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Água e energia: desafios e oportunidades para a sustentabilidade

A relação entre água e energia é uma das mais estratégicas e, ao mesmo tempo, complexas do século XXI.

Esses dois recursos fundamentais para o funcionamento das sociedades modernas estão intrinsecamente interligados e dependem um do outro em múltiplas escalas. A produção e o consumo de energia demandam volumes significativos de água, enquanto o acesso à água em qualidade e quantidade adequadas depende de infraestrutura energética para captação, tratamento e distribuição. Em um cenário de mudanças climáticas, escassez hídrica regional, aumento populacional e crescimento da demanda energética, compreender e integrar a gestão desses dois recursos é essencial para promover a sustentabilidade.

No contexto global, estima-se que cerca de 90% da geração de energia consome água em algum momento do processo, seja no resfriamento de termelétricas, na produção de biocombustíveis ou na operação de hidrelétricas (UNESCO, 2014). Por outro lado, o setor de abastecimento de água e saneamento é responsável por cerca de 4% do consumo global de eletricidade, podendo esse valor ser ainda maior em regiões onde o bombeamento e o tratamento exigem infraestrutura intensiva (ADENE – AGÊNCIA PARA ENERGIA, 2018). Essa interdependência, muitas vezes negligenciada, está no centro do chamado nexus água-energia.

No Brasil, país historicamente dependente da geração hidrelétrica, a interrelação entre água e energia é ainda mais evidente. Cerca de 60% da matriz elétrica brasileira é composta por hidrelétricas (JORNAL DA USP, 2024), o que coloca o país em uma posição única em relação ao uso de fontes renováveis, mas também exposta a riscos hidrológicos. As recorrentes crises hídricas que atingiram o país nas últimas décadas — como as de 2001, 2014-2015 e 2021 — demonstraram a vulnerabilidade do sistema elétrico brasileiro à variabilidade climática e à má gestão dos recursos hídricos. Quando os reservatórios estão baixos, não apenas a geração de energia é comprometida, mas também o abastecimento urbano, a irrigação e a navegação fluvial.

A mudança do clima tende a intensificar esses riscos. Projeções apontam que, em várias regiões do Brasil, especialmente no Norte, Centro-Oeste e parte Sudeste, haverá redução de mais de 40% na disponibilidade hídrica até 2040 (AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS E SANEAMENTO BÁSICO – ANA, 2021), comprometendo a disponibilidade hídrica para múltiplos usos. Além disso, os eventos extremos, como secas e chuvas intensas, devem se tornar mais frequentes, impactando diretamente a operação das usinas hidrelétricas e a segurança energética nacional. A própria ANA alertou, em seu Relatório de Conjuntura (ANA, 2022), que o país precisa avançar na diversificação de sua matriz energética para reduzir a dependência de fontes vulneráveis ao regime hidrológico.

A diversificação da matriz energética, no entanto, também exige atenção aos impactos sobre os recursos hídricos. Fontes como a energia solar e eólica, frequentemente promovidas como alternativas sustentáveis, possuem menor demanda hídrica direta, o que é um ponto positivo. Entretanto, a expansão dessas fontes demanda infraestrutura de apoio (como armazenamento, linhas de transmissão e usinas híbridas) que, por sua vez, pode ter impactos indiretos sobre o uso do solo e os corpos d’água. A produção de biocombustíveis, outro componente importante da matriz brasileira, requer grandes volumes de água para irrigação e processamento industrial, além de competir com a produção de alimentos em determinadas regiões (WWAP, 2014).

Nesse contexto, uma das principais oportunidades para a sustentabilidade é a adoção de uma abordagem integrada, que reconheça as sinergias e os conflitos entre água e energia nas políticas públicas, no planejamento territorial e na gestão de recursos naturais. O conceito de nexus água-energia-alimento, promovido por organismos internacionais como a ONU e a FAO, propõe justamente esse tipo de articulação, defendendo a formulação de estratégias que considerem simultaneamente a segurança hídrica, energética e alimentar.

O planejamento integrado permite, por exemplo, identificar bacias hidrográficas prioritárias para investimentos em infraestrutura, analisar o trade-off entre irrigação e geração de energia, promover reuso de água em processos industriais e estimular tecnologias que aumentem a eficiência hídrica e energética. A gestão de demandas, com foco na redução de perdas e no uso racional, é uma estratégia eficaz e de baixo custo.

Outra oportunidade importante é o fortalecimento da governança intersetorial. Historicamente, as políticas de recursos hídricos e energia no Brasil evoluíram de forma paralela, com pouca integração institucional. Os órgãos responsáveis por cada setor operam com dados, objetivos e instrumentos próprios, o que dificulta a construção de soluções compartilhadas. No entanto, já existem experiências promissoras que apontam caminhos. A inclusão da variável climática nos estudos de planejamento energético da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), a criação de comitês interministeriais e os projetos-piloto de avaliação de impactos cruzados entre água e energia em bacias críticas são exemplos que podem ser ampliados.

A transição energética também deve ser encarada como uma oportunidade para redefinir a relação entre água e energia. A crescente eletrificação de setores da economia, como transporte e indústria, associada ao avanço de energias limpas e descentralizadas, abre espaço para modelos mais resilientes e sustentáveis. Soluções como a geração distribuída, a dessalinização com uso de energia solar, o reuso de efluentes tratados e os sistemas híbridos (solar-eólica-hidrelétrica) oferecem alternativas tecnológicas com menor impacto hídrico. A adoção de critérios socioambientais nas decisões de investimento público e privado, com base em análises de ciclo de vida, também é essencial para garantir que o progresso energético não comprometa a integridade dos ecossistemas aquáticos.

A educação ambiental e a participação social desempenham um papel central nesse processo. O envolvimento das comunidades na gestão de recursos naturais, o acesso transparente a informações sobre consumo e disponibilidade hídrica e energética e a valorização do conhecimento local são elementos fundamentais para a construção de uma cultura de sustentabilidade. A formação de profissionais capazes de atuar na interface entre água e energia também é urgente. Universidades, centros de pesquisa e organizações da sociedade civil têm papel estratégico na produção de conhecimento e no fortalecimento das capacidades institucionais.

É importante lembrar que a sustentabilidade hídrica e energética está diretamente relacionada à justiça social. O acesso à água potável e à energia segura e acessível ainda é desigual em várias partes do Brasil. Populações em áreas rurais, periferias urbanas e territórios indígenas enfrentam dificuldades estruturais e, muitas vezes, são as mais afetadas por decisões centralizadas ou pela degradação ambiental. A agenda da sustentabilidade precisa, portanto, ser também uma agenda de equidade, assegurando que as transições sejam justas e que os benefícios da inovação alcancem todos os segmentos da sociedade.

A relação entre água e energia é um campo desafiador e, ao mesmo tempo, cheio de possibilidades. Os riscos são reais — escassez, conflitos, vulnerabilidade climática —, mas as oportunidades são igualmente significativas. O Brasil, com sua abundância de recursos naturais, seu histórico em energias renováveis e sua diversidade regional, tem plenas condições de liderar soluções inovadoras e integradas. Para isso, será necessário avançar em planejamento, governança, tecnologia e participação social, com base em evidências científicas e no compromisso com as futuras gerações. Promover a sustentabilidade no uso da água e da energia é, ao fim e ao cabo, garantir a própria sustentabilidade da vida.

Fonte: Água Sustentável


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