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Prof. Dr. PEDRO MANCUSO: Reúso de água, sua importância e aplicações

Reúso de água, sua importância e aplicações. Aspectos conceituais, técnicos, legais e de Saúde Pública

Pedro Mancuso

Engenheiro Industrial Modalidade Química

Professor Doutor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo

A relação entre saneamento, saúde e ambiente vem sendo objeto da preocupação do meio científico, acadêmico e técnico em todo o mundo, principalmente em função do crescimento populacional dos grandes centros urbanos. Essa preocupação, que tem sido traduzida por diversos autores através de discursos na literatura especializada, procura traduzir a forma com que o saneamento vem sendo percebido em sua relação com a saúde e o ambiente.

Em última análise as visões desses pesquisadores são alicerçadas na prevenção de doenças, sendo atribuída ao saneamento a tarefa de evita-las por meio da higienização do ambiente e na promoção da saúde, onde ao saneamento caberiam ações voltadas para a melhoria da qualidade ambiental e de vida e na erradicação dessas doenças. Sousa,¹ atribui à Carta de Ottawa, documento elaborado na I Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde realizada no Canadá em 1986 (OPAS, 2007), a condição de ser o termo de referência a partir do qual as ideias de promoção da saúde se desenvolveram.

Por outro lado,² Lefèvre e Lefèvre advogam que o conceito positivo de saúde, apresentado pela Carta de Ottawa, deve ser interpretado no sentido mais radical. Assim sendo, saúde não seria mera ausência de doença, mas sim, a sua erradicação, o que seria alcançado operando sobre a sociedade como um todo, uma vez que nela residem os determinantes da ausência de doença, e não apenas no setor saúde, o qual se manteria atuante no processo.

Ainda citando Sousa no que diz respeito ao saneamento como promoção de saúde, esse autor também não a define como mera ausência de doenças, mas percebe-a como a erradicação das doenças e de seus agravos, pois propugnam intervenções definitivas, e não temporárias.

Assim, na ótica da promoção, o saneamento como ação positiva para a saúde deve assumir a responsabilidade de buscar erradicar determinadas doenças em parceria com o setor de saúde e com os demais setores ligados aos determinantes da saúde. As doenças, sinalizadoras do caminho para a saúde, seriam aquelas ligadas à falta de abastecimento de água de boa qualidade e em quantidade suficiente; de coleta e tratamento de esgotos, de limpeza pública e manejo de resíduos sólidos com disposição final sanitária e ambientalmente adequada; de drenagem de águas pluviais, por exemplo, dentre outras relacionadas a outros componentes do saneamento, como o controle de vetores e da poluição do ar e sonora.

Nessas condições, o saneamento como promoção de saúde abrange a implantação de uma estrutura física composta de sistemas de água, esgoto, resíduos sólidos e drenagem.

Já com relação à prevenção de doenças, os pesquisadores acima postulam que ela deve ser vista de forma semelhante à apresentada na Carta de Ottawa: prevenção é toda medida que antecede o surgimento ou o agravamento de uma doença, tendo por fim afastá-la do doente ou vice-versa para que essa condição não se manifeste, ou para que sua incidência seja diminuída, ou para que, pelo menos, sua manifestação seja o mais amena possível, tanto nos indivíduos como na população.

Dessa forma, a prevenção é criar barreiras de contato entre a doença e os indivíduos suscetíveis, enquanto promoção tem por fim a qualidade de vida, a eliminação total, ou pelo menos duradoura, da doença. Em última análise, os desequilíbrios ecológico-ambientais e os desarranjos gerados pela intensa urbanização, pelo modo de produção urbano e rural e pelo relacionamento do ser humano consigo mesmo e com seus semelhantes, resultam no surgimento das doenças.

Com relação a questão da poluição dos recursos hídricos, seu vínculo com a saúde pública é muito grande, pois em todo o mundo o lançamento de esgotos das cidades, tratados ou não, em corpos de água superficiais tem sido a solução adotada para seu afastamento.

Evidentemente como não existe um rio para cada cidade, os corpos de água receptores servem como fonte de abastecimento a mais de uma comunidade, havendo casos onde a mesma cidade lança seus esgotos e faz uso do mesmo corpo hídrico como manancial de água a ser potabilizada. São reutilizações sucessivas de grandes volumes de água, restando apenas como dúvida, o exato momento a partir do qual se admite que essa reutilização esteja sendo praticada.

