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A escassez de água na bacia do Rio Jordão

A ESCASSEZ DE ÁGUA NA BACIA DO RIO JORDÃO

Melanne Andromecca Civic

A autora trabalha como analista de informações ambientais no Departamento de Estado dos Estados Unidos ela possui um título de mestrado em direito internacional e comparativo, da Faculdade de Direito da Universidade de Georgetown [Georgetown University Law Center]. As posições e opiniões apresentadas neste artigo são, única e exclusivamente, da autora, e não representam, necessariamente, as opiniões do Departamento de Estado dos Estados Unidos.

Na bacia do Rio Jordão, a escassez de água é causada por múltiplos fatores e afeta, de maneira mais séria, Israel, a Jordânia, a Cisjordânia e a Faixa de Gaza. As partes leste e sul da região apresentam características de terras semi-áridas a áridas, recebendo somente 50 a 250 milímetros de chuva por ano – sendo mais secas que Phoenix, Arizona, EUA – de acordo com um novo relatório apresentado, em conjunto, pela Academia de Ciências e Humanidades de Israel, pela Academia Palestina de Ciência e Tecnologia, pela Real Sociedade Científica da Jordânia e pelo Conselho Nacional e Pesquisa dos Estados Unidos (NRC).

A maior precipitação pluviométrica da região, 1.000 milímetros, ocorre somente em uma pequena área de maior elevação na parte noroeste. Estima-se que a quantidade total de água renovável disponível na região seja de 2.4 bilhões de metros cúbicos por ano, ao passo que a utilização de água, em média, chega a 3 bilhões de metros cúbicos, de acordo com um estudo realizado em 1998 pelo Departamento de Estudos Geológicos dos Estados Unidos [U.S. Geological Survey] para a Equipe de Ação Executiva [Executive Action Team] do Projeto de Bancos de Dados Sobre a Água do Oriente Médio [Middle East Water Data Banks Project] – um projeto de pesquisas realizadas em regime de cooperação entre os serviços de água de Israel, Jordânia e Palestina. O déficit resultante é suprido extraindo-se água, sem capacidade de reposição, do lençol freático e de outras formações geológicas.

A utilização da água varia na região. A utilização em Israel é a maior, embora seja apenas um pouco superior à da Jordânia, estimada em 2 bilhões de metros cúbicos. A utilização na Cisjordânia e na Faixa de Gaza é a menor, um décimo da quantidade utilizada na Jordânia, de acordo com o Relatório Conjunto do NRC. A quantidade de água potável atribuída a cada pessoa por dia, na bacia do Rio Jordão, é a mais baixa do mundo, de acordo com um relatório preparado em 1997 pela FAO [Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação]. Rigorosos racionamentos de água são comuns no verão, em áreas muito populosas. O verão de 1998 e o inverno de 1999 foram extremamente secos. Durante várias semanas, no verão, os moradores de Amã, na Jordânia, receberam água, fornecida pela prefeitura, somente duas vezes por semana. Em março de 1999, Israel determinou que fosse feito um corte de 25 por cento na quantidade de água fornecida para uso agrícola doméstico, e anunciou que não poderia cumprir a meta de transferência, estabelecida para este ano, para a Jordânia, do Mar da Galiléia e dos rios Jordão e Yarmouk, que os países compartilham essa partilha foi determinada em conformidade com o Tratado de Paz de 1994.

Padrões nacionalistas de utilização de água e reivindicações territoriais de caráter político tornam ainda mais acirrada a disputa pelas fontes de água doce na região. Enquanto isso, a exploração excessiva das fontes existentes e os danos causados aos ecossistemas naturais na bacia comprometem a capacidade de reposição do sistema. Tem havido algum progresso nos últimos anos, no que se refere ao gerenciamento sob a forma de cooperação, alocação justa, e utilização eqüitativa. No entanto, os benefícios, de modo geral, têm sido superados pelo crescente estresse do desenvolvimento urbano, e por outras formas de invasão dos ecossistemas naturais pelos seres humanos. As ameaças aos recursos hídricos críticos do ecossistema incluem: drenagem de pântanos para fins agrícolas e para a construção de áreas residenciais poluição de água doce em virtude das atividades industriais e do despejo de esgoto doméstico não tratado e contaminação de fontes e lagos devido aos despejos contaminados por fertilizantes e pesticidas.

