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Água doce: as necessidades futuras do mundo serão atendidas?

ÁGUA DOCE: AS NECESSIDADES FUTURAS DO

MUNDO SERÃO ATENDIDAS?

Entrevista com David Foster Hales

Entrevista com David Foster Hales, Vice-Administrador Assistente do Centro Global do Meio Ambiente [Global Center for Environment] na Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional (USAID) [U.S. Agency for International Development].
Hales diz que a água é um problema sério e um componente crítico do desenvolvimento sustentável em muitos casos, ela é o fator-limite mais crítico. Esta entrevista foi concedida a Jim Fuller.

Pergunta: O senhor poderia falar sobre a atenção que está sendo dada, pela USAID e por outras organizações, ao gerenciamento de bacias hidrográficas inteiras, ou bacias de rios, de uma forma integrada – uma estratégia conhecida como Gerenciamento Integrado de Recursos Hídricos [Integrated Water Resources Management]?

Hales: Nos Estados Unidos e em muitos outros países, o conceito de gerenciamento de bacias hidrográficas não é muito novo e nem dá margem a muitas controvérsias. Trata-se de um esforço para compreender o papel que a água desempenha como parte de um sistema natural, e, em seguida, encontrar maneiras de fazer com que a água desempenhe um papel mais eficaz. Em vez de retirar mais água do sistema, a idéia é aproveitar melhor a água que está no sistema. Como a água pode ser reutilizada muitas vezes, a disponibilidade da água para uso humano depende, principalmente, de como ela é usada e de como o sistema hídrico é gerenciado.

A água, para nós, é um componente sério e crítico do desenvolvimento sustentável – em muitas circunstâncias, ela é o fator-limite mais crítico. Portanto, ao analisarmos as questões de desenvolvimento econômico, capacidade de manutenção do meio ambiente, bio-diversidade, garantia da possibilidade de se obter alimento, e saúde e sobrevivência de crianças, acabamos voltando à clássica pergunta: qual é a quantidade de água que se encontra disponível? E o esforço que fazemos na condição de órgão governamental – e que muitos órgãos de gerenciamento de recursos naturais na maioria dos países estão fazendo – é no sentido de compreender os limites do que pode ser feito com a água que está disponível. Há limites de verdade. Prever esses limites e tentar encontrar maneiras de modificar o uso que fazermos da água, para podermos criar mais flexibilidade no sistema de água doce, é o que chamamos de Gerenciamento Integrado de Recursos Hídricos.

P: O senhor pode nos dar um exemplo de melhoria na eficiência do uso da água? Hales: De longe, a maior utilização da água, no mundo, é na irrigação. A agricultura é responsável por aproximadamente 70 por cento da utilização global da água, e a maior parte desse uso ocorre na irrigação. Provavelmente a metade dessa quantidade é desperdiçada antes de chegar à plantação à qual se destina, devido ao uso de sistemas de irrigação ineficientes e ultrapassados. Adotar tecnologias mais eficientes, como irrigação por gotejamento, revestimento dos canais de irrigação, ou aspersão por precisão, é uma forma de se criar mais água no sistema – porque você está desperdiçando menos. E você pode fazer isso sem sacrificar a produção de alimentos. De acordo com as projeções atuais, 3,5 a 4 bilhões de pessoas, no ano 2025, estarão vivendo em países que não podem produzir seus próprios alimentos. Se pudermos encontrar meios de gerenciar a água de maneira mais eficaz, para a indústria e para a agricultura, e para as necessidades básicas como água potável, podemos fazer com que o sistema seja mais sustentável, o que, certamente é do nosso interesse nacional.

P: Estamos sendo bem sucedidos na tarefa de encontrar meios de gerenciar a água com mais eficácia? Hales: Eu gostaria de poder dar uma resposta direta. Eu acho – por meio de um conjunto de parcerias com vários setores de atividade, com o setor privado e com organizações não-governamentais em outros países – que estamos conseguido demonstrar a importância da questão. Mas se você tivesse feito essa pergunta 10 anos atrás eu teria respondido da mesma forma. Dez anos atrás, eu pensava que estávamos sendo bem sucedidos. E mesmo assim, eu ainda vejo sistemas agrícolas ineficientes eu ainda vejo que grandes barragens estão sendo construídas – nenhuma das quais, na minha opinião, passaria, em hipótese alguma, em um teste positivo de uma relação custo-benefício. Elas, quase sempre, são subvencionadas. Ao mesmo tempo, não estamos investindo em sistemas de irrigação eficientes – que pudessem passar, sem exceção, em um teste de custo-benefício, em termos de empregos, benefícios econômicos, e maior garantia de produção de alimentos. Portanto, não estamos obtendo sucesso quando se trata de adequar os recursos ao problema. Acho que estamos conseguindo fazer com que as pessoas compreendam, potencialmente, a gravidade do problema, mas ainda não demos o próximo passo que faz a diferença entre acreditar em uma coisa e fazer alguma coisa a respeito dela.

P: O senhor pode dar alguns exemplos de como a USAID está trabalhando para melhorar a qualidade ou a quantidade dos recursos hídricos em outros países? Hales: Na África do Sul, onde o governo está realmente lutando para adotar uma abordagem estratégica em relação aos problemas com a água, estamos trabalhando muito para compreender melhor a hidrologia das bacias hidrográficas, para criar modelos, e para colocar essa informação à disposição dos sul-africanos. Assim eles poderão tomar decisões de gerenciamento baseadas na maneira pela qual a água é usada e na quantidade de água que existe na bacia hidrográfica. O Sistema Antecipado de Alerta de Fome [Famine Early Warning System], que está implantado em todo o sul do continente africano, é outro esforço que estamos fazendo para ajudar os fazendeiros a prever ou calcular quando provavelmente vai chover e o quanto, provavelmente, vai chover. Em outros países, como o Egito, estamos trabalhando em sistemas de medição e modelagem de água que ajudam a determinar os fluxos dos rios.

Estamos também trabalhando na questão da qualidade da água. As cidades e as indústrias envenenam a água. Isso é o que é poluição. Sempre que jogamos coisas na água, que não são boas para os seres humanos e outras criaturas vivas, estamos envenenando a água. Portanto, temos programas, no mundo inteiro, que estão ajudando as cidades a aprender a reduzir a quantidade de poluição e também a financiar sistemas de tratamento de água que purificam a água, similares aos tipos de sistemas que temos na América do Norte.

Também promovemos a preservação das florestas a montante da bacia hidrográfica, o que ajuda a regular a água e a mantê-la limpa. Se você destruir uma bacia hidrográfica nas suas partes superiores, tudo mudará, inclusive, a disponibilidade de peixes, até o ponto em que a água chega ao oceano. Também temos programas, em alguns países, que enfatizam o valor da proteção dos pântanos ao longo dos rios – porque os pântanos, além de serem uma incrível fonte de vida e riqueza, são também a maneira mais barata de purificar a água e de reter a água para ajudar a evitar inundações.

Portanto, quando se tira água de um rio, trabalhamos com os outros países para conseguir a maneira mais eficaz de usar a água em sistemas de irrigação, de usá-la para finalidades industriais, de usá-la para consumo humano, e de purificá-la quando ela é devolvida ao sistema. Literalmente em cada um desses estágios o governo dos Estados Unidos tem projetos no exterior, investindo aproximadamente 300 milhões de dólares por ano para melhorar a eficiência do manejo da água e para reduzir a poluição.

P: Na sua opinião, quais são os mais graves problemas enfrentados pelos recursos de água doce nos países em desenvolvimento, na atualidade? Hales: Eu diria que um dos maiores problemas gira em torno da construção de grandes represas e grandes projetos de engenharia que mudam o curso dos rios para fins de navegação, e, às vezes, para controle de inundações. Com as represas, você perde pesqueiros acima e abaixo da represa – pesqueiros que representam um meio de vida e fonte de alimento para muita gente. Atualmente um terço das espécies de peixes de água doce estão ameaçadas de extinção – trata-se de uma estatística assustadora. Na maioria dos casos, os países também perdem um meio de transporte e áreas enormes das melhores terras agricultáveis do mundo. Além disso, as represas deslocam cidades e pessoas, porque muitas pessoas optam por morar perto dos rios. As represas propriamente ditas proporcionam benefícios substanciais por um período de tempo muito limitado. Nenhuma represa é permanente. Em todas elas ocorre o assoreamento, em determinado momento. A Represa de Assuã, no Egito, produz energia elétrica. Ao mesmo tempo, em virtude do fato de que a represa muda o fluxo de água doce rio acima, tem ocorrido grande mortandade de peixes ao longo do Rio Nilo, além de uma redução de 80 por cento da população das sardinhas no Mar Mediterrâneo.

Outro problema em muitos países é a quantidade não controlada de despejos agrícolas, combinada com o uso excessivo de fertilizantes e pesticidas, e sedimentação devido a práticas inadequadas no manejo da terra, que causam erosão. E, sob o ponto de vista puramente humano, o maior problema é, provavelmente, a poluição industrial. Uma quantidade incrivelmente pequena de alguma coisa simples como a gasolina pode poluir uma quantidade incrivelmente grande de água. Em muitos casos, a conscientização, no que se refere aos tipos de venenos que vão parar na água, e ao que esses venenos fazem com os seres humanos não é tão grande, nos países em desenvolvimento, quanto na Europa e nos Estados Unidos.

P: De acordo com um relatório da Escola de Saúde Pública da Universidade Johns Hopkins [The Johns Hopkins University School of Public Health], 48 países serão afetados pela escassez de água, até o ano 2025. O senhor acha que talvez já seja tarde demais, para alguns países onde há pouca água e um rápido crescimento populacional, evitarem uma crise de fornecimento de água? Hales: Muitas pessoas tendem a achar que a água é grátis, e crescem pensando que ela é abundante. Essas duas coisas são mitos. A água não é gratuita e nem abundante. Se você olhar para o globo, do espaço exterior, ele parece ser um planeta de água. No entanto, embora 70 por cento do globo esteja coberto de água, só 3 por cento da água é doce. Vinte por cento dessa água doce está nos Grandes Lagos dos Estados Unidos. Somente 1 por cento da superfície de terra, no mundo inteiro, consiste de ecossistemas de água doce. E provavelmente a metade da população do mundo vive perto desses ecossistemas de água doce. Tente imaginar uma cidade que não seja construída à margem de um rio. É difícil imaginar um lugar em que nós não tenhamos mudado a natureza dos sistemas de água doce. E atualmente, nós usamos, de uma forma ou de outra — agricultura, indústria – mais da metade de toda a água doce disponível anualmente no mundo. Portanto, com a população mundial crescendo em aproximadamente 90 milhões de pessoas por ano, o aperto se aproxima. A água será uma séria limitação.

Certamente, até meados do próximo século, somente haverá três ou quatro países que não terão passado por uma grave crise devido à escassez de água. Os Estados Unidos serão um dos países afetados – um dos países que terão que lidar com um grande problema, devido à escassez de água. Ainda não é muito tarde, para tomarmos providências no sentido de usar os recursos hídricos de maneira eficaz e eficiente, e assim evitar os piores impactos dessa escassez. Ainda haverá escassez, mas escassez é um termo relativo. Dependendo dos sistemas de água doce envolvidos, pode ser que consigamos lidar com a escassez com relativamente poucas dificuldades. Ou talvez ocorra o tipo de escassez que força as pessoas a desocuparem a terra, como elas fizeram na área da seca e da poeira [dust bowl], no centro-sul dos Estados Unidos, na década de 1930.

P: Há alguma coisa específica que podemos fazer para evitar essas crises de escassez de água? Hales: Acho que podemos fazer muita coisa para evitar os piores aspectos da escassez de água. Mas será preciso fazer investimentos muito maiores do que os que estamos fazendo agora, e os líderes políticos precisarão ter muito mais coragem do que têm demonstrado ter nos últimos tempos.

A primeira coisa que precisamos fazer é educar o público e as empresas, para que o valor da água seja compreendido. Também precisamos educar as autoridades governamentais para que elas compreendam, de fato, as conseqüências de se permitir a construção de um complexo industrial sem controles apropriados de poluição, ou o custo real da construção de uma represa de grande porte. Também precisamos investir na capacidade de fazer várias coisas – administrar a água, compreender o que está acontecendo nos sistemas hídricos, e prever os aumentos e as diminuições como resultado das mudanças no clima – investir nessas coisas nos países em desenvolvimento e até mesmo nos Estados Unidos é, provavelmente, o mais importante investimento que poderíamos estar fazendo neste momento.

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Jim Fuller escreve sobre assuntos referentes ao meio ambiente e outras questões globais para a Agência de Divulgação dos Estados Unidos.

Fonte: http://usinfo.state.gov/journals/itgic/0399/ijgp/ij039904.htm

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