O simples e cotidiano ato de acionar a descarga constitui-se numa afronta ao fluxo circular que norteia os processos naturais. Enquanto na natureza todo resíduo pode servir de alimento para outro organismo vivo, a sociedade civilizada age de maneira linear, entendendo os subprodutos das atividades humanas como resíduo a ser descartado.
Profissionais ocupados com o meio ambiente em todo mundo têm tentado imitar de forma saudável os processos cíclicos encontrados na natureza, na tentativa de minimizar os impactos negativos e preservar os recursos naturais. Na Universidade Federal da Bahia (UFBA), o engenheiro sanitarista Eduardo Cohim vem desenvolvendo uma pesquisa que utiliza luz ultravioleta (UV) para desinfecção de esgotos com o objetivo de reutilizar a água e os nutrientes. A pesquisa está sendo desenvolvida com recursos do Edital Temático de Saneamento e Habitação Popular, iniciativa realizada a partir da parceria entre Secretaria de Ciência e Tecnologia e Inovação, através da Fundação de Amparo à Pesquisa (Fapesb), e a Secretaria de Desenvolvimento Urbano da Bahia (Sedur).
Na unidade-piloto da Escola Politécnica da Universidade Federal da Bahia, o esgoto passa por três etapas de pré-tratamento, nas quais são retiradas as partículas sólidas. Na primeira etapa, o esgoto é lançado num reator anaeróbio de fluxo ascendente – conhecido como UASB -, na sequência passa por um filtro anaeróbio e por outro de areia. Após esses procedimentos, o esgoto é submetido à radiação de luz ultravioleta com ondas de 264 nanômetros de comprimento. “Temos feito testes com diversas doses de radiação até conseguirmos chegar a mais eficiente para a inativação de microorganismos transmissores de doenças, exemplos de bactérias, vírus, protozoários e helmintos”, afirma Eduardo Cohim.
Custos podem ser reduzidos em 70%
Pesquisas que utilizam a tecnologia de UV na desinfecção de esgotos pré-tratados não são uma novidade no Brasil. Há cerca de 1 anos, cientistas do país têm estudado os efeitos positivos das lâmpadas germicidas, especialmente a partir de 2001, quando trabalhos na área passaram a ser desenvolvidos de maneira sistemática. O diferencial de pesquisa desenvolvida por Cohim está no potencial para a criação de um foto-reator 100% nacional. “Os equipamentos hoje disponíveis no mercado são importados, o que torna os custos bem maiores”, explica.
Materiais baratos, como tubos de alumínio e PVC, e lâmpadas que tem luz ultravioleta fabricadