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As Águas Subterrâneas ou as Águas que Brotam das Pedras

Jorge Gomes do Cravo Barros

A demanda de água doce para os mais diversos usos cresce continuamente no planeta. Como o volume de água é quase constante desde a formação do planeta1, a disponibilidade de água doce é cada vez menor. Além de um grande volume de água ser desperdiçado pelo uso inadequado, acrescenta-se a essa redução a perda de qualidade das águas dos rios, lagos e reservatórios construídos pelo homem, devido aos impactos ambientais. Nesse contexto crescem em importância as águas subterrâneas, pois, por fluírem no subsolo, são bem mais protegidas.

Mas, que águas são essas?

As águas subterrâneas representam a fração do Ciclo Hidrológico que “(…) ocorre naturalmente ou artificialmente no subsolo2″. O volume total dessas águas, que podem ser doces, salobras ou salgadas, é de cerca de 23,4 milhões de km3. Desse volume se destaca uma parcela de 12,8 milhões de km³ de água doce, o que corresponde a 96% do volume de água doce economicamente disponível no planeta (SHIKLOMANOV, 1998)³ . Em alguns sistemas, esse recurso hídrico não é renovável nas condições climáticas atuais, pois foram formados há mais de 10.000 anos (água fóssil). Atualmente, algumas reservas hídricas podem ser exauridas em um tempo geológico curto, mas, a médio e longo prazos, são renováveis, pois circula para realimentação um volume de 43.000 km³.

Mitos e verdades

Por ocorrerem em profundidade e não serem tão visíveis como as águas de superfície, as águas subterrâneas são menos “fotogênicas” e sempre foram tidas como misteriosas. Por esses motivos, muitas foram as hipóteses sobre a sua origem4. Alguns filósofos gregos acreditavam que a sua formação devia-se à infiltração de ar nas cavernas, sob as montanhas. Outros defendiam a hipótese de infiltração de água do mar em cavernas e uma posterior purificação para a retirada de sal. Já o astrônomo alemão Johann Kepler, no século XVI, assemelhava a Terra a um monstro enorme que retirava água dos oceanos e a digeria, descarregando o resto como água subterrânea. Porém, Vitrúvio, um arquiteto romano, no século I a. C., já sugeria a possibilidade de as águas subterrâneas estarem diretamente relacionadas à infiltração de água superficial.

Atualmente, está comprovado que essas águas se originam e são continuamente realimentadas pela infiltração no solo de água superficial proveniente de precipitações e/ou de reservatórios superficiais, tais como rios, lagos, lagoas, pântanos e açudes.

Um pouco de história

As águas do subsolo estão sendo utilizadas pelo homem desde os primórdios das civilizações, muito embora haja evidências apenas em torno de 12.000 anos a.C. O Velho Testamento é rico em passagens interessantes, como a de Moisés, que batendo com seu cajado na pedra, fez jorrar água, referindo-se a uma fonte. Cita também o poço de José, no Cairo, com 90 metros de profundidade. Há cerca de 5.000 anos a.C os chineses já perfuravam poços com mais de 100 metros de profundidade, utilizando-se de equipamentos confeccionados com bambu (TODD, op.cit.).

Os primeiros poços e cacimbas foram escavados em território nacional em 1531, na Capitania de São Vicente, com o objetivo de suprir vilas e fortificações. Mas o primeiro programa nacional de abastecimento público com água subterrâneas só ocorreu em 1870, quando foi contratada a Ceará Water Supply, filial de uma empresa sediada no Texas (EUA), para perfurar poços no Estado do Ceará. Os resultados não foram muito animadores (REBOUÇAS, 1997)5.

No mundo, um grande impulso no aproveitamento das águas profundas de subsolo correu com o advento da perfuratriz a vapor, utilizada inicialmente para a explotação de sal e de petróleo e, posteriormente, para a perfuração de poços d’água. Foram também marcos determinantes na evolução do setor: (i) a expansão do conhecimento geológico e (ii) a evolução das técnicas de locação de poços, inclusive com a discutível participação dos “farejadores de água” ou radiestesistas, além da disponibilização de técnicas avançadas de perfuração de poços tubulares.

Os pioneiros e a nova geração de hidrogeólogos

No Brasil, o marco na formação de pessoal especializado em água subterrânea ocorreu na década de 60, com o início da formação acadêmica de geólogos e de hidrogeólogos. Mas, o grande laboratório prático foi a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE). Atualmente, destacam-se no setor alguns órgãos e entidades governamentais, tais como a CPRM-Serviço Geológico do Brasil e a Agência Nacional de Águas (ANA), assim como algumas empresas privadas com capacidade técnica certificada pela Associação Brasileira de Águas Subterrâneas (ABAS).

O caminho das águas subterrâneas

As características geotécnicas das rochas e dos sedimentos inconsolidados determinam a quantidade, a qualidade e o fluxo das águas subterrâneas. A água infiltrada se desloca no subsolo, geralmente com velocidade muito baixa, da ordem de centímetros ou metros por ano6, percolando estruturas geológicas denominadas de aqüíferos ou rochas-reservatórios, as quais contém espaços vazios que permitem, além da circulação, o seu armazenamento. Esses aqüíferos, dependendo da tipologia dessas descontinuidades, são porosos, quando formam-se entre os grãos da rocha, sendo esses que têm maior capacidade de armazenar água, como o do Sistema Aqüífero Guarani. Serão fissurais ou fendilhados, quando se formam em rochas duras e muito antigas, como no Nordeste do Brasil. Já os cársticos se originam da dissolução de rochas carbonáticas, como na Bacia Potiguar, no Rio Grande do Norte, ou em Irecê, na Bahia. Quanto à sucessão dos horizontes em subsolo e à pressão em que está submetida a superfície da água, essas rochas-reservatórios podem ser denominadas de livres, confinadas ou artesianas. Quando se perfura um poço em um horizonte confinado, devido à pressão, a água pode jorrar na superfície e então esse poço é classificado de artesiano, referência a um poço de características similares perfurado na cidade de Artois, França, em 1126.

Os aqüíferos desenvolvem várias funções, tais como armazenamento; regularização de fluxo hídrico; filtragem; transporte, conduzindo água de uma área de recarga (infiltração) para outra de extração; produção energética (água quente); estratégica e ambiental.

Em 30% da área continental do planeta, excluindo a Antártica, ocorrem aqüíferos de significativa possança. Entre os sistemas aqüíferos mais importantes do planeta em termos de ocorrência e reservatório são exemplos: o Núbio, que atravessa o Egito, a Líbia, o Chade e o Sudão, com 2 milhões de km²; o Guarani, que se desenvolve pela Argentina, Brasil, Uruguai e Paraguai, com 1,2 milhão de km²; o Ogallala, nos Estados Unidos, com 230 mil km², o KalaharijKarro, que se estende pela Namíbia, Botswana e África do Sul, com extensão de 135 mil km² (SHIKLOMANOV, op. Cit.).

As águas armazenadas nessas rochas-reservatório são captadas seja por surgências naturais (fontes), seja por poços, os quais podem ser verticais, inclinados ou horizontais, dependendo das condições hidrogeológicas. No mundo, estima-se em 300 milhões o número de poços perfurados e no Brasil essa cifra atinge a 400.000 unidades (ZOBY & MATOS, 2002)7, além de mais de 2 milhões de poços escavados. Em todo território nacional, segundo o Fundação IBGE (2003), são perfurados anualmente 10.000 novos poços, localizados principalmente nos Estados de São Paulo, Bahia, Rio Grande do Sul, Ceará e Piauí.

Quem usa as águas subterrâneas ?

Praticamente todos os países do mundo fazem uso da água subterrânea, que abastece cerca de 1,5 bilhão de pessoas8. Destacam-se entre os países que mais utilizam esse recurso hídrico a Alemanha, França, Rússia, Dinamarca, Arábia Saudita, Líbia e Austrália (LEAL, 1999)9. Cerca de 57% das áreas irrigadas em 17 países, totalizando 150 milhões de hectares, utilizam água subterrânea. Entre eles destacam-se a Índia (50%), USA (43%) e China (27%). Na América Latina, o número de pessoas abastecidas ultrapassa 150 milhões de habitantes.

No Brasil as reservas de água subterrânea são estimadas em 112.000 km³ , até uma profundidade de 1.000m (REBOUÇAS, op.cit.) e estão distribuídas em 10 Províncias Hidrogeológicas10. Essas águas são aproveitadas por fontes ou por poços, que podem alcançar profundidades de mais de 1.500m. As vazões obtidas variam de quase zero até cerca de 1.000m³/hora. A explotação da água subterrânea requer uma autorização emitida por um órgão oficial estadual credenciado, denominada de outorga, além da Licença Ambiental.

Cerca de 61% da população brasileira é abastecida para fins domésticos por águas subterrâneas, sendo 6% por poços rasos, 12% por fontes e 43% por poços profundos. Em torno de 15,6% dos domicílios utilizam exclusivamente água subterrânea (ANA, 2005)11. Em vários Estados, muitas cidades são abastecidas total ou parcialmente por água do subsolo como ocorre em 80% das cidades do Piauí, 70% no Maranhão (ANA, op.cit), Rio Grande do Norte, com destaque para Natal e Mossoró; Pernambuco (Recife), Amazonas (Manaus), Pará (Belém), Ceará (Fortaleza). Em São Paulo, cerca de 71,6% dos municípios são total ou parcialmente abastecidos por água subterrânea, onde se destacam Ribeirão Preto, Pradópolis e São José do Rio Preto. Nos Estados do Paraná e Rio Grande do Sul, essa cifra ultrapassa 70%. Outros exemplos também ocorrem em Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Santa Catarina, Espírito Santo e Distrito Federal12. Para o abastecimento de comunidades de pequeno porte ou de áreas situadas no Polígono das Secas, as águas subterrâneas, mesmo algumas vezes salobras, são parte importante da solução.

Na indústria nacional é forte o incremento do uso da água de subsolo. A indústria de bebidas, com destaque para a de água mineral e de cerveja, é uma forte usuária desse bem natural. Por exemplo, 95% das indústrias em São Paulo são abastecidas por água de poço. Na agricultura, como em Mossoró (RN), Vale do Gurgéia (PI), Janaúba e Araguari (MG), há grandes projetos de irrigação com o emprego exclusivo de água subterrânea. Na pecuária é freqüente a dessedentação de animais com água subterrânea. Merece destaque também a importância das águas termais no setor de turismo, como em Caldas Novas (GO), Caldas da Imperatriz (SC), Araxá e Poços de Caldas (MG).

Do ponto de vista ambiental, além da contribuição para manutenção do equilíbrio dos ecossistemas, é importante ser destacado que a contribuição das águas subterrâneas à descarga dos rios nacionais varia entre 25 a 30%, porém, com valores inferiores a 10% na região semi-árida13. Em muitos casos, como no Distrito Federal, essas águas asseguram a perenidade das drenagens superficiais.

É possível poluir as águas de subsolo?

No tocante à perda de qualidade das águas subterrâneas, há poucas informações disponíveis sobre as fontes pontuais e difusas de contaminação. Existe um mito arraigado na população de que toda e qualquer água que brote da terra, como fonte, é de boa qualidade, o que não é verdade. Os esgotos domésticos, a indústria, a agricultura, a mineração e a água do mar são fortes agentes de poluição. Há muitos aqüíferos poluídos, mas poucos são estudados e avaliados. Essa poluição é mais conhecida nos Estados Unidos, na Índia, no México e na China (Kioto, 3º Fórum Mundial da Água).

Quem protege as águas subterrâneas?

O arcabouço jurídico referente às águas subterrâneas é bastante limitado – quase tímido – e defasado. E existe uma grande diferença no tratamento legal das águas superficiais e subterrâneas. Tratando-se da dominialidade, segundo a Constituição Federal, as águas de superfície podem ser federais ou estaduais (inciso III do artigo 20). Já as águas subterrâneas, pelo inciso I do artigo 26, são de domínio dos Estados, mesmo que os aqüíferos transcendam os limites estaduais e até nacionais, tornando imprescindível a presença da União, como no caso do Sistema Aqüífero Guarani. Porém, de forma controvertida, as águas minerais, que são águas subterrâneas utilizadas para engarrafamento, balneoterapia, hidroterapia e uso geotermal são de responsabilidade da União, sendo outorgadas pelo Departamento Nacional da Produção Mineral – DNPM. No que tange à Lei n.º 9433/1997, que trata da Política Nacional dos Recursos Hídricos, há poucas referências às águas subterrâneas e às bacias hidrogeológicas. No âmbito estadual, apenas alguns Estados têm uma legislação específica para as águas subterrâneas, destacando-se São Paulo, Pernambuco, Minas Gerais, Mato Grosso e Distrito Federal. Outros, como Piauí e Paraná, integraram essas águas à política estadual de meio ambiente. Um recente passo significativo na legislação foi o advento da Resolução Conama n.º 369/2008, que dispõe sobre a classificação e diretrizes ambientais para o enquadramento das águas subterrâneas.

Vantagens e desvantagens das águas subterrâneas

O aproveitamento das águas de subsolo apresentam muitas características positivas, mas também algumas negativas.

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