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O uso do filtro anaeróbio para tratamento de esgoto sanitário

O uso do filtro anaeróbio para tratamento de esgoto sanitário

Com o uso do filtro é possível ter uma estação de tratamento de esgoto totalmente anaeróbia, com eficiência e custos baixíssimos

por Cícero Onofre de Andrade Neto

O filtro anaeróbio consiste, inicialmente, de um tanque contendo material de enchimento, que forma um leito fixo, alimentado com esgoto ou efluente de outra unidade de tratamento. Na superfície do material de enchimento ocorre a fixação e o desenvolvimento de microrganismos, que também se agrupam, na forma de flocos ou grânulos, nos interstícios deste material. O fluxo através do meio filtrante, e do lodo ativo, é que confere alta eficiência aos filtros anaeróbios.

Na verdade, o meio filtrante nos filtros anaeróbios, aplicados ao tratamento de esgotos, é o próprio lodo que adere ao meio suporte e que se acumula nos interstícios, mas é de fundamental importância que se busque e desenvolva alternativas de materiais para enchimento de filtros anaeróbios, para torná-los cada vez mais vantajosos como solução de alta relação benefício/custo para tratamento de esgotos no Brasil.

As principais finalidades do material de enchimento são: facilitar a agregação de microrganismos dificultar a perda de sólidos biológicos e propiciar o acúmulo de grande quantidade de lodo ativo e ajudar a distribuir uniformemente o fluxo no reator.

Podem ser utilizados vários materiais para enchimento de filtros anaeróbios. Evidentemente, deve-se preferir materiais inertes, resistentes, leves, que facilitem a distribuição do fluxo e dificultem a obstrução, tenham preço baixo e sejam de fácil aquisição.

O material mais utilizado para enchimento de filtros anaeróbios no Brasil é a pedra britada N° 4, que é um material muito pesado e relativamente caro, devido ao custo da classificação granulométrica. Ademais, a brita N° 4 tem um índice de vazios muito baixo, em torno de 50%, o que acarreta necessidade de maior volume do reator e menor capacidade de acumular lodo ativo por unidade de volume.

O Brasil é certamente o país que mais tem aplicado reatores anaeróbios para o tratamento de esgotos sanitários. A tecnologia anaeróbia encontra-se praticamente consolidada e, nos últimos anos, as análises de alternativas de tratamento geralmente incluem reatores anaeróbios.

Quando o corpo receptor apresenta boa capacidade de diluição, ou quando o efluente da estação de tratamento de esgotos (ETE) é disposto no solo, alguns órgãos estaduais de controle ambiental têm aceitado a DBO no efluente com até 60 mg/L, o que permite a implantação de ETEs mais simples e mais econômicas. Outros órgãos ambientais aceitam ETEs com eficiência na remoção de DBO e SST igual ou maior que 80%, como solução para tratamento dos esgotos, em alguns casos. Mas uma ETE totalmente anaeróbia geralmente só produz continuamente efluente com DBO menor que 60 mg/L se o último reator for um filtro biológico. Os decanto-digestores e os reatores de manta de lodo geralmente não ultrapassam, respectivamente, 70% e 75% de eficiência na remoção de DBO e SST, mas tanto um decanto-digesto, como um reator de manta de lodo, seguido de um filtro anaeróbio, pode propiciar eficiência maior que 80% na remoção de DBO e SST.

Filtros anaeróbios são utilizados para pós-tratamento de outras unidades anaeróbias porque, além de complementar o tratamento, sua capacidade de reter os sólidos e de recuperar-se de sobrecargas qualitativas e quantitativas, confere elevada segurança operacional ao sistema e maior estabilidade ao efluente, mantendo as vantagens do tratamento anaeróbio – produz pouco lodo, não consome energia, tem operação simples e baixo custo.

Um livro publicado pelo PROSAB – Programa Nacional de Pesquisas em Saneamento Básico – em 2001 (Pós-tratamento de efluentes de reatores anaeróbios Chernicharo et al, 544p.) com a participação de mais de vinte especialistas brasileiros, registra que enquanto o custo de implantação de uma ETE convencional com lodos ativados situa-se entre R$100,00 e R$180,00 por habitante e o de uma ETE com reator UASB (“Upflow Anaerobic Sludge Blanket”) seguido de sistema de lodos ativados situa-se entre R$70,00 e R$110,00 por habitante, uma ETE com reator UASB seguido de filtro anaeróbio tem uma faixa usual de custo de implantação entre R$40,00 e R$60,00 por habitante atendido. Acrescente-se que sistemas com decanto-digestor seguido de filtro anaeróbio geralmente têm custo de implantação entre R$20,00 e R$50,00 por habitante. Além disso, os sistemas totalmente anaeróbios têm custo de operação baixíssimo.