A combinação de instabilidade política, exploração excessiva dos recursos, e fontes contaminadas, significa que a escassez de água doce na bacia do Rio Jordão atingirá um nível crítico no futuro próximo. O consumo de água doce tende a crescer a um ritmo duas vezes superior à taxa do crescimento populacional, de acordo com um estudo da Organização das Nações Unidas, divulgado em 1997, intitulado Avaliação Abrangente dos Recursos de Água Doce no Mundo [Comprehensive Assessment of the Freshwater Resources of the World]. Se as taxas atuais de crescimento populacional e desenvolvimento agrícola e industrial persistirem, dentro de 20 ou 30 anos toda a água doce de Israel e da Jordânia será necessária somente para atender às necessidades de água potável. As aplicações agrícolas somente receberão água de esgoto recuperada, e a as indústrias só poderão contar com água do mar dessalinizada, e cara. Atualmente, aproximadamente 310 milhões de metros cúbicos de águas servidas recuperadas são usados na região – 250 milhões de metros cúbicos em Israel e 60 milhões de metros cúbicos na Jordânia – e até 1,8 bilhão de metros cúbicos poderão estar disponíveis no futuro, de acordo com o Relatório Conjunto do NRC. No entanto o próprio uso, em grande escala, das águas servidas recuperadas, é insustentável, porque pode resultar em grandes infiltrações minerais nos solos e nas fontes de água, tanto da superfície quanto no subsolo.

Desenvolvimento e Gerenciamento Unilateral dos Recursos Hídricos

Os conflitos políticos, endêmicos nessa região, constituem um dos principais fatores que levam ao gerenciamento nacionalista, unilateral e insustentável, da bacia do rio. Os programas de desenvolvimento de recursos hídricos, unilaterais, e de países isolados, que surgiram, são o resultado de séculos de práticas culturais e religiosas locais distintas, além de influências históricas. Os impactos legais também são numerosos e diversos, incluindo as antigas leis religiosas e sociais do judaísmo e do islamismo, as leis dos Impérios Greco-Romanos, do Império Otomano, e as normas coloniais britânicas [British Mandatory rule] – e, de 1948 em diante, os princípios internacionais de alocação e utilização.

Durante os primeiros anos que se seguiram à independência de Israel, de 1948 a 1955, os vários estados da bacia não conseguiram chegar a um acordo sobre nenhum plano regional de desenvolvimento ou de alocação de água. Os governos de Israel, da Jordânia, da Síria e do Egito, assim como representantes da Organização das Nações Unidas e dos Estados Unidos, formularam propostas. As propostas dos países tinham um enfoque doméstico e, portanto, eram inaceitáveis sob o ponto de vista regional, por motivos práticos e políticos. A aceitação dos planos internacionais era problemática porque eles apresentavam abordagens inovadoras no que se referia à partilha e à alocação da água, e porque uma abordagem cooperativista regional exigiria, por definição, que a Liga Árabe aceitasse Israel como um estado legítimo e como usuário dos recursos. Intensos conflitos políticos resultaram na rejeição de todas essas propostas, embora o Plano Johnston [Johnston Plan] tenha sido usado, desde 1955, como um guia informal para alguns aspectos da distribuição e utilização da água em Israel e na Jordânia. O Plano Johnston assimilou as propostas da Liga Árabe e de Israel, e incorporou princípios emergentes do direito internacional, aplicando considerações eqüitativas referentes à utilização benéfica existente e às necessidades previstas para o futuro. Ele atribuiu a maior parcela da água da bacia à Jordânia, seguida de Israel, com uma parcela muito menor para a Síria, e a menor quantidade para o Líbano. Ele dava a cada estado a autoridade exclusiva para decidir onde e como utilizar a parte que lhe cabia da água.

Com a rejeição formal das propostas de alocação, cada estado da bacia do rio deu início ao seu plano para o desenvolvimento dos recursos hídricos. Esses planos tendiam a tratar das necessidades domésticas imediatas e da expansão econômica, e criavam concorrência direta pela exploração excessiva dos recursos hídricos compartilhados. A disputa e a escassez contribuíam para tornar mais grave a questão da segurança. Muitos especialistas afirmam que pelo menos uma dúzia de violações do cessar-fogo, entre 1951 e 1967, podem ser atribuídas, em parte, aos conflitos causados pelas fontes de água doce da região. Em 1955, Israel criou o Emissário Nacional de Água [National Water Carrier] para conduzir o fluxo do Rio Jordão e distribuí-lo à crescente população do sul de Israel e do deserto de Negev, e utilizou as alocações propostas pelo Plano Johnston. A população de Israel estava crescendo rapidamente, devido ao fluxo de imigrantes judeus, oriundos da Europa, que cresceu muito após a Segunda Guerra Mundial, e os seus planos de desenvolvimento ultrapassaram os planos dos seus vizinhos. Por meio do Emissário Nacional de Água, Israel esperava poder fornecer água potável, assim como água para irrigação, para todo o país. A Síria e a Jordânia reagiram em 1964, iniciando a construção de uma represa para desviar o fluxo das águas dos rios Yarmouk e Baniyas da bacia, e para impedir o funcionamento do Emissário Nacional de Água de Israel. Essas tensões contribuíram para a guerra de 1967, quando Israel bombardeou e destruiu a represa antes do término da construção, e ocupou as Colinas de Golã, a Cisjordânia e a Faixa de Gaza.

