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A ONU lança a segunda Década Internacional da Água

Lúcia Chayb
Diretora da ECO•21

Março é um mês prolífico em celebrações de dias mundiais: o 14 é o Dia das Barragens o 21 é o Dia das Florestas o 22, da Água e, o 23, da Meteorologia. De alguma maneira, todos eles têm um denominador comum: os recursos hídricos. Destaca-se de forma significativa o Dia Mundial da Água, não somente pela importância deste recurso para a vida, mas pela simbologia que ele carrega.

Foi pensando em dedicar um dia do ano a esse símbolo, sempre presente no inconsciente coletivo da Humanidade, que a Assembléia-Geral da ONU decidiu, em 22 de Fevereiro de 1993, que em 22 de Março de cada ano seria celebrado o Dia Mundial da Água. Neste caso especifico, a ONU agiu de acordo com as recomendações da RIO’92 contidas no Capítulo 18 da Agenda 21, referente aos recursos hídricos.

Inspirado no mesmo contexto, o Congresso Nacional instituiu no Brasil, através da Lei Nº 10.670, de 14 de Maio de 2003, a celebração do Dia Nacional da Água, na mesma data.

Como a água tornou-se um fator mundial de desestabilização social e política, tanto pelas 22 mil mortes diárias de origem hídrica registradas, quanto pela dura verdade de que 1,1 bilhão de pessoas que não dispõem de água potável e, que 2,4 bilhões sofrem pela falta de saneamento nos países pobres, é que a ONU decidiu acolher as recomendações dos diversos encontros mundiais realizados no último lustro, dando início, neste 22 de Março de 2005, a uma nova Década Internacional da Água que culminará em 2015 , com incentivo especial nos programas relacionados à interface Água e Mulher.

Esta nova ação internacional recolhe a experiência acumulada anteriormente quando, em Novembro de 1980, no balneário argentino de Mar del Plata, a Organização das Nações Unidas proclamou a Década Internacional da Água Potável e do Saneamento (1981-1990), uma iniciativa que visava a compromissos nacional e internacional de cumprir um programa mundial de abastecimento de água saudável e de implementação de uma i nfra-estrutura de saneamento básico de baixo custo favorecendo os setores menos privilegiados do mundo em desenvolvimento.

O programa implementado internacionalmente, naquela ocasião, contou com uma ativa participação de governos e agências tanto no sentido técnico como financeiro, abrindo um precedente em iniciativas mundiais.

Dez anos depois, em Setembro de 1990, em Nova Délhi, Índia, as conclusões apresentadas demonstraram que as expectativas foram frustradas pelos resultados inferiores aos previstos. Nesses dez anos que separam o encontro de Mar del Plata do de Nova Délhi, os profissionais das áreas dos recursos hídricos aprimoraram os seus conhecimentos. Doenças endêmicas de veiculação hídrica foram minimizadas no quadro geral da saúde e ficou comprovado que, na Década, a cobertura dos serviços mundiais de abastecimento de água e de coleta de esgotos se manteve no mesmo nível que o crescimento demográfico, o que significou, em alguns países, uma grande conquista em face à falta geral de recursos. O número de pessoas que continuam sem esses serviços diminuiu substancialmente nas zonas rurais, mas aumentou nos grandes centros urbanos.

A segunda Década Internacional de Água, que adotou o lema “Água para a Vida”, está diretamente vinculada ao cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM). Esse fato deve estimular, na América Latina, o trabalho mais intenso para conseguir eqüidade na gestão da água. Está prevista para o próximo mês de Setembro uma reunião de cúpula da ONU que avaliará o progresso alcançado nos cinco anos de implementação dos ODM.

Nessa reunião se dará ênfase à questão dos recursos hídricos, já que os ODM estabeleceram como diretriz a redução pela metade, até o ano de 2015, do número de pessoas sem acesso a água potável nem saneamento eficaz. Ao mesmo tempo em que soluções tecnológicas criativas são necessárias, fora de assegurar que as pessoas mais pobres tenham acesso à água limpa e a melhores condições de saneamento, os maiores desafios são: ajudar as comunidades a encontrar formas de sustentabilidade para gerenciar e pagar pela água que consomem e a desenvolver formas aceitáveis de se introduzir instalações sanitárias seguras encorajando boas práticas de higiene. A lição da primeira Década de Água foi a de que tubulações, cimento e infra-estrutura não podem cumprir seu papel sem o engajamento das pessoas e comunidades. Isso continua sendo um desafio para a nova Década da Água.

