Rev. Econ. Sociol. Rural vol.41 no.4 Brasília 2003
http://dx.doi.org/10.1590/S0103-20032003000400003
Análise da comercialização de energia elétrica cogerada pelo setor sucroalcooleiro no estado de São Paulo
Marilda da Penha Teixeira NagaokaI; Maura Seiko Tsutsui EsperanciniII; Flávio Abranches PinheiroIII
IAluna do Programa de Pós Graduação em Agronomia – Energia na Agricultura – FCA/UNESP – Fazenda Experimental Lageado Caixa Postal 237 – CEP: 18.603.970 Botucatu/SP – Brasil, Economista, e-mail.[email protected]
IIOrientador e docente do Departamento de Gestão e Tecnologia Agroindustrial – FCA/UNESP, Fazenda Experimental Lageado Caixa Postal 237 – CEP: 18.603.970 Botucatu/SP Botucatu/SP – Brasil, e-mail.[email protected]
IIICo-Orientador e docente do Departamento de Gestão e Tecnologia Agroindustrial – FCA/UNESP, Fazenda Experimental Lageado Caixa Postal 237 – CEP: 18.603.970 Botucatu/SP – Brasil, e-mail. [email protected]
RESUMO
O Brasil viveu, em 2001, uma crise de oferta de energia elétrica sem precedentes que coincidiu com o processo de reestruturação do setor elétrico brasileiro e possibilitou aos autoprodutores de energia elétrica,como o setor sucroalcooleiro, comercializarem o excedente de energia, obtidos pelo processo de cogeração, que apesar do elevado potencial de comercialização, não está sendo devidamente aproveitado. Este trabalho teve por objetivo caracterizar o mercado de energia elétrica cogerada e analisar os obstáculos à comercialização da energia cogerada, à luz da existência dos custos de transação e econômicos, enfrentados pelo setor sucroalcooleiro e distribuidoras. Para a coleta de informações, foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com o responsável pela área de cogeração das usinas e distribuidora de energia, que consistiam em perguntas pré-determinadas que foram lidas na mesma ordem e da mesma maneira para todos os entrevistados para assegurar a comparabilidade dos resultados. As entrevistas foram gravadas, transcritas e examinadas por meio da análise de conteúdo. Os resultados indicaram que poderiam ser estabelecidos contratos de longo prazo, mas os custos de transação e econômicos entre os agentes podem estar superando os benefícios da comercialização de energia elétrica cogerada, fazendo os agentes atuarem preferencialmente no mercado spot.
Palavras-chaves: Custos de transação e econômicos, cogeração e comercialização
1. Introdução
O país viveu, em 2001, uma crise de escassez de energia elétrica sem precedentes e o governo implementou o racionamento de energia em várias regiões. As crises de oferta de energia elétrica podem levar o país a adotar, de forma mais expressiva, outras alternativas de geração de energia elétrica, entre elas a cogeração de energia elétrica1, a partir de bagaço de cana-de-açúcar, que há vários anos, vem sendo adotada pelas usinas sucroalcooleiras visando o suprimento próprio de energia elétrica, e mais recentemente, algumas delas vêm comercializando o excedente com as distribuidoras.
Segundo Sleiman (1999) a geração de energia elétrica excedente pela usina de cana-de-açúcar assume uma posição estratégica em relação à valorização da atividade econômica regional, à questão ambiental, ao uso mais eficiente de insumos energéticos e à competitividade do setor industrial. De acordo com Coelho & Zylbersztajn (1998) o setor sucroalcooleiro pode usufruir de vantagens na venda de excedentes de energia elétrica devido às dificuldades econômicas relativas aos preços de venda de açúcar e álcool no mercado mundial que, segundo Delgado (2000), não têm coberto os custos de produção acarretando a necessidade de diversificação e implantação de economias de escopo.
A comercialização da energia elétrica cogerada pelo setor sucroalcooleiro começou a ser viabilizada com a reforma do setor elétrico brasileiro, que visa permitir ao governo centrar-se em funções de elaboração de políticas energéticas e de regulamentação do setor, propiciando a transferência da responsabilidade sobre operações e novos investimentos ao setor privado. Desta forma, é possível que a cogeração venha a ter uma participação maior na matriz energética brasileira, dada a sua importância como fonte de energia alternativa em momentos de redução de oferta de energia.
A conseqüência da reestruturação do setor elétrico para o setor sucroalcooleiro é a perspectiva de um novo negócio, com a venda dos excedentes de energia às concessionárias num primeiro momento, e aos consumidores livres num futuro próximo. A reestruturação do setor e o processo de privatização das empresas distribuidoras e geradoras de energia elétrica criam um ambiente favorável à competição no mercado de energia elétrica.
Apesar das vantagens que a cogeração apresenta, o excedente de bagaço de cana não vem encontrando, até hoje, uma utilização economicamente viável, quer na geração de energia elétrica, quer em outras aplicações. Em alguns casos, esse excedente tem sido utilizado como volumoso de ração animal, como combustível nas indústrias de suco de laranja ou mesmo na geração de pequeno excedente de energia elétrica, vendido às concessionárias por preços reduzidos (DNA Cana-de-Açúcar,1998).
A maioria dos trabalhos da área analisa as vantagens potenciais da cogeração, mas são poucos os estudos que trabalham de forma mais sistematizada os obstáculos à comercialização de energia elétrica cogerada, como os de Baptista (1998), Curi (1997) e Coelho e Zylbersztajn (1998), que trabalham as questões de regulamentação que rege o setor.
A hipótese subjacente a este trabalho é que existem custos de transação e econômicos que superam os benefícios da comercialização da energia cogerada pelas usinas, por isto o potencial não vem sendo aproveitado.
Neste sentido, este trabalho teve por objetivos caracterizar o mercado de energia elétrica cogerada e analisar os obstáculos do setor sucroalcooleiro e das distribuidoras em comercializar a energia cogerada pelo setor, à luz da existência de custos de transação e econômicos.
2. Metodologia
2.1. Coleta de dados
Os custos de transação dificilmente são mensuráveis do ponto de vista quantitativo, porém é possível captar a visão dos agentes econômicos envolvidos nas transações pela análise dos parâmetros que regem os contratos de compra e venda de energia e dos impeditivos transacionais que dificultam o desempenho deste mercado.
Para o presente estudo, foi utilizada a entrevista semi-estruturada que é formada por questões abertas padronizadas, seguindo-se um roteiro básico, cujos itens foram definidos previamente, sendo que as respostas ficam a critério do entrevistado. A vantagem deste tipo de questionário é permitir que o entrevistado manifeste suas opiniões, pontos de vista e argumentos, com uma condução adequada do entrevistador de modo a cobrir todos os itens do roteiro.
A entrevista é a técnica mais utilizada nas pesquisas sociais, podendo ser empregada como técnica principal de um estudo ou combinada com outras e ser realizada por contato face a face ou telefone (Alencar, 1999). Para a realização da entrevista, o pesquisador utiliza um questionário e/ou um roteiro. Tais instrumentos são planejados e elaborados tendo em vista o problema, o objetivo do estudo, o seu referencial teórico e as suas hipóteses, e destina-se a fornecer informações pertinentes para um objeto de pesquisa e inserção de temas igualmente pertinentes com vistas a atender este objetivo.
Exemplo da utilização da entrevista semi-estruturada como método de coleta de informações foi encontrado em Perosa (1999), onde o autor avaliou a percepção dos agentes dos segmentos do sistema agroalimentar da carne bovina em relação ao papel da coordenação na competitividade deste sistema, visando a redução dos custos de transação. Conforme o autor, as opiniões dos agentes são subjetivas e este tipo de coleta de informação qualitativa explicita a visão do entrevistado.
Na entrevista podem ser obtidos dados de duas naturezas: os que se referem a fatos que o pesquisador poderia conseguir através de outras fontes, como censos e estatísticas e os dados que referem-se diretamente ao indivíduo entrevistado, isto é, suas atitudes, valores e opiniões, (Minayo, 1998).
As perguntas fundamentais que constituem a entrevista semiestruturada, no enfoque qualitativo, não nascem a priori. Elas são resultados não só da teoria que alimenta a ação do investigador, mas também de toda a informação recolhida sobre o fenômeno social que o interessa, (Triviños, 1987).
Neste sentido, para elaborar o roteiro de entrevista foram realizados contatos junto aos técnicos da Coopersucar no município de Piracicaba, da Associação dos Fornecedores de Cana-de-açúcar do município de Lençóis Paulista e das usinas São Manoel no município de São Manuel, e Barra Grande, em Lençóis Paulista. Foram selecionadas as principais usinas da região de Bauru/Botucatu e uma da região de Ribeirão Preto. Como a regulamentação para o setor atinge todo o setor indistintamente, admitiu-se que os custos de transação levantados nesta amostra devem representar a percepção do setor como um todo. Estes contatos tiveram como objetivo o levantamento de informações sobre a comercialização da energia cogerada pelo setor sucroalcooleiro. A partir destas informações elaborou-se um questionário cujo eixo estivesse voltado à caracterização do mercado de energia elétrica cogerada e às questões das dificuldades e/ou obstáculos para a comercialização de energia cogerada.
As entrevistas realizadas tiveram dois focos principais, definidos no contato prévio com técnicos da área: a)caracterizar o mercado de energia elétrica cogerada utilizando-se o bagacilho da cana a partir de 4 características básicas: freqüência de transações, incerteza, estrutura informacional e especificidade de ativos; e b) analisar os custos de transação ex-ante e ex-post que constituíram impeditivos à expansão do mercado de energia elétrica cogerada.
Embora a situação, em termos de volume de energia cogerada comercializada fosse diferente entre as usinas, optou-se por fazer o mesmo questionário, pois esperou-se que as usinas que ainda não comercializam energia destacassem mais os custos ex-ante e as usinas que já comercializam algum volume de energia privilegiassem os custos ex-post nas respostas. As informações a respeito das usinas que foram analisadas constam do quadro a seguir:
Os custos ex-ante constantes do questionário foram relativos à procura e obtenção de informações, consultoria e elaboração de contratos, enquanto os custos ex-post foram garantias, seguros, monitoramento e acompanhamento jurídico, renegociação e manutenção.
Para melhor validar os resultados, foram privilegiados, na coleta de dados qualitativos nas usinas de açúcar e álcool e na empresa distribuidora de energia elétrica, aqueles interlocutores que, pela função que ocupam e/ou pelo conhecimento presumido que detenham, fossem capazes de apresentar uma visão ampla acerca da situação da comercialização da energia elétrica cogerada pelo setor sucroalcooleiro, da evolução da comercialização e das dificuldades na comercialização desta energia, bem como dos anseios de cada agente com relação à questão proposta.
Os entrevistados foram os responsáveis pelo setor de cogeração das usinas São Manuel, Barra Grande, São José, São Martinho, Usina da Barra e da Companhia Paulista de Força (CPFL). Todas as usinas analisadas localizam-se em municípios do Estado de São Paulo e a CPFL tem sede no município de Campinas – SP.
A entrevista semi-estruturada consistiu em perguntas pré-determinadas que foram lidas precisamente na mesma ordem e da mesma maneira para todos os entrevistados para assegurar a comparabilidade dos resultados. Estas entrevistas foram realizadas no período de 19/04 a 4/05/2001 e foram gravadas, com uma duração média de duas horas cada uma.
2.2 Tratamento e análise de dados
O processo metodológico foi estruturado sobre dois eixos definidos, seguindo-se basicamente dois planos: a) coleta dos dados – a entrevista propriamente dita, utilizando-se perguntas abertas com o objetivo de captar a percepção do entrevistado sobre a situação das usinas em termos da comercialização da energia elétrica cogerada por esse setor, a evolução da comercialização desta energia e as dificuldades enfrentadas pelo setor na comercialização da mesma; e b) tabulação dos dados – o processo de tabulação consistiu na leitura qualificada e atenta de cada entrevista, destacando-se conteúdos e temas previamente definidos como importantes, organizados em um roteiro de tabulação.
O procedimento nas entrevistas vinculou a coleta de dados e sua tabulação às questões pré-definidas e coerentes, evitando-se a coleta de grande quantidade de dados e informações, desarticuladas dos objetivos e metas propostos na pesquisa.
As entrevistas semi-estruturadas realizadas junto às usinas e distribuidora de energia foram gravadas, transcritas e examinadas e as respostas dos entrevistados foram agrupadas de acordo com as perguntas.
Neste trabalho utilizou-se a técnica de análise de conteúdo proposta por Triviños (1987) que é composta por três etapas: préanálise, descrição analítica e interpretação inferencial. A pré-análise é, simplesmente, a organização do material. Formulada a hipótese sobre determinado apoio teórico, com as técnicas que foram empregadas para a reunião de informações, tem-se material para ser estudado através da análise de conteúdo. A descrição analítica começa já na préanálise e nesta etapa o material coletado é submetido a um estudo orientado pelas hipóteses e referenciais teóricos, onde as respostas dos agentes analisados foram submetidas a um estudo aprofundado.
A fase de interpretação referencial, apoiada nos materiais de informação, que se iniciou já na etapa da pré-análise, alcança agora sua maior intensidade. A reflexão e a intuição, com embasamento nos materiais coletados, estabelecem relações, no caso da pesquisa, sobre as dificuldades da comercialização da energia elétrica cogerada.
A terceira fase do método de análise de conteúdo permitiu estabelecer, no presente trabalho, várias relações entre questões levantadas pelos agentes analisados e as dificuldades da comercialização da energia cogerada. A Figura 1, a seguir, ilustra a seqüência de todas as etapas desenvolvidas para a realização desta pesquisa.
3. Resultados e discussão
Os resultados são divididos em duas partes. Na primeira, descreve-se as características deste mercado, segundo informações fornecidas pelos agentes com relação à freqüência das transações, à incerteza, à estrutura de informações e à especificidade de ativos. Na segunda parte, avaliou-se os principais parâmetros dos contratos que geram custos de transação e/ou econômicos para os agentes.
3.1 Caracterização do mercado de energia elétrica cogerada
O potencial técnico de geração de eletricidade calculado para o setor sucroalcooleiro atinge 3.852 MW, mas a efetiva disponibilização de energia excedente pelas usinas de cana-de-açúcar encontra-se, em 2001, ainda em patamares muito inferiores. Até setembro de 2001, 132 MW foram disponibilizados por 28 usinas do país, correspondendo a 11% do potencial técnico destas usinas e apenas 3,4% do potencial total técnico possível para o país. No estado de São Paulo a energia obtida por cogeração do setor sucroalcooleiro corresponde a menos de 1% do consumo.
O excedente de energia cogerada pelo setor sucroalcooleiro é comercializada em mercado spot2 e de curto prazo, embora algumas características deste mercado devessem levar, naturalmente, ao estabelecimento de contratos de longo prazo, como alta freqüência de transações, elevada incerteza, estrutura incompleta de informações e alta especificidade de ativos, conforme descrito a seguir.
3.1.1 Freqüência das transações
A freqüência está associada à periodicidade em que ocorrem as transações. Algumas ocorrem em um único ponto no tempo, enquanto outras são recorrentes. O custo de transação relativo a uma única transação não é suficientemente grande para que se monte uma estrutura de controle dessa transação, de tal modo que essas operações de compra e venda são normalmente realizadas no mercado spot.
Quando as transações são recorrentes é economicamente viável a construção de um mecanismo de controle destas transações. Um contrato de longo prazo, relativamente a um contrato de mercado spot, apresenta economias à medida que aumenta o número de transações. Os custos de redação do contrato, de coleta de informações relevantes, de monitoramento e de adaptação às mudanças de ambiente, diluem-se com o aumento da freqüência das transações. O mercado de energia cogerada pode ser considerado, atualmente, como um mercado de alta freqüência de transações, pois embora a comercialização ocorra apenas na safra (maio a novembro), o fornecimento é diário.
3.1.2 Incerteza
Conforme Knight, citado por Zylbersztajn (2000), a incerteza está associada a efeitos não-previsíveis, pois não tem uma função de probabilidade conhecida, a eles associada. Para Farina (2000) quanto maior a incerteza, maior o número de contingências futuras e portanto, mais complexa é a elaboração de um contrato.
O mercado de energia elétrica brasileiro tem passado por uma profunda reforma, com o governo concentrando-se em funções de elaboração de políticas energéticas e de regulamentação do setor. Com a reestruturação do setor, as regras de comercialização de energia estão em fase de elaboração, ajustamento e aprovação, que têm gerado incertezas entre os agentes comercializadores de energia, como:
a) a incerteza quanto ao mercado – refere-se à remuneração dos contratos de compra e venda de energia, pois os critérios de atualização dos valores de energia estão em fase de negociação. O Mercado Atacadista de Energia (MAE) oferecia melhor remuneração da energia que os contratos realizados com a distribuidora, mas foi extinto em janeiro de 2.002, pois não funcionava de forma adequada e tornou-se um ambiente de conflitos entre compradores e vendedores de energia. Desde 2001, o MAE estava sob intervenção da ANEEL e foi substituído pelo Mercado Brasileiro de Energia (MBE);
b) a incerteza quanto à legislação – existe um alto grau de incerteza entre os agentes comercializadores de energia quanto à realização dos contratos de compra e venda de energia, pois várias resoluções aprovadas pelo governo sobrepõem-se às resoluções existentes, gerando um ambiente de incerteza.
c) a incerteza quanto ao cumprimentos dos contratos – está associada à incerteza quanto ao volume de bagaço disponível para a
cogeração e comercialização da energia, pois, devido aos riscos inerentes ao próprio processo de produção agrícola (seca, teor de fibra, quebras na produção, etc), a usina pode ter dificuldades em cumprir as cláusulas contratuais.
As cláusulas contratuais de venda de energia elétrica determinam que as usinas devem entregar mensalmente (durante a safra), 95% do volume de energia contratada, caso contrário estarão sujeitas a multas. As usinas alegam dificuldades em assumirem estes riscos devido aos problemas inerentes ao processo da cogeração;
d) incerteza quanto ao financiamento – está associada à demora na concessão de empréstimos pelo BNDES. Sem recursos desta instituição torna-se difícil a construção de uma central termelétrica nas usinas, pois o volume de investimentos para a cogeração é elevado e o retorno é demorado. O investimento é considerado viável apenas com linhas de financiamento diferenciadas, com taxas de juros menores e maiores prazos de pagamentos.
3.1.3 Estrutura de informações
Observou-se que os agentes não dispõem de todas as informações que necessitam para tomarem decisões. Esta insuficiência informacional pode ser verificada no aspecto da legislação e valor de mercado da energia elétrica cogerada, cujas regras não estão consolidadas.
Esta estrutura de informações poderá levar os agentes comercializadores a tomarem decisões fora do considerado ótimo para as partes e indica que estes agentes podem precisar montar várias estruturas de controle, o que implicará em custos para ambas as partes.
3.1.4 Especificidade de ativos
A especificidade dos ativos aplica-se às usinas no processo de comercialização da cogeração, pois para gerarem o excedente comercializável de energia, as usinas realizaram investimentos específicos visando unicamente a venda de energia para a distribuidora.
A construção de uma subestação, a compra de novos geradores, novas caldeiras, turbinas de movimentação de moenda de múltiplos estágios e as adequações do sistema da usina para entrar em paralelismo com a distribuidora são considerados investimentos específicos, pois visam atender à atividade de comercialização de energia.
Se, por alguma razão, for cancelado ou suspenso o contrato de venda desta energia com a distribuidora, a usina terá que redirecionar estes ativos dentro da própria usina ou vendê-los, o que implicará em perdas substantivas dos valores efetuados para implementar os investimentos. Estima-se que os investimentos necessários para a geração de 1 MW seja de um milhão de dólares.
A escolha do mecanismo de mercado spot leva a pressupor a existência de elevados custos de transação, que fazem com que os autoprodutores considerem de menor risco o estabelecimento de contratos de curto prazo ou a comercialização de energia no mercado spot, conforme analisado a seguir.
3.2 Custos de transação presentes na comercialização de energia cogerada pelo setor sucroalcooleiro
As características dos contratos analisados a seguir são aquelas identificadas pelos agentes econômicos como as que mais têm dificultado o processo de comercialização da energia elétrica cogerada.
3.2.1 Garantias
As usinas consideram que existe um elevado grau de risco na comercialização no mercado de energia elétrica, tanto para os contratos de longo prazo, onde existe uma indefinição quanto à atualização dos valores das tarifas de energia elétrica, quanto para os contratos de curto prazo que tinham comercialização no MAE (Mercado Atacadista de Energia).
Para as usinas, as garantias são menores, pois ao firmar um contrato de venda de energia, estas estarão sujeitas a penalidades e multas, se não conseguirem entregar o volume contratado. Desta forma, existe um empenho por parte dos autoprodutores que estão comercializando, em cumprir as cláusulas contratuais.
Caso as usinas não conseguissem entregar o volume de energia contratada com a distribuidora, havia a opção de adquirir este volume no MAE e a usina repassava este valor para a distribuidora. Com a extinção do MAE e o não funcionamento pleno do Mercado Brasileiro de Energia, a questão das garantias ainda estão presentes.
Para a distribuidora, o risco está associado à suspensão ou cancelamento do contrato de venda de energia por parte das usinas, gerando falta de garantia de fornecimento. Neste caso, as usinas estarão sujeitas a multas contratuais. Estas multas correspondem ao valor atual da energia elétrica e funciona como uma indenização para a distribuidora. A distribuidora também está sujeita à multa, caso suspenda ou cancele o contrato de compra de energia com as usinas sucroalcooleiras. O valor da multa corresponde aproximadamente ao valor do contrato, (um trinta avos do faturamento mensal contratado, por dia de atraso), além da securitização. Tanto as usinas quanto a distribuidora não possuem seguro na realização das transações de compra e venda de energia. A existência ou não do custo com seguro dependerá da natureza do contrato negociado.
3.2.2 Custo de renegociação
Existe um grau de possibilidade de renegociação de contratos de venda de energia com a distribuidora. As usinas consideram que, dada a incerteza, que é inerente ao processo de cogeração, os contratos deveriam ter uma flexibilidade maior, como por exemplo, a redução do limite estabelecido contratualmente de 95 % da energia elétrica contratada que as usinas precisam entregar mensalmente, no período da safra.
Caso haja necessidade da distribuidora renegociar o volume de energia comprado das usinas, esta renegociação gera custos administrativos para a distribuidora. A distribuidora pode anualmente renegociar os preços da energia e os montantes contratados com as usinas.
Para as usinas, a renegociação do volume de energia contratada com a distribuidora é prevista em contrato, pois existem alguns mecanismos que possibilitam esta alteração, embora os riscos de fornecimento permaneçam.
Existem outras cláusulas que prevêem a renegociabilidade, como:
a) durante a vigência do contrato, se ocorrerem alterações na legislação específica sobre energia elétrica, vindo a influenciar as disposições contratuais, as partes negociarão as condições de ajuste. Esta renegociação do contrato de compra de energia das usinas, devido à mudanças na legislação, pode gerar custos administrativos e jurídicos para a distribuidora e usinas. As alterações na legislação geram custos jurídicos, sobretudo se afetarem o equilíbrio econômico-financeiro do contrato. A constante mudança do ambiente institucional tem levado os agentes a considerarem mais ou menos relevantes os custos de transação; e,
b) a energia assegurada por este contrato, que não puder ser suprida pelo cogerador ou não puder ser adquirida pela concessionária, por problemas técnicos, poderá, desde que haja condições técnicas e concordância de ambas as partes, ser compensada nos meses subseqüentes. Esta compensação deverá ocorrer dentro do mesmo ano civil, devendo também ser acordadas entre as partes as condições de faturamento.
Neste caso, se a energia assegurada por contrato não puder ser suprida, incidirá sobre as usinas uma multa ou indenização a favor da distribuidora. Esta compensação, mencionada no item (b), está sujeita a um limite técnico.
De acordo com as usinas, esta compensação deve gerar custos, administrativos e jurídicos, de renegociação e reelaboração de contratos e custos operacionais advindos de operações extras no sistema de geração, que são considerados relevantes por parte das usinas.
3.2.3 Custos de elaboração de contratos
Estes custos variam de acordo com o número de contratos de compra de energia realizados. Quanto maior a quantidade de energia elétrica oferecida por determinada fonte de geração, menor deverá ser o número de contratos fechados pela distribuidora. No caso das hidrelétricas e termelétricas a gás e a carvão, o potencial de geração de energia elétrica é elevado e poucos contratos de compra deverão ser suficientes para que a distribuidora consiga garantir o volume necessário para atender aos seus clientes.
Quanto ao aspecto de realização de contratos observa-se que:
a) devido ao processo de cogeração pelas usinas ser pulverizado, a distribuidora deverá fechar um grande número de contratos para obter o volume de energia necessário para ofertar aos seus consumidores. Este grande número de contratos implicará em custos para a distribuidora, relativos a viagens, aspectos legais, faturamento, acompanhamento, monitoramento;
b) os custo de consultoria são considerados custos internos para a distribuidora e não afetam a decisão de comercialização por parte das usinas. Para as usinas, a comercialização de energia elétrica é uma atividade recente e os custos de consultoria são considerados inevitáveis para a decisão de começar e/ou expandir a comercialização de energia elétrica. Na realização de contratos de compra de energia das usinas existem também os custos administrativos e os referentes ao honorários advocatícios; e,
c) a energia elétrica cogerada pelas usinas só é comercializada no período da safra, entre maio a novembro, ocasionando uma descontinuidade da geração da energia elétrica. Conseqüentemente, a distribuidora poderá ter que recorrer ao mercado para adquirir a energia e eventualmente arcar com preços mais elevados.
3.2.4 Procura e obtenção de informações
A reestruturação do setor elétrico brasileiro tem acarretado mudanças e instabilidade na legislação do mercado de energia elétrica. As normas têm sido alteradas com freqüência, dificultando o planejamento e a tomada de decisão do setor sucroalcooleiro, citando-se como exemplo a substituição do mercado atacadista de energia pelo mercado brasileiro de energia em janeiro de 2002. A instabilidade da legislação pode ser verificada também na edição de resoluções que se sobrepõem às existentes, gerando um alto grau de incerteza no setor.
Outro aspecto da legislação levantado pelos agentes comercializadores de energia elétrica diz respeito à sua inadequação, pois a legislação está direcionada para as plantas de cogeração a gás de grande porte e não tem contemplado as plantas de cogeração do setor sucroalcooleiro.
A constante sobreposição de normas e resoluções no que diz respeito à cogeração, tem levado usinas e distribuidoras à constante necessidade de procura e tratamento de informações para minimizarem os riscos da tomada de decisão de iniciar/expandir a comercialização de energia elétrica.
3.2.5 Os custos de monitoramento e acompanhamento dos contratos
Para a distribuidora, durante a vigência dos contratos, vários custos são relevantes, como deslocamento, estadias, consultorias, administração, medição, faturamento e monitoramento, e para as usinas, são relevantes os custos de consultorias e garantias.
3.2.6 Salvaguardas contratuais
As usinas e distribuidora de energia estabelecem contratualmente algumas salvaguardas para garantir seus interesses, como:
a) a garantia do suprimento sazonal de energia pelas usinas para a distribuidora – que estabelece uma tolerância de sete dias a partir da data estipulada por contrato, para que o fornecimento se regularize. A partir do oitavo dia a usina pagará, por dia de atraso, multa no valor de um trinta avos do faturamento mensal contratado.
Segundo a distribuidora, as usinas precisam desta tolerância, pois ao iniciarem seu processo de cogeração, não conseguem de imediato adequarem os seus balanços térmicos. As usinas podem ter problemas com seus equipamentos, como caldeiras, geradores e moendas.
Na opinião dos técnicos, a existência desta multa implica na necessidade de serem revistas as suas estratégias operacionais. Para as usinas, a multa não se caracteriza como um obstáculo, porém, deveria haver uma sensibilidade maior por parte da distribuidora em relação aos aspectos inerentes às usinas sucroalcooleiras e quanto ao entendimento de que cláusulas desta natureza não são aceitáveis ao setor;
b) caso ocorram mudanças na regulamentação que venham exigir alteração na classe de precisão dos equipamentos de medição, as despesas serão de responsabilidade do cogerador.
Conforme a distribuidora, as despesas mencionadas neste item devem ser de responsabilidade das usinas por serem as maiores interessadas, pois as perdas decorrentes do processo são descontadas para efeito de faturamento. Por exemplo, se a usina compromete-se a fornecer 10 MW e existe uma perda e a usina não consegue atingir o montante contratado, esta perda é contabilizada para desconto no faturamento; e,
c) caso haja suspensões programadas do suprimento de energia para a concessionária, as partes deverão ajustar-se com antecedência de 72 (setenta e duas) horas, o que poderá gerar eventuais custos.
3.2.7 Aspectos legais do descumprimento de cláusulas contratuais
O descumprimento de cláusulas contratuais gera custo para os agentes comercializadores.
A inadimplência de qualquer das partes gera cancelamento do contrato e pagamento de quantia compensatória equivalente a 50% do valor contratado como ressarcimento das perdas e lucros cessantes.
Como nas usinas analisadas não houve eventos desta natureza, estes não foram vistos como obstáculos à comercialização, mas existe receio quanto à eventualidade de arcar com estes custos.
4. Conclusões
O mercado de energia elétrica cogerada pelo setor sucroalcooleiro apresenta características que o levariam naturalmente a estabelecer contratos de longo prazo como: alta especificidade de ativos (construção de uma subestação de energia elétrica, transformação de turbina de movimentação de moenda de simples estágio para múltiplo estágio), necessidade de regularidade de suprimento, reduzida estrutura de informações e alta incerteza (devido a problemas de regulamentação do mercado) e alta freqüência de transações. O que se verifica é o contrário, as usinas vinham comercializando o excedente no mercado spot, o MAE (Mercado Atacadista de Energia), devido à existência de custos de transação que obstam o processo de contratação entre usinas e distribuidora.
Estes custos foram observados para as usinas que não comercializam energia e são principalmente os custos ex-ante, como: procura e obtenção de informações (principalmente no aspecto da legislação que constantemente é modificada); consultorias; e, elaboração de contratos.
Os custos ex-post foram observados em usinas que já comercializam energia cogerada, mas não exploram o potencial de geração de energia excedente. Estes custos foram: garantias contratuais; seguros; monitoramento e acompanhamento jurídico; renegociação e manutenção.
É viável supor também que à medida que se consolide a legislação pertinente à comercialização de energia cogerada, as parcerias entre os agentes sejam fortes suficiente para superar estes custos de transação, um vez que este mercado vem apresentando perspectivas de ganhos, ou seja, os benefícios advindos da comercialização superam os custos de transação ainda presentes neste mercado.
É de se supor também que o cenário energético do país venha influenciar o desenvolvimento desta fonte energética, pois a busca por fontes alternativas de energia é menos intensa quando a disponibilidade hídrica é maior, pois altera o preço relativo das diversas fontes, o que pode dificultar o desenvolvimento de mercados de energias alternativas.
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Recebido em junho de 2002 e aceito em janeiro de 2003
1 A cogeração refere-se a qualquer forma de produção simultânea de energia térmica e elétrica, para auto consumo ou venda a terceiros.
2 As usinas que vinham comercializando os excedentes de energia o faziam no MAE (Mercado Atacadista de Energia), que foi substituído pelo MBE (Mercado Brasileiro de Energia), em janeiro de 2002, ambos considerados mercados spot.