Um país que permite que sua água continue a ser utilizada para diluir esgoto não está preparado para a emergência climática
Um rio é como um livro que, mesmo sem palavras, têm muito a contar sobre nossa sociedade. Sua água revela histórias sobre nossas escolhas, comportamentos, descuidos e até sobre o futuro que estamos construindo. E os rios da Mata Atlântica mostram uma realidade triste e desconfortável: os anos passam e não estamos sendo capazes de reverter sua degradação.
Divulgada às vésperas do Dia Mundial da Água, 22 de março, a nova edição do relatório Observando os Rios, da Fundação SOS Mata Atlântica, aponta que a saúde dos corpos d’água da Mata Atlântica ainda não dá sinais concretos de recuperação. Em 2024, entre os pontos analisados em 14 Estados brasileiros, mais de 75% continuam com qualidade de água classificada como regular – que, já muito afetada pela poluição, necessita de tratamento para o consumo humano. Os rios com água considerada ruim ou péssima, imprópria para qualquer uso, por sua vez, representam cerca de 17% do total monitorado. Nenhuma análise atingiu a classificação ótima.
Muito mais do que mera estatística, esses dados têm impacto direto na vida dos brasileiros. Milhões de pessoas têm o direito humano de acesso à água de qualidade comprometido e muitas sofrem com doenças relacionadas à poluição hídrica, além de verem a natureza à sua volta se deteriorar. Rios urbanos emblemáticos, como o Pinheiros, em São Paulo, e o Ribeirão dos Meninos, em São Caetano do Sul, para citar dois deles, seguem altamente contaminados com esgoto doméstico. São a imagem de uma crise que é ambiental, social, climática e política.
A falta crônica de saneamento básico, sobretudo de coleta e tratamento de esgoto, ainda é o grande obstáculo. Embora a meta oficial seja alcançar a universalização do tratamento de esgoto até 2033, a realidade atual está muito distante desse compromisso. Cerca de 35 milhões de brasileiros não têm acesso à água potável, além de o esgoto de quase metade da população ainda ser despejado diretamente nos rios, sem tratamento.
Esse grave problema não se resolve com promessas e prorrogações, mas com investimentos reais e imediatos em infraestrutura, fiscalização e políticas públicas. Novos modelos de gestão e o ingresso da iniciativa privada surgiram com a promessa de acelerar investimentos e modernizar a gestão do setor, mas, até agora, os rios monitorados ainda não mostraram resultados concretos. Pelo contrário: os dados atuais reforçam que não há evidências de que os modelos implementados estejam acelerando a universalização do saneamento.
Vários fatores e atividades desenvolvidas nas bacias hidrográficas aumentam os desafios de melhorar a qualidade da água e promover segurança hídrica. As mudanças climáticas intensificam os danos à água e à qualidade ambiental dos rios. Secas prolongadas diminuem drasticamente a vazão, o que torna os cursos d’água ainda mais vulneráveis à poluição. Chuvas extremas, cada vez mais frequentes, espalham contaminantes por quilômetros e carreiam sedimentos para os rios, o que causa o assoreamento dos corpos d’água e agrava a crise hídrica em áreas que antes não eram afetadas. Além disso, mudanças no uso da terra, desmatamento, conservação do solo e práticas agrícolas nas bacias também afetam diretamente a qualidade da água.
Rios como o Capibaribe, em Pernambuco, e o Capivari, em Florianópolis, sentem fortemente esses efeitos, com piora significativa da qualidade da água associada diretamente aos eventos climáticos recentes e à falta de tratamento de esgoto. Tudo isso impõe mudanças de comportamento e investimentos em soluções baseadas na natureza, especialmente na recuperação das florestas, das áreas de manancial e de recarga de aquíferos, além de tratamentos alternativos de esgoto doméstico.
E boas práticas trazem resultados positivos. Alguns rios têm mostrado que, com investimento direcionado, mobilização da sociedade e políticas públicas eficazes, é possível, sim, melhorar sua condição. A água do córrego Trapicheiros, no Rio de Janeiro, avançou de regular para boa, enquanto rios como Sergipe e do Sal, ambos em Sergipe, também apresentaram melhora. São pequenas vitórias que devem inspirar mudanças mais amplas em escala nacional.
Nesse contexto, a participação da sociedade ganha ainda mais relevância. Iniciativas de ciência cidadã, que possibilitam que qualquer pessoa se envolva no monitoramento da qualidade das águas em suas regiões, desempenham papel decisivo. Ao perceber de perto a situação de seus rios, comunidades se mobilizam com maior força e legitimidade para exigir mudanças efetivas.
O Observando os Rios é um exemplo disso. Com cerca de 2 mil voluntários espalhados pelo país, tem ajudado a construir um retrato detalhado e independente sobre o estado das águas brasileiras. É a cidadania que dá significado e potência aos dados coletados e à gestão e à governança da água.
No entanto, é preciso ir além. Reconhecer oficialmente que o acesso à água limpa é um direito humano. Temos que aprimorar nossas políticas públicas e legislação para classificar rios com metas de qualidade da água progressivas e acabar com os de classe 4 – aqueles rios altamente degradados em decorrência das cargas poluidoras que recebem. Um país que permite que sua água continue a ser utilizada para diluir esgoto não está preparado para a emergência climática que estamos enfrentando.
O Brasil pode e deve fazer diferente. Isso requer gestão integrada, participação e transparência. Exige incluir a água na agenda estratégica do país, assim como o combate ao desmatamento, a restauração florestal e criação de áreas protegidas para que de fato venha a liderar a transformação climática que precisamos.
A água, da mesma maneira que conta histórias sobre a nossa sociedade, pode revelar nossas possibilidades e capacidades de transformar e restaurar. Cabe a nós decidir qual legado queremos deixar: rios vivos, capazes de sustentar comunidades e a biodiversidade, ou condenados por uma legislação cada vez mais flexibilizada, voltada a manter um inaceitável retrato da negligência. Pois nossos rios, mesmo combalidos, ainda estão vivos – e mostram que cuidar deles é nossa responsabilidade
Malu Ribeiro é diretora de Políticas Públicas da Fundação SOS Mata Atlântica.
Gustavo Veronesi é coordenador da Causa Água Limpa da Fundação SOS Mata Atlântica.
Por Malu Ribeiro e Gustavo Veronesi
Fonte: Valor