Entre uma comunidade que capta água de um rio contendo esgotos de uma grande metrópole a montante e outra cidade às margens de outro grande rio onde apenas algumas pessoas despejam esgotos existem diferenças em termos de diluição, distâncias percorridas pelos efluentes e fatores naturais referentes à recuperação da qualidade desses rios, sendo impossível determinar o preciso instante em que foi iniciado o reúso da água.

Assim sendo, a caracterização de reúso deve levar em conta o volume de esgoto recebido pelo corpo de água, relativamente ao volume de água originalmente existente no rio. Num exemplo hipotético de comunidades que captam água de um rio que recebe quantidades crescentes de esgoto, não há sentido em identificar como reúso a situação da comunidade que captasse água cuja diluição pudesse ser caracterizada, em termos práticos, como infinita. O outro extremo é o da reutilização do esgoto para fins potáveis sem dispô-lo antes no meio ambiente, situação classificada por alguns autores como a de reúso potável direto.

Entretanto, do ponto de vista prático, não havendo alteração significativa da água pelo uso anterior, seja por uma carga insignificante ou por uma grande capacidade de diluição do corpo receptor, não se leva em consideração esse uso anterior. Se assim não fosse, não haveria possibilidade da utilização de rios que atravessam zonas urbanas, pelos serviços de saneamento básico.

A descrição acima evidencia a forte interação da saúde com vários outros fatores como aqueles ligados a questões administrativas, à territórios municipais, regiões metropolitanas, jurisdições e outros.

Esse aspecto mostra a total impossibilidade de que algum setor, isoladamente, possa dar conta de todos os nuances do problema. Ou seja, a política de saneamento, de acordo com essa visão, deve atuar de modo que os objetivos relativos à prevenção e a promoção da saúde sejam alcançados havendo, para isso, a preocupação de consorciar-se a outros setores como a área do Direito, num movimento de busca de parcerias.

É o caso do enquadramento dos corpos de água em classes de qualidade emanados da Política Nacional de Recursos Hídricos (resolução 357 de 2005 do Conselho Nacional de Meio Ambiente, Conama)³, à outorga, à cobrança pelo uso da água e ao sistema de informações sobre recursos hídricos, como defende Fink, DR[4].

Esse pesquisador, em última análise, advoga que esse conjunto de instrumentos constitui-se no arcabouço legal que norteia a reutilização de água uma vez que todos são voltados à preservação qualitativa da água para usos compatíveis com o esse enquadramento.

Esse raciocínio, afirma, decorre da própria definição de reúso. Em primeiro lugar, porque, se reúso é o reaproveitamento de águas anteriormente utilizadas, qualquer utilização que não seja primária se constitui em reúso. Assim, classes inferiores de águas podem ser chamadas de águas para reúso. Em segundo, porque se as águas comportam classes definidas segundo os usos preponderantes, leva-se em consideração um eventual reúso para estabelecer essas classes.

Ao classificar as águas, a resolução Conama 357/2005 já indica e define os usos preponderantes, definindo, consequentemente, o reúso indireto.

A classificação das águas tem por objetivo:

• assegurar às águas qualidade compatível com os usos mais exigentes a que forem destinadas;
• determinar a possibilidade de usos menos exigentes por meio de reúso;
• diminuir os custos de combate à poluição das águas, mediante ações preventivas permanentes, inclusive por meio do reúso.

De todas as classes em que estão divididas as águas doces, podemos afirmar que a única que não pode ser indicada para reúso é a Classe Especial, já que, por sua natureza, as águas pertencentes a essa classe são reservadas ao uso primário inicial “destinadas ao abastecimento para consumo humano com desinfecção, bem como à preservação do equilíbrio natural das comunidades aquáticas e preservação dos ambientes aquáticos em unidades de conservação de proteção integral”.

Pelo uso a que se destinam, se denota que as águas de Classe Especial são as águas naturais, tal como encontradas originalmente em cursos ou corpos de água. Portanto, ainda não utilizadas e não aproveitadas. As demais, por admitirem lançamentos dentro de critérios pré-definidos, admitem seu reúso.

Ainda com base em Fink DR, outra consideração a ser feita é que o reúso das águas classificadas que está implícito na resolução Conama 357/2005 é necessariamente reúso indireto, pois, quando reutilizadas, pressupõe-se sua captação em cursos e corpos de água de domínio público. A referida resolução somente classifica recursos hídricos de domínio público. Ou seja, ao classificar as águas, a resolução Conama 357/2005 já indica e define os usos preponderantes, definindo, consequentemente, o reúso indireto.

Na Região Metropolitana de São Paulo, a demanda de água vem sendo satisfeita por mananciais situados relativamente próximos a ela. Entretanto, existem propostas da exploração de corpos de água situados a grandes distâncias, numa cópia amplificada do que faziam os Romanos há mais de 2000 anos.

Atualmente existe tecnologia para atender a legislação de forma segura, não fazendo nenhum sentido tratar os esgotos de forma avançada e descartar essa água, agora segura, sem considerar a possibilidade ou necessidade de seu reúso. Essa política, que os países desenvolvidos chamam de Política de Conservação e Reúso de Água, consiste na solução extremamente racional, uma vez que não impactará as regiões de onde essa água seria retirada, nem nas comunidades de jusante pela disposição de esgotos não tratados.

Esta abordagem de reúso indireto é classificada pela literatura especializada como Reúso Indireto Planejado. Suas principais características são:

• a utilização de tecnologias de tratamento adequadas aos usos futuros e, de preferência, a melhor tecnologia disponível;
• a aplicação de múltiplas barreiras para maximizar as garantias oferecidas;
• o estabelecimento de critérios e de sistemas operacionais compatíveis com a segurança desejada;
e, principalmente:
• um sistema de monitoramento completo, redundante e seguro.

Ainda dentro do campo jurídico, em 12 de dezembro de 2011 o Ministério de Estado da Saúde publicou a Portaria MS 2914[5], que dispõe sobre os procedimentos de controle e de vigilância da qualidade da água para consumo humano e seu padrão de qualidade.

Esse dispositivo, que entrou em vigor nessa data, revogou a Portaria 518/GM/MS de 25 de março de 2004[6], introduzindo alterações em parâmetros microbiológicos e químicos, podendo-se citar alguns agrotóxicos e metais.

Além disso, em sua seção IV, artigo 13, item IV, sub item “e”, atribui ao responsável pelo Sistema ou Solução Alternativa de Abastecimento de Água para Consumo Humano, a tarefa de manter a avaliação sistemática do sistema através de um Plano de Segurança da Água -PSA- nos moldes recomendados pela Organização Mundial da Saúde, ou definidos em diretrizes vigentes no País. O PSA é o instrumento legal que norteará as ações que darão o necessário suporte técnico para que as regiões fortemente urbanizadas possam utilizar seus recursos hídricos com segurança.

Finalizando, é importante que se diga que não há alternativa ao uso de águas previamente utilizadas. O que deve ser garantido é que as intervenções de engenharia de saneamento que garantirão a prevenção das doenças e a promoção da saúde somente sejam efetivadas à luz desse arcabouço legal.

[1] Souza, C.M.N. Relação Saneamento-Saúde-Ambiente: os discursos preventivista e da promoção da saúde. Saúde Soc. São Paulo, v.16, n.3, p.125-137, 2007.

[2] Lefèvre, F.; Lefèvre, A. M. C. Promoção de saúde: a negação da negação. Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2004.

[3] Brasil. Resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente, Conama, n. 357 de 2005. Dispõe sobre a classificação dos corpos de água, dá diretrizes ambientais para seu enquadramento, bem como estabelece condições e padrões de lançamento de efluentes. Diário Oficial da República Federativa do Brasil Brasilia, 18 mar 2005, págs. 58-63.

[4] Fink, D.R. Reuso da água: proposta principiológica para desenvolvimento de disciplina legal no Brasil. São Paulo; 2003. [Dissertação  de Mestrado – Faculdade de Saúde Pública da USP].

[5] Ministério da Saúde. Portaria n0 2914, de 12.12.2011: dispões sobre os procedimentos de controle e vigilância da qualidade da água para consumo humano e seu padrão de qualidade. Brasília, 2011.

[6] Ministério da Saúde. Portaria n0 518, de 25.03.2004: estabelece os procedimentos e responsabilidades relativos ao controle e vigilância da qualidade da água para consumo humano e seu padrão de potabilidade, e dá outras providências. Brasília, 2004.

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