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Indicadores infecciosos e inflamatórios entre trabalhadores da limpeza urbana em São Paulo

Rev. bras. saúde ocup. vol.34 no.120 São Paulo July/Dec. 2009

http://dx.doi.org/10.1590/S0303-76572009000200002

Indicadores infecciosos e inflamatórios entre trabalhadores da limpeza urbana em São Paulo*

Infectious and inflammatory markers among urban cleaning workers in São Paulo

Gustavo Silveira Graudenz

Médico, PhD, pesquisador colaborador do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

Contato

RESUMO

O objetivo deste trabalho foi comparar agravos à saúde entre grupos funcionais de trabalhadores da limpeza urbana (TLU) decorrentes de exposição biológica do contato com os Resíduos Sólidos (RS) em São Paulo, 2007. Para tal, amostras dos grupos de TLU e um grupo Controle de servidores ferroviários realizaram entrevistas, contagens sanguíneas, provas de atividade inflamatória, marcadores sorológicos de infecção e exame protoparasitológico de fezes.Ao término, foram avaliados 217 indivíduos. O grupo Controle relatou menor cobertura vacinal para o tétano, enquanto os Varredores tiveram a menor proporção de cobertura para a hepatite B. Os Motoristas usaram mais antibióticos e apresentaram o número de leucócitos mais elevado quando comparados aos Controles. Os Motoristas apresentaram também maiores médias de neutrófilos e monócitos quando comparados aos Varredores. A presença de parasitas nas fezes foi mais frequente entre os Varredores e os Coletores quando comparados aos Controles. Os grupos de Coleta, Transbordo e Aterro apresentaram indicadores de infecções respiratórias e de atividade inflamatória sistêmica similares aos Controles. Não foram observadas diferenças entre episódios de sinusites, pneumonias, marcadores séricos de atividade inflamatória, contato com o vírus da hepatite B ou com a estreptolisina O entre os grupos estudados.

Palavras-chave: resíduos sólidos, saúde do trabalhador, exposição a agentes biológicos.

ABSTRACT

The purpose of this work was to evaluate the health effects due to biological exposure within different activities performed by groups of urban cleaning workers (UCW) compared to each other and to a control group of railway workers in Sao Paulo, 2007. Functional groups of UCW were submitted to interviews, blood counts, tests of inflammatory activity, serologic markers of infection, and stool parasitological testing. The final evaluation included 217 participants. The Control group reported lower vaccine protection against tetanus, whereas the Sweepers reported the lowest vaccine protection against hepatitis B. Drivers reported more antibiotic use and showed higher total leukocyte counts when compared to Controls. Drivers also demonstrated higher neutrophils and monocytes counts when compared to Sweepers. There was a higher presence of stool parasites among Sweepers and Collectors when compared to Controls. There were also no differences in indicators of respiratory infections or increased measurable inflammatory activity between Collectors, Landfills, and Intermediate Stations workers when compared to Controls. There were no differences in the number of sinusitis or pneumonias episodes, as well as serologic markers for inflammatory activity, contact with hepatitis B virus or anti-streptolysin O among studied groups.

Keywords: solid wastes, occupational health, exposure to biological agents.

Introdução

O modo de vida da sociedade ocidentalizada é caracterizado por uma geração crescente de resíduos sólidos (RS) em toda a sua cadeia. O aumento na geração de RS é um problema atual e crescente em diversos países da América Latina e do Caribe, particularmente mais grave em países com maior demanda e menor oferta de serviços de limpeza pública. O aumento da densidade populacional e a diminuição de espaços disponíveis para o processamento e o destino final dos RS, nas grandes cidades, são problemas adicionais que resultam na proximidade do habitante de grandes aglomerados urbanos com seus resíduos. O manejo e o destino final dos RS e suas interfaces com a saúde ocupacional têm adquirido importância crescente para a saúde pública e para o desenvolvimento sustentável do planeta.

O contato humano com os RS implica em riscos biológicos, químicos e físicos à saúde dos trabalhadores envolvidos com a coleta, o transporte e o armazenamento de RS. A diversificação do conteúdo dos RS decorrentes da constante introdução de novos materiais descartáveis no mercado modifica o potencial de exposição a bioaerossóis nos indivíduos que mantêm um contato mais próximo com os RS.

As atividades dos trabalhadores de limpeza urbana (TLU) são atividades de risco aumentado para alguns agravos à saúde, tais como: irritação das mucosas, rinite, asma, conjuntivite, pneumonite de hipersensibilidade, aspergilose bronco-pulmonar, dermatites e episódios de diarreia (MIDTGARD et al., 1999; LAVOIE et al., 2006; POULSEN et al., 1995; IVENS et al., 1997). Entretanto, a maioria dos estudos baseia-se em critérios subjetivos, como questionários, sendo as evidências comumente baseadas em indicadores aproximados (proxy), sem o uso de critérios mais objetivos de agravos à saúde. Da mesma forma, poucos são os estudos disponíveis na literatura com uma divisão clara das funções relacionadas ao manuseio dos RS, de modo a estratificar o risco conforme a atividade ou o grau de exposição aos RS. Além disso, a evolução das tecnologias ligadas aos aterros sanitários, como o controle de emissão de gases e a contenção de chorume em conjunto com o uso sistemático de equipamentos de proteção individual (EPI) e políticas de vacinação, são descritas como capazes de modificar o impacto na saúde de indivíduos expostos à contaminação biológica (LEIGHNER, 2001). Entretanto, a necessidade de verificar a eficácia dessas medidas na manutenção da saúde do TLU é colocada como uma das necessidades de pesquisa de saúde ocupacional da atualidade (LINZALONE; BIANCHI, 2005).

Este trabalho teve por objetivo avaliar sintomas, relatos ou alterações laboratoriais indicadores de doenças infecciosas decorrentes da exposição aos resíduos sólidos entre os diferentes subgrupos de trabalhadores da limpeza urbana (TLU) na cidade de São Paulo no ano de 2007.

Métodos

Seleção dos grupos

As atividades exercidas dentro da limpeza urbana são várias, mas podem ser divididas em cinco grupos: funcionários da coleta (Coletores); funcionários de aterros sanitários (Aterro), de estação intermediária ou transbordo (Transbordo); motoristas de caminhão de transporte de resíduos (Motoristas); funcionários da varrição (Varredores). Os funcionários de Aterro e Transbordo exercem diversas funções, como de operador de balança de pesagem, operador de transporte dos RS (ponte ou veículo automotor interno), bem como serventes e encarregados de serviços gerais. Os sujeitos de pesquisa foram retirados de três concessionárias privadas licitadas pela prefeitura para executar a limpeza urbana, denominadas empresa A, B e C. Na realização do estudo, a empresa A contava com 107 funcionários de aterro, 383 funcionários na coleta, 57 no transbordo e 1.097 motoristas, a empresa B, com 1.025 funcionários de varrição e a empresa C, com 36 funcionários de aterro, 1.068 funcionários na coleta, 13 no transbordo e 401 motoristas. O grupo dos motoristas pode ser classificado como de risco biológico atenuado por não ter contato direto com os RS.

O grupo controle foi composto por funcionários de manutenção de linhas ferroviárias que tinham características de trabalho semelhantes às dos grupos de estudo, como trabalho a céu aberto e nível socioeconômico similar, porém sem contato com RS.

Todos os grupos foram compostos por indivíduos do sexo masculino e pareados por idade (38 ± 5 anos). As comparações foram dirigidas às funções exercidas. A estratégia de amostragem do presente estudo visou à criação de grupos com número de integrantes semelhantes, de forma a comparar as dispersões sobre as médias a partir de um universo de tamanho uniforme.

Os critérios de inclusão foram: mais de 30 meses na atividade, capacidade de ler, compreender e consentir por escrito com o termo de consentimento livre e esclarecido. Os critérios de exclusão foram: vigência de sintomatologia febril aguda até 15 dias antes dos testes, uso de medicação antibiótica ou anti-inflamatória nos 14 dias antecedentes à coleta e/ou tabagismo regular presente.

A perda de contingente após a exclusão do tabagismo e a obtenção do termo de consentimento de cada grupo de TLU durante o estudo foi de 13,5% para o grupo dos Motoristas, 36,4% para os Varredores, 35,8% para o grupo do Aterro, 25,5% para o grupo da Coleta, 41,2% para o Transbordo, 41,8% para o grupo Controle. Os sujeitos de pesquisa foram selecionados e pareados por idade de forma aleatória a partir do grupo de menor contingência (Transbordo n=30).

Após a aprovação do comitê de ética da Faculdade São Camilo-SP, 217 sujeitos de pesquisa realizaram entrevistas e exames laboratoriais durante o período de setembro de 2007 até fevereiro de 2008. Os indivíduos foram divididos de acordo com sua função relacionada aos RS: 34 funcionários de Aterro, 30 funcionários do Transbordo, 41 funcionários da Coleta, 35 Varredores, 45 Motoristas e 32 indivíduos do grupo Controle. Os resultados foram considerados de acordo com a função dos indivíduos. Foram excluídos: um voluntário do grupo dos Varredores por sintomatologia febril e dois do grupo dos Motoristas devido ao uso de antibióticos a menos de 15 dias das coletas. O restante foi excluído devido ao pareamento de idade ou por faltar às coletas programadas. Não se tem registro dos voluntários que foram excluídos por terem menos de 30 meses na função, nem de qualquer voluntário que tenha sido excluído por não ter a capacidade de entender o termo de consentimento livre e esclarecido.

Metodologia dos procedimentos realizados

Após a assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido, os indivíduos incluídos, após a revisão dos critérios de inclusão e exclusão, foram submetidos aos seguintes procedimentos:

Entrevistas: As informações de antecedentes pessoais e sintomas infecciosos ou inflamatórios foram obtidas através de um profissional biomédico de pesquisa clínica, mediante entrevista individual. Foram incluídas perguntas sobre tabagismo atual e passado, status vacinal para hepatite B e tétano, presença de febre medida com calafrios e dores articulares, sintomas de sinusite (dor de cabeça, secreção escura do nariz), uso de antibiótico nos últimos 12 meses e episódios de pneumonia diagnosticada por médico.

Exames laboratoriais: Foram realizados leucograma por impedância elétrica, fotometria e citometria de fluxo com citoquímica e fluorocromo (ABX Pentra 120 Montpellier/França), velocidade de hemossedimentação (VHS) através de metodologia de Westergreen modificada por Nefelometria (Vacuette SR100/ II Forli/Itália); proteína c reativa ultrassensível (PCR) por Quimioluminescência (Immulite 2000 New Jersey/ Estados Unidos); antiestreptolisina O (ASLO) por Nefelometria (Behring Nephelometer BNII Marburg/ Alemanha), dosagem de anticorpos anti-core do vírus da hepatite B (Anti-HBc) através do método de enzima-imuno ensaio por micropartículas (AXSYM Dallas/Estados Unidos); e exame parasitológico de fezes pelos métodos de Ritchie e Hoffmann.

Análise estatística: As médias das variáveis numéricas foram comparadas usando-se o teste de Kruskal Wallis e as comparações múltiplas foram feitas pelo teste de Tukey HSD. As variáveis discretas e qualitativas foram comparadas usando-se o teste de qui-quadrado. Foi considerado significativo quando p< 0,05.

Resultados

A análise das características da amostra estudada mostrou o Transbordo como sendo o grupo de funcionários com menor tempo de serviço na função, quando comparado a todos os outros grupos, exceto os Motoristas, e estes, com tempo menor que os Coletores e Controles. Não foram verificadas diferenças relativas ao tabagismo passado. Foram observadas diferenças no status vacinal para o tétano e para a hepatite B. O grupo Controle apresentou os menores percentuais de resposta positiva para vacinação contra o tétano entre os grupos. A positividade de vacinação para hepatite B ultrapassou 70% nos grupos de Aterro, Transbordo, Coletores e Motoristas e ficou abaixo de 30% no grupo dos Varredores (Tabela 1).

 

Quanto a sintomas, medicações e eventos infecciosos ou inflamatórios relatados, foi verificada uma diferença significativa com relação ao uso de antibiótico nos últimos 12 meses entre os grupos. O grupo que menos relatou o uso foi o do Aterro (11,8%) e o grupo dos Motoristas foi o que mais o relatou (33,3%). Não foram identificadas diferenças quanto à sintomatologia de febre e dores articulares, sinusite ou episódios de pneumonias e seu respectivo tempo de diagnóstico entre os grupos estudados (Tabela 2).

A análise da série branca do hemograma mostrou diferenças entre os grupos. Os Motoristas mostraram número de leucócitos totais superior ao dos Controles e Varredores, bem como contagens de neutrófilos e monócitos superiores às dos Varredores. O grupo do Transbordo mostrou número de linfócitos maior que o da Coleta e do Aterro, conforme mostrado na Tabela 3.

Os marcadores sorológicos mostraram diferenças de positividade de leptospirose entre os grupos. Os grupos dos Varredores e dos Controles apresentaram as maiores proporções de positividade, 25,7% e 18,7% respectivamente. Não foram observadas diferenças na comparação dos resultados de VHS, PCR, IgG Anti-HBC e ASLO entre os grupos, conforme demostrado na Tabela 4.

Tabela 5 descreve o percentual de exames parasitológicos de fezes e suas divisões. Foram considerados protozoários parasitas a Entamoeba hystolítica, a Giardia lamblia, o Strongyloides stercoralisBlastocystis Hominis, Hymenolepis nana e foram considerados comensais Endolimax nanaEntamoeba coli e Iodamoeba Butschilli. Foi encontrada uma diferença entre os grupos, sendo o percentual de positividade total e de protozoários patogênicos mais frequente nos Varredores. Não foi verificada diferença entre percentual de positivos para helmintos (Tabela 5).

 

Discussão

No presente estudo, os resultados mostraram ausência de agravos de saúde detectáveis nos grupos de Coletores, Aterro e Transbordo quando comparados ao grupo Controle, possivelmente resultante das políticas de prevenção e imunização realizadas. O grupo dos Varredores mostrou-se mais vulnerável à exposição para hepatite B, leptospirose e parasitoses intestinais.

Questionários e entrevistas com funcionários podem ser fontes de vários tipos de vícios. Para diminuir o vício de seleção, a população foi selecionada aleatoriamente e pareada por idade. O viés de informação foi diminuído com o uso de entrevistador treinado para obter a informação correta, evitando direcionar a resposta. Ainda pode haver outro viés de informação quando esta é dada com outro propósito que não para o qual a pergunta foi concebida. O chamado “efeito do trabalhador saudável”, que é principalmente encontrado nas camadas socioeconômicas mais baixas, tende a minimizar sintomas e relato de doenças relacionadas ao trabalho devido à incerteza do uso das informações. Outra dificuldade de obtenção das informações é o viés de memória, quando o entrevistado pode não se lembrar precisamente do que aconteceu no passado recente. Na parte das entrevistas do presente trabalho, não podemos descartar um viés de memória ou o “efeito do trabalhador saudável”.

Outro tipo de viés é o de seleção dos grupos. A exclusão dos tabagistas devido aos efeitos pró-inflamatórios resultantes do tabagismo pode selecionar indivíduos mais saudáveis, todavia, como este critério foi o mesmo usado para os Controles, diminui a probabilidade de diferença entre os grupos. A exclusão de TLU com quadros agudos febris ou uso de antibióticos pode criar outro viés de seleção. Entretanto, o pequeno número de exclusões por processos febris agudos e a semelhança entre o número relatado de infecções passadas e marcadores sorológicos de infecção entre os grupos (Tabela 2) diminui essa possibilidade. Ainda que os grupos tenham sido formados e pareados aleatoriamente a partir do grupo de menor contingência, não é possível descartar um viés de seleção. A não inclusão ou o registro dos indivíduos com menos de 30 meses na função dá-se pelo período de exposição limitado deste grupo. Dado o número de participantes ser limitado para o número de grupos e variáveis estudados, é recomendável a realização de estudos com um contingente maior de participantes para a confirmação dos achados descritos. Os autores limitam-se à comparação dos grupos estudados evitando a extrapolação a todo o contingente de TLU.

Para o presente estudo, foi feita uma estratégia de não utilizar amostras proporcionais ao tamanho do contingente total dos TLU, limitando a extrapolação dos achados ao universo dos TLU, mas sim de tentar garantir a homogeneidade das variâncias por meio da criação de grupos de tamanho similares, com valores de dispersão sobre as médias mais facilmente comparáveis (ROTHMAN, 1998).

O perfil da população foi considerado homogêneo devido à inclusão somente de indivíduos do sexo masculino, pareados por idade e sem diferenças nos hábitos de tabagismo prévios. O relato do status vacinal demonstrou diferenças que refletem uma política de cobertura para tétano acima de 90% em todos os grupos de contato com os RS, atingindo 100% de cobertura relatada entre os coletores, em contraste com o nível menor de cobertura do grupo Controle (Tabela 1). O relato da vacinação para hepatite B é superior a 70% nos grupos de Aterro, Transbordo, Coleta e Motoristas. Os grupos Controle e Varredores relataram os menores percentuais de vacinação.

A presença de sintomas de dores articulares, episódios febris, número de episódios de pneumonia, sinusite ou uso de antibiótico nos últimos 12 meses são indicadores de eventos de natureza inflamatória ou infecciosa (SAKETKOO; ESPINOZA, 2006). No presente estudo, não foi evidenciado aumento de relatos de pneumonias ou sinusites entre os TLU (Tabela 2). Apesar da associação de sintomas respiratórios com a separação do lixo doméstico já ter sido relatada (HELDAL; EDUARD, 2004), a manipulação, o transporte e a estocagem dos RS pela metodologia estudada não mostram diferenças entre os grupos estudados, sugerindo exposição a agentes irritativos mais elevada nas práticas de reciclagem dos RS, comparada às funções estudadas.

A série branca do hemograma mostra a contagem total e diferencial dos leucócitos e é comumente afetada por doenças inflamatórias e infecciosas agudas ou crônicas. O diferencial dos leucócitos pode trazer muitas informações sobre o grau de ativação do sistema imunológico, entretanto não é considerado um exame muito sensível para demonstrar ativações mais sutis do sistema imunológico. A VHS e PCR são mais sensíveis do que as alterações na série branca do hemograma, sendo seu uso conjunto uma estratégia sensível, porém pouco específica para avaliar indicadores inflamatórios significativos. Em uma situação de exposição biológica significativa, espera-se encontrar um aumento do número de leucócitos e seus subgrupos, aumento da VHS e da PCR, podendo ocorrer também um aumento nas formas jovens de leucócitos (bastões) nos casos de infecções agudas. O presente estudo não mostrou elevação nos indicadores de ativação inflamatória tanto na série branca, como pela comparação dos valores de VHS e PCR nos grupos de contato direto com os RS (Coletores, Varredores, Aterro e Transbordo) quando comparados aos Controles (Tabelas 3 e 4). Estudos similares mostram resultados controversos. Gladding, Thorn e Stott (2003) demonstraram valores de hemograma normais em funcionários de reciclagem de lixo doméstico com diminuição percentual de macrófagos, enquanto Thorn, Beijer e Rylander (1998) demonstraram uma diminuição do número de macrófagos juntamente com o aumento do número de linfócitos, sem alteração na contagem total dos leucócitos em Coletores de RS. Ray et al. (2005) descrevem aumento na contagem dos leucócitos e dos eosinófilos além de outros agravos à saúde em funcionários de depósito de lixo a céu aberto na Índia, sugerindo um efeito diferente na saúde relativo às diferentes maneiras de processamento e armazenagem dos RS.