O abastecimento de água durante os últimos 10 anos, na América Latina, tem se caracterizado por esquemas de privatização. As privatizações realizadas na Argentina, Bolívia e Uruguai, por exemplo, revelaram um saldo trágico no seu funcionamento ao constatar que a inclusão de novos usuários infelizmente não é suficiente para evitar exclusão de um significativo número de famílias de poucos recursos, muitas delas sustentadas por mulheres. A segunda Década Internacional da Água deverá revisar alguns desses dogmas neoliberais, como a eqüidade de Gênero em relação a serviços de água.

As prioridades das mulheres e homens em relação à água frequentemente são diferentes A água é vital, não apenas para se beber, cozinhar e para usos domésticos, mas para as hortas, lavouras e quase todas as atividades econômicas. Pesquisas e experiências da Aliança Gênero e Água demonstram que quando as mulheres e os homens estão envolvidos em tomadas de decisões conjuntas sobre como compartilhar, armazenar e proteger a água, esse recurso pode ser usado com eficiência e justiça.

Segundo dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômicos (OCDE) a ajuda pública internacional para a água diminuiu de 2.7 bilhões em 1997 para 1.4 bilhões em 2002, tendo se estabilizado até hoje nesse patamar. Esses valores estão muito longe de ser adequados para as necessidades atuais.

Os anos 90 ficaram marcados pelo credo do Fundo Monetário Internacional, então liderado por Michael Camdessus, de estabelecer parcerias “público-privadas” cujo fracasso, na América Latina, foi absolutamente evidente. As parcerias “público-privadas” não são solução para implementar a infra-estrutura indispensável nos países pobres, o custo é muito alto e a gestão deve ser pública em associação com as comunidades envolvidas.

A proposta mais inovadora sobre o financiamento internacional foi lançada pela organização não-governamental ATTAC ao propor o estabelecimento de uma taxa mundial capaz de garantir o fornecimento de água e a infra-estrutura de saneamento básico.

Um pequeno passo nessa direção foi dado pela França em Janeiro deste ano, quando o Presidente Chirac assinou a Lei de Águas, mediante a qual, empresas e agências estatais de recursos hídricos francesas, deverão dedicar 1% dos seus lucros sobre a exploração da água, para a ajuda aos países em desenvolvimento.

Segundo o Programa Solidariedade da Água, que é responsável por uma das três Conferências de Água organizadas para este ano pela UNESCO, se todas as instituições francesas de água adotam o que já se denomina “1% Água”, este fundo poderá financiar 120 milhões de Euros anuais em projetos no Terceiro Mundo. Chirac denominou “um pequeno passo”, mas se todos os países ricos decidem fazer o mesmo, certamente será um grande passo para que a meta “água para todos” dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio seja cumprida até 2015.

A celebração do Dia Mundial da Água é, também, motivo de ternura. Por isso, celebrando a data, é oportuno se extasiar com as palavras do poema “O Sono das Águas”, de autoria de um dos maiores escritores brasileiros, o mineiro João Guimarães Rosa.

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O Sono das Águas

Há uma hora certa,

no meio da noite, uma hora morta,

em que a água dorme. Todas as águas dormem:

no rio, na lagoa,

no açude, no brejão, nos olhos d’água,

nos grotões fundos

E quem ficar acordado,

na barranca, a noite inteira,

há de ouvir a cachoeira

parar a queda e o choro,

que a água foi dormir…

Águas claras, barrentas, sonolentas,

todas vão cochilar.

Dormem gotas, caudais, seivas das plantas,

fios brancos, torrentes.

O orvalho sonha

nas placas da folhagem

e adormece.

Até a água fervida,

nos copos de cabeceira dos agonizantes…

Mas nem todas dormem, nessa hora

de torpor líquido e inocente.

Muitos hão de estar vigiando,

e chorando, a noite toda,

porque a água dos olhos

nunca tem sono…

Fonte: http://www.eco21.com.br

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