O território conquistado por Israel na guerra de 1967 alterou drasticamente a sua segurança, tanto militarmente quanto no que se refere à questão da água, e aumentou de maneira significativa o acesso ribeirinho e o controle de Israel sobre os rios Yarmouk e Jordão. A ocupação aumentou o controle físico direto, por parte de Israel, da água doce, em mais de 50 por cento através de três fontes principais: a cabeceira do Rio Jordão, incluindo a metade do curso do Rio Yarmouk a região de recompletamento da Fonte da Montanha [Mountain Aquifer] e o território ribeirinho superior do Rio Baniyas. Nessa ocasião, Israel conseguiu concluir o Emissário Nacional de Água, bem como extensos projetos de irrigação. A Jordânia também concluiu o projeto de uma represa de grande porte nos afluentes da margem leste do Rio Jordão, ao sul do Rio Yarmouk , e desenvolveu um sistema de distribuição de água.

O Início do Gerenciamento Regional

Só se conseguiu estudar, de maneira produtiva, uma abordagem de uso compartilhado, em meados da década de 1990. O Tratado de Paz entre Israel e a Jordânia de 1994, e o Acordo de Cooperação para a Proteção Ambiental e para Conservação da Natureza entre Israel e a Jordânia (Acordo Ambiental) de 1995, são acordos bilaterais que determinam o estabelecimento de uma abordagem de cooperação para o uso compartilhado e o desenvolvimento do Rio Jordão. O Acordo, de 1994, entre Israel e a Organização Para a Libertação da Palestina (OLP) sobre a Faixa de Gaza e a Área de Jericó, e o seu sucessor, o Acordo Provisório sobre a Cisjordânia e a Faixa de Gaza (Acordo Provisório) tratam das questões do desenvolvimento, sob a forma de cooperação, dos recursos hídricos e do esgoto. A Declaração de Princípios, de 1996, para a Cooperação Entre os Principais Signatários Sobre as Questões Referentes à Água, e Águas Novas e Adicionais (Declaração de Princípios para Cooperação), é um acordo multilateral assinado por Israel, pela Jordânia, e pela Autoridade Nacional Palestina.

O tratado de paz reconhece a insuficiência de recursos de água doce na região, e conclama os signatários para que eles ajam com um espírito de cooperação na resolução do problema de escassez de água a curto prazo. Propostas integradas ao tratado prevêem o planejamento conjunto para a construção e o gerenciamento de uma barragem no Yarmouk, e o manejo, sob a forma de cooperação, do lençol freático de Emek Ha’arava. Alocações específicas de água dos rios Yarmouk e Jordão incorporam, informalmente, princípios internacionais de utilização eqüitativa. Além disso, o tratado prevê a formação de um Comitê Conjunto Sobre a Água, que deverá funcionar como organização para a implementação do Programa de Ação, para gerenciar a distribuição de água, a proteção da qualidade da água, as transferências de informação e o uso de dados compartilhados, e que deverá, de modo geral, coordenar as providências no sentido de minorar a escassez de água.

O Acordo Ambiental, embora não tenha sido ratificado, demonstra, mesmo assim, a recente reconsideração do gerenciamento cooperativista dos recursos naturais compartilhados entre Israel e a Jordânia. O Artigo Um determina o espírito de cooperação: Os signatários deverão cooperar nos campos da proteção ambiental e conservação dos recursos naturais em termos de igualdade e reciprocidade, para benefício mútuo. Eles deverão tomar as medidas necessárias, conjunta e individualmente, para proteger o meio ambiente e para evitar riscos ambientais…especialmente os riscos que possam afetar ou causar danos aos…recursos naturais…na região. O Artigo Cinco descreve vários programas de cooperação, incluindo a troca de informações, o uso compartilhado de dados científicos e acadêmicos, e a promoção de estudos científicos e técnicos em conjunto, bem como projetos de desenvolvimento em conjunto. O Artigo Dez prevê o estabelecimento de um Comitê Conjunto para a Proteção Ambiental e para a Conservação de Recursos Naturais. O Comitê Conjunto deverá propor novos projetos, e deverá também monitorar os projetos existentes e o desempenho, de modo geral, de ambos os signatários.

O Acordo Provisório sobre a Cisjordânia e a Faixa de Gaza estabelece, no Artigo 40 do Apêndice B, os princípios gerais de cooperação no desenvolvimento de recursos hídricos e esgoto, e prevê a formação de um comitê conjunto de recursos hídricos e fiscalização conjunta de recursos compartilhados, além de equipes para fiscalizar o funcionamento do acordo de cooperação.