Os linfócitos, os neutrófilos e os macrófagos são peças fundamentais na resposta imunológica. Eles têm papéis destacados tanto na imunidade humoral (produção de anticorpos), quanto na imunidade celular (fagocitose). De forma inesperada, o estudo mostrou contagens de leucócitos totais, neutrófilos e monócitos mais elevadas em Motoristas quando comparados aos Controles e Varredores. Esta diferença pode significar somente as variações intrínsecas do leucograma ou um estado de ativação inflamatória sanguínea desse grupo por outro tipo de agente agressor, uma vez que o Motorista não tem contato direto com os RS. Os motoristas de grandes cidades podem estar expostos a níveis elevados de material particulado fino dentro da cabine de veículos decorrentes da concentração dos poluentes externos, oriundos da queima de combustível (ZHU et al., 2007). Ensaios com animais já demonstraram o aumento do número de leucócitos e monócitos no sangue após exposição ao material particulado ultrafino suspenso no ar (GOTO et al., 2004), sugerindo uma exposição ocupacional não relacionada aos RS, mas sim à queima de combustíveis fósseis com aumento no uso de antibiótico e reflexos na série branca.

Em estudos epidemiológicos, o uso de marcadores sorológicos é útil para identificar a exposição prévia por contato direto ou por vacinação com os agentes biológicos estudados. A importância da hepatite é sistematicamente lembrada em estudos de saúde ocupacional de TLU e, por alguns, é considerada como marcador de exposição biológica (TREVISAN et al., 1999). A política de vacinação para hepatite A e B é advogada como mandatória para a proteção dos trabalhadores em contato com RS devido a relatos de presença de componentes virais em amostras de RS (DENG; DAY; CLIVER, 1984; SQUERI et al., 2006). A dosagem do anticorpo anti-core do vírus da hepatite B indica o contato prévio com o vírus. Não foram encontradas diferenças na comparação do Anti-HBc na população estudada (Tabela 4). Resultados negativos similares já haviam sido relatados na literatura com funcionários da limpeza urbana na Grécia (DOUNIAS et al., 2005) e, em revisão da literatura sobre o assunto, Tooher et al. (2005) ressaltaram não existir um único caso de hepatite ou tétano ocupacional entre os TLU devidamente descrito na literatura. Por outro lado, o contato com o vírus já foi relatado na Itália em até cerca de 32% da população de TLU (SQUERI et al., 2006). Em estudo brasileiro, a comparação da soroconversão para Anti-HBc entre Coletores de RS domiciliares e hospitalares mostrou positividade de 12,9% a 14,2%, nos respectivos grupos, não sendo observada diferença entre os grupos estudados (FERREIRA et al., 1999). Em relatório técnico da Fundacentro, nas 3.735 comunicações de acidentes de trabalho entre 1990 e 1994, há somente um relato de exposição a doenças transmissíveis por mecânico de veículo entre os TLU (MAÇÃIRA; TOLEDO; ANDREOTTI, 1999). De forma inesperada, o grupo dos Varredores mostrou um percentual de positividade do Anti-HBc elevado, sugerindo a necessidade de inclusão deste grupo nas políticas sistemáticas para a vacinação para a hepatite B.

A antiestreptolisina O (ASLO) é um anticorpo decorrente da interação imunológica entre o organismo e produtos extracelulares do estreptococo, uma bactéria gram-positiva potencialmente patogênica e não patogênica. Os estreptococos são largamente distribuídos na natureza e como comensais em animais. Mais de 20 espécies estão catalogadas no Manual Bergey. As infecções decorrentes dos estreptococos são geralmente adquiridas por inalação ou ingestão. Aerossol, contato direto ou fômites são os modos mais comuns da difusão. A ASLO é um marcador útil para avaliar o grau de contato com o estreptococo, responsável por infecções respiratórias como sinusites e pneumonias, além de doenças diarréicas. Títulos elevados e crescentes, atingindo um nível máximo em 4 a 6 semanas, sugerem infecção estreptocócica recente. Os resultados obtidos não mostraram diferenças de titulação entre os grupos (Tabela 4), não demonstrando evidências de infecção recente por este microorganismo em nenhum dos grupos estudados.

A leptospirose é uma doença transmitida pela espiroqueta patogênica Leptospira interrogans e está relacionada à urina de rato, sendo comuns surtos em situações de inundação. O contato com a leptospirose também pode ser determinado pela sorologia. A Tabela 4 mostra um percentual de positividade significativamente diferente entre os grupos de função. O percentual de positividade da sorologia foi elevado entre os Varredores e os Controles. A prevalência de sorologia positiva entre trabalhadores de esgotos no sudeste do Brasil já havia sido descrita como em cerca de 10% (ALMEIDA et al., 1994) e Coletores de lixo em cerca de 47% (VASCONCELOS et al., 1992). Em estudo sorológico retrospectivo de 29 anos, Romero, Bernardo e Yasuda (2003) afirmam que a leptospirose é endêmica no estado de São Paulo, o que pode parcialmente explicar a positividade da sorologia em Controles e Varredores. Os parasitas intestinais estão entre os patógenos mais frequentemente encontrados em seres humanos e o contato direto com os RS pode aumentar a possibilidade de infestações parasitárias intestinais. A presença de parasitas e comensais nas fezes é diagnosticada pela pesquisa de ovos ou larvas de helmintos, cistos ou oocistos de protozoários nas fezes.

O exame parasitológico de fezes frescas possui uma excelente especificidade. Entretanto, sua sensibilidade só será adequada (95%) se forem solicitados exames de pelo menos três amostras de fezes em dias distintos. Portanto, um resultado negativo em uma única amostra não elimina a possibilidade de uma parasitose.

A positividade vai depender de diferentes fatores. O estágio da infecção, o ciclo do parasita, a eliminação intermitente de formas de resistências, a intensidade do parasitismo e o exame propriamente dito, que utiliza apenas uma pequena amostra do material enviado, são alguns dos fatores que interferem na possibilidade do exame se revelar positivo. Os organismos avaliados pelo exame protoparasitológico podem ser divididos entre protozoários e helmintos. Os Coletores, os Varredores e os Motoristas mostraram percentuais mais elevados de protozoários achados nas fezes. Mesmo utilizando-se de amostra única de fezes, os achados mostraram uma prevalência de positividade acima dos percentuais da população de 8,8% a 17,8% em estudos epidemiológicos de pequenas populações (GIOIA, 1992; FERREIRA; FERREIRA; MONTEIRO, 2000). Estudos de infestação parasítica intestinal em trabalhadores de limpeza urbana não são frequentes na literatura. Um estudo realizado na Nigéria mostrou percentuais de positividade altos em diferentes trabalhadores da limpeza urbana com divisão de grupos e resultados similares (MBA, 2004). Apesar de não ser possível descartar as diferenças de contaminação protoparasitária devidas a outros condicionantes não relacionados à exposição ocupacional, como condições de moradia, renda familiar e grau de escolaridade (FERREIRA; FERREIRA; MONTEIRO, 2000), recomenda-se uma política de prevenção e controle para parasitas intestinais nas populações de TLU estudadas, especialmente aplicável entre Coletores e Varredores na cidade de São Paulo.

Conclusão

No grupo dos Varredores, verificou-se um percentual maior de presença de protozoários nas fezes, menor cobertura vacinal para hepatite B e maior percentual de contato com o agente causador da leptospirose. Este grupo pode beneficiar-se de políticas de vacinação sistemática para hepatite B, de prevenção e controle para parasitoses intestinais e medidas preventivas para leptospirose. O grupo dos Motoristas fez uso mais frequente de antibióticos e mostrou contagem de leucócitos totais maior que o grupo Controle e percentual de macrófagos e neutrófilos maior que os Varredores. Não foram observadas diferenças entre episódios de sinusites, pneumonias, marcadores séricos de atividade inflamatória, contato com o vírus da hepatite B ou com a estreptolisina O entre os grupos estudados. Os grupos de Coleta, Transbordo e Aterro apresentaram indicadores de infecções respiratórias e aumento da atividade inflamatória sistêmica similares aos Controles, não sugerindo risco elevado para estas patologias nesses grupos. Estudos posteriores são necessários para confirmar os achados aqui relatados.

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