O mesmo livro cita que nas pesquisas realizadas no âmbito do PROSAB, com filtros anaeróbios utilizados para o pós-tratamento de efluentes de tanques sépticos e reatores UASB, tem-se observado que os filtros anaeróbios são capazes de produzir efluentes que atendam aos padrões de lançamento estabelecidos pelos órgãos ambientais, em termos de concentração de DBO. E em outro capítulo encontra-se que atualmente os filtros anaeróbios já vêm sendo utilizados, após reatores UASB, para garantir efluente final com DBO < 60 mg/L, inclusive para cidades com população superior a 50.000 habitantes, e mesmo em condições operacionais que resultam um tempo de detenção, no filtro, metade daquele recomendado pela NR 13.969/1997, da ABNT, o efluente final sempre apresenta DBO < 60 mg/L.

Com o uso do filtro anaeróbio, e somente assim, é possível ter uma estação de tratamento de esgoto totalmente anaeróbia, com custos baixíssimos de implantação e operação, porém eficiente o suficiente para atender padrões de órgãos ambientais para os efluentes.

O efluente de um filtro anaeróbio é geralmente bastante clarificado e tem relativamente baixa concentração de matéria orgânica, inclusive dissolvida, porém é rico em sais minerais. É muito bom para uso (reuso) em hidroponia ou para irrigação com fins produtivos. As baixas concentrações de sólidos suspensos também facilitam a desinfecção por processos físicos ou químicos.

Pesquisas recentes têm indicado que doses de cloro da ordem de 10 mg/L aplicadas em efluentes de filtros anaeróbios com tempo de contato superior a 25 minutos pode propiciar alta eficiência na remoção de coliformes fecais (termotolerantes ou E. coli). Ademais, as pesquisas mais recentes têm demonstrado que os filtros anaeróbios são muito eficientes na remoção de ovos de vermes.

Não se pretende que o filtro anaeróbio propicie um efluente final com a mesma qualidade do efluente de um bom reator aeróbio, mas sistemas completamente anaeróbio, compostos com filtro anaeróbio, podem remover, na prática, mais de 80% da matéria orgânica, e em muitos casos são suficientes para resolver os problemas causados pelos esgotos.

O filtro anaeróbio no Brasil

Embora venham sendo utilizados para tratamento de esgotos desde a década de 1950, os filtros anaeróbios tornaram-se populares no Brasil somente a partir de 1982, quando a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) revisou a Norma sobre construção e instalação de tanques sépticos e disposição dos efluentes finais, recomendando o uso de filtros anaeróbios para pós-tratamento dos efluentes de tanques sépticos.

Muitos dos filtros anaeróbios implantados com base nas diretrizes para projeto e construção de filtros anaeróbios da Norma da ABNT de 1982 tiveram problemas operacionais, mas a Norma teve o mérito de difundir a alternativa e provocar sua evolução tecnológica.

A atual Norma da ABNT sobre pós-tratamento de efluentes de tanques sépticos (NBR 13969, de 1997) ainda é bastante limitada no que se refere ao emprego de filtros anaeróbios para tratamento de esgotos, mas, mesmo assim, incentiva seu uso.

Evidentemente o filtro anaeróbio não serve apenas para pós-tratamento dos efluentes de pequenos tanques sépticos. Mais recentemente os filtros anaeróbios vêm sendo aplicados no Brasil para pós-tratamento de efluentes de grandes decanto-digestores, e de reatores anaeróbios de manta de lodo com vazões de até mais de 60 L/s.

Instituições acadêmicas como UNICAMP – Universidade de Campinas, UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais e UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte têm contribuído bastante para o avanço do conhecimento sobre o uso de filtros anaeróbios no tratamento de esgotos, no âmbito do PROSAB – Programa de Pesquisas em Saneamento Básico (FINEP/CNPq/CAIXA).

As pesquisas na UFRN, durante seis anos, mostraram, entre outras conclusões, que filtros anaeróbios podem ser utilizados com eficácia para tratamento de esgotos sanitários diluídos, ou efluentes de outros reatores anaeróbios, podendo produzir efluentes com DBO média menor que 30 mg/L e menos de 20 mg/L de sólidos suspensos, e que é possível obter alto rendi-mento (tempo de detenção de 5 horas e remoção de DQO maior que 85%) operando-os com carga orgânica elevada. (ANDRADE NETO, 2004)

O sistema experimental da UFRN é constituído de um decanto-digestor inovador (sistema RN) com duas câmaras em série e um pequeno filtro acoplado à última câmara, seguido de dois filtros anaeróbios de fluxo descendente afogado, que ladeiam o decanto-digestor. É alimentado com esgoto essencialmente doméstico. Os filtros funcionam em paralelo, ambos recebendo o efluente do decanto-digestor, através de tubos perfurados. Cada filtro tem 4,0 m de comprimento por 0,7 m de largura e profundidade útil média de 1,2m, construídos em alvenaria de tijolos revestida.

As Figuras 1 e 2 mostram, respectivamente, fotografias do sistema piloto da UFRN e de seu efluente.

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Em escala real, novos modelos de sistemas com filtros anaeróbios vêm sendo aplicados no Brasil, para pós-tratamento de efluentes de reatores anaeróbios de porte médio e grande. No Paraná, a Companhia de Saneamento – SANEPAR vem aplicando grandes filtros anaeróbios para pós-tratamento de reatores anaeróbios de manto de lodo.

O primeiro foi construído em 1996 e atualmente existem muitos destes reatores em operação, atendendo a populações que variam de 1.500 a 50.000 pessoas, com diâmetros entre 8 e 30m. Tem propiciado bons resultados com tempo de detenção hidráulica de projeto entre 7 e 13 horas e enchimento com brita Nº 4. Segundo informações do Engenheiro Décio Jurgensen, da SANEPAR, os sistemas compostos de RALF (reator anaeróbio de manta de lodo), seguido desses filtros anaeróbios propiciam efluentes com menos de 20 mg/L de sólidos suspensos e DBO menor que 60 mg/L.

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A Figura 3 mostra um dos sistemas composto por reator de manta de lodo seguido de filtro anaeróbio, da SANEPAR. Em Minas Gerais, já existem vários sistemas compostos com reator anaeróbio de manta de lodo seguido de filtro anaeróbio, construídos em ferrocimento, alguns em operação desde 1997. Esses sistemas atendem populações que variam da ordem de 2.000 habitantes até mais de 15.000 habitantes, e tiveram custos de construção variando desde R$9,00 até R$55,00 por habitante atendido.

O sistema de tratamento de esgotos de Ipatinga, implantado pela COPASA em Minas Gerais, é composto de reatores UASB e pós-tratamento em filtros anaeróbios, com capacidade prevista para atender uma po-pulação de 200 mil habitantes.

No Rio Grande do Norte, desde 1992 um sistema que associa decanto-digestor e filtros ana-eróbios (sistema RN) vem sendo aplicado e desenvolvido tecnologicamente, com algumas unidades de porte médio em operação. Sistemas semelhantes ao desenvolvido no RN foram projetados também para: Rio de Janeiro, Mato Grosso, Maranhão e Alagoas. O sistema é constituído de um grande tanque séptico de câmaras em série e dois filtros anaeróbios que o ladeiam (ANDRADE NETO, 1997).

No interior de São Paulo, a Companhia de Saneamento Básico do Estado – SABESP – tem empregado largamente decanto-digestor seguido de filtro ana-eróbio em comunidades com população inferior a 2000 habitantes. No 21º Congresso Brasileiro de Engenharia Sanitária e Ambiental, em 2001, Alceu C. Galvão Júnior, José E. Moreno e Carlos A. C. Magalhães, apresentaram um trabalho sobre a “Avaliação dos Sistemas de Tratamento por Decanto-digestores Seguidos de Filtros Anaeróbios, em Comu-nidades atendidas pela Unidade de Negócio do Médio Tietê – SABESP” no qual analisam os resultados operacionais de quatro desses sistemas, a partir de dados históricos coletados nas ETEs operadas pela SABESP no período de 1993 a 2000. Os sistemas apresentaram 83% na remoção de DBO e 81% na remoção da DQO, considerando-se uma média das eficiências médias. Os dois sistemas analisados com dados mais recentes (de 1997 a 2000), um com 100 e outro com 250 ligações de esgoto, apresentaram eficiên-cias médias de 87% e 81% na remoção da DBO, e, nos quatro, a mais baixa eficiência média foi 80% de remoção da DBO, em condições reais de operação.

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Para tratamento de esgotos sanitários em regiões de clima quente, o uso de sistemas totalmente anaeróbios, com-postos com filtro anaeróbio antecedido de decanto-digestor ou reator de manta de lodo, é perfeitamente viável, tanto do ponto de vista tecnológico como do econômico, e pode propiciar efluentes com concentrações médias de DBO abaixo de 60 mg/L e de sólidos suspensos abaixo de 20 mg/L, que facilita a desinfecção, com ótimo aspecto visual e sem problemas de maus odores. Portanto, estações de tratamento de esgotos total-mente anaeróbias, com o filtro anaeróbio assegurando eficiência satisfatória na remoção de matéria orgânica e sólidos suspensos, pode ser a solução viável para grande parte dos problemascausados por esgotos sanitários no Brasil, pelo menos como um passo importante na busca da preservação do meio e da proteção da saúde pública.

Cícero Onofre de Andrade Neto

Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Membro do Grupo Coordenador do PROSAB – Programa Nacional de Pesquisa em Saneamento Básico e do Comitê Científico do Programa de Pesquisas do Departamento de Engenharia de Saúde Pública da FUNASA.

Tel.: (84)3215-3775 – Ramal 23
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Edição nº 19
Revista Meio Filtrante
http://www.meiofiltrante.com.br/

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