A Declaração dos Princípios de Cooperação foi o produto de negociações e estudos, sob a forma de cooperação, do Grupo de Trabalho Multilateral sobre Recursos Hídricos, formado em 1992 para dar prosseguimento ao processo de paz no Oriente Médio. O grupo de trabalho também endossou o Projeto de Bancos de Dados Sobre a Água, em 1994, para compartilhar e verificar dados, regionalmente, e para padronizar técnicas de coleta. O Projeto de Bancos de Dados Sobre a Água promove o gerenciamento regional e a proteção dos recursos hídricos com a participação de especialistas, no campo técnico e científico, dos vários estados da bacia.

Prioridades para a Reforma dos Recursos Hídricos

Apesar do consenso a que se chegou nesses acordos no que se refere ao gerenciamento em forma de cooperação, conservação conjunta e divisão justa, poucas providências práticas foram tomadas para resolver o problema da escassez de água nos últimos cinco anos. O recente Relatório Conjunto do NRC e o Projeto de Bancos de Dados Sobre a Água no Oriente Médio são os dois primeiros projetos científicos de cooperação entre os vários estados da bacia, tratando das mais críticas questões de escassez de água e apresentando sugestões práticas. Esses relatórios e outros estudos científicos e independentes determinam que, para se evitar uma escassez crítica de água na bacia do Rio Jordão, é necessária a implementação de reformas em várias frentes.

Primeiro, os estados da bacia devem continuar a trabalhar em prol de um verdadeiro esquema cooperativista e integrado, multinacional e multiuso, de uso compartilhado e desenvolvimento de recursos hídricos. A bacia hidrográfica é aceita, de modo geral, como a unidade natural e racional para o gerenciamento e planejamento do desenvolvimento do rio, em vez das unidades artificiais de gerenciamento impostas pelas fronteiras políticas. O gerenciamento da bacia como um todo é também uma pedra de toque para os princípios de divisão e utilização eqüitativas, e faz parte integrante das Normas de Helsinqui de 1967 e da Convenção da Comissão de Direito Internacional Sobre a Lei da Utilização dos Cursos D’ Água Internacionais [Excluindo a Navegação] (Convenção Direito Internacional Sobre a Água). No entanto, nem os princípios clássicos, nem os modernos, de direito internacional, a respeito do uso compartilhado da água através de fronteiras, foram inteiramente absorvidos por essa região, em parte devido às culturas diferentes e a questões políticas e de segurança extremamente sensíveis. As tensões políticas e a disparidade prática das alianças desequilibradas nas negociações impedem a obtenção de um consenso bilateral, multilateral ou regional. Israel, particularmente, pode resistir a um esquema de gerenciamento regional no qual seria sobrepujado por estados árabes aliados.

Segundo, o uso compartilhado de informações e tecnologia entre os estados beneficia o gerenciamento em toda a região. O processo de unir cientistas e outros peritos para a realização de trabalhos, sob a forma de cooperação, nas áreas de gerenciamento, desenvolvimento e conservação, consolida redes de comunicação, e com o tempo, pode contribuir para a diminuição das tensões políticas. O uso compartilhado da colaboração e da informação também serve para verificar a precisão das informações, que é um elemento crítico para que decisões corretas possam ser tomadas.

Terceiro, a conservação, não apenas das fontes de água e dos sistemas de distribuição, mas também do ecossistema, reduzirá o desperdício desnecessário e evitará a maior deterioração das fontes de água. Os sistemas antigos e ultrapassados de fornecimento de água em Israel e na Jordânia chegam a perder metade da água transportada, em virtude de vazamentos e evaporação excessiva, segundo o Relatório Conjunto do NRC. A invasão dos pântanos, lagos, e florestas, devido à urbanização, destrói os sítios naturais de recompletamento – árvores e outras formas de vida vegetal que controlam a erosão e filtram a água lagos e riachos que ajudam a dissipar as toxinas e organismos que auxiliam a decomposição de certos poluentes. A retirada excessiva de água de lagos e fontes, e o uso agrícola de águas servidas recuperadas resultam na penetração de sais e outras substâncias minerais em fontes que, normalmente, produziriam água doce.

Apesar dos progressos recentes, ainda existem muitos problemas. Os interesses de cunho nacionalista, o desenvolvimento econômico e a exploração descontrolada das fontes de água, continuam a impedir a utilização ideal da água na Bacia do Rio Jordão. A natureza crítica desse recurso, a constante diminuição da quantidade de água doce nessa bacia, e impossibilidade de se neutralizar medidas oriundas de políticas inadequadas, requerem mudanças unificadas, definitivas e ecologicamente corretas nas políticas e práticas atuais, para assegurar um fornecimento adequado de água, no futuro, para todos os povos da região.

Fonte:  Usinfo State Gov

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