geração de energia elétrica e o uso múltiplo das águas no país. Apesar da existência de uma legislação que define, em situação de escassez, o uso prioritário para o consumo humano e a dessedentação dos animais, a recente crise hídrica revela uma série de conflitos envolvendo o Sistema Elétrico Brasileiro, suas empresas e seus órgãos de gestão, e os demais usos como a irrigação, a piscicultura, a navegabilidade para transporte e lazer. Com base nos dados referentes ao comportamento dos volumes úteis de alguns dos principais reservatórios de usinas hidrelétricas localizadas na região Sudeste, é analisada a crise na disponibilidade de energia elétrica no período 2013-2014 e suas consequências. Em particular, é analisado o conflito pelo uso da água no rio Paraíba do Sul ocorrido em agosto de 2014.

Introdução

A gestão da água encontra no Brasil um conflito que é histórico e que envolve a geração de energia elétrica nos reservatórios das usinas hidrelétricas e os demais usos múltiplos da água.

É interessante salientar que não foi somente a partir da Lei n.9.433 de 8/ janeiro/1997 (Lei das Águas) que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos no Brasil, que o uso múltiplo em reservatórios foi disciplinado. O inciso III do Art. 1º, que enumera os seus cinco fundamentos em que a Lei das Águas se baseia, define que em situações de escassez, o uso prioritário dos recursos hídrico é o consumo humano e a dessedentação de animais.

Em realidade, o uso múltiplo da água já se encontrava presente desde o Decreto n.24.643 de 10/julho/1934, também denominado “Código das Águas”. No Art. 143, do Livro III – Forças Hidráulicas – Regulamentação da Indústria Hidroelétrica, em seu Título I – Capítulo I – Energia Hidráulica e seu Aproveitamento, se encontra assim definido o uso múltiplo: Art. 143. Em todos os aproveitamentos de energia hidráulica serão satisfeitas exigências acauteladoras dos interesses gerais:
a) da alimentação e das necessidades das populações ribeirinhas;
b) da salubridade pública;
c) da navegação;
d) da irrigação;
e) da proteção contra as inundações;
f) da conservação e livre circulação do peixe;
g) do escoamento e rejeição das águas.

Segundo o Código das Águas, a propriedade dos rios deixava de ser do proprietário da terra onde corriam, e passava, conforme o caso, a ser propriedade do município, do estado ou da União. Por outro lado, o Código estabelecia uma série de regras e restrições ao uso das águas, determinando que o uso para abastecimento humano era o mais importante.

Ainda segundo o Código das Águas, a propriedade das quedas d’água e do potencial hidrelétrico deixava de ser do proprietário da terra e passava a ser patrimônio da nação, sob a forma de propriedade da União. A partir de então, o aproveitamento de potencial hidrelétrico passou a depender de autorização ou concessão (por prazo máximo de trinta ou cinquenta anos, conforme o montante dos investimentos).

No período anterior ao Código das Águas, o Estado não intervinha na produção e distribuição de energia, apenas conferia autorizações para o funcionamento das companhias. Não havia qualquer legislação sobre a energia elétrica e sobre recursos hídricos. Os estados e municípios gozavam de grande autonomia para estabelecer contratos e autorizações para as empresas privadas de energia.

As companhias que na época detinham o monopólio da geração e distribuição de energia elétrica – a empresa canadense Light e a norte-americana Amforp – tinham direito de corrigir suas tarifas e de receber o equivalente em ouro (a chamada “cláusula-ouro”), de maneira a ficarem protegidas da inflação e da desvalorização da moeda brasileira – naquela época a unidade monetária era o mil réis.

Com o Código das Águas, as tarifas passaram a ser fixadas segundo os custos de operação e o valor histórico dos investimentos, o que significava o fim da “cláusula-ouro” e da correção monetária automática conforme a variação cambial.

O Sistema Elétrico Brasileiro que se constituiu a partir do Código das Águas de 1934 acabou por transformar as empresas concessionárias, que obtinham a outorga de seus reservatórios para a finalidade de geração de energia hidrelétrica, em verdadeiras proprietárias dos rios e de seus cursos d’água.

As empresas públicas de geração, federais e estaduais, se formaram notadamente a partir dos anos 1940, processo esse que foi impulsionado pela institucionalização da Taxa de Eletrificação, a título de capitalização para viabilização dos programas de eletrificação em cada um dos estados.

A prioridade da água para geração de eletricidade assim se estabeleceu e só passou a ser questionada a partir da Lei das Águas de 1997. Conforme a Lei, a água deve ser utilizada de forma a garantir ao mesmo tempo o abastecimento residencial e industrial, a energia e a irrigação, entre outros usos. O consumo humano e de animais, no entanto, é prioritário em situações de estiagem.

Na época em que o sistema elétrico brasileiro foi implantado, as exigências ambientais não eram tão rigorosas e o uso múltiplo das águas não era a prioridade dos projetos. Segundo o diretor-presidente da ANA (Agência Nacional de Águas), Vicente Andreu Guillo, “há uma preponderância natural histórica do uso energético, sem levar em consideração as atividades que foram incorporadas ao reservatório”: Muitas vezes há uma ausência de regras claras, porque confrontamos o novo e o antigo praticamente ao mesmo tempo. O antigo é a instalação do sistema elétrico brasileiro. […] E com o passar dos anos, foram sendo constituídas novas atividades econômicas, que não foram incorporadas no funcionamento do sistema elétrico brasileiro, compatíveis com o uso múltiplo das águas. (Agência Pública, 2015)A crise hídrica recente, e que ainda está sendo vivenciada no país, evidenciou os conflitos entre a geração de energia e o uso múltiplo das águas. Identificar esses conflitos e fazer uma reflexão sobre seus fundamentos são os objetivos do texto que se segue.

Autores: Jucilene Galvão e Célio Bermann.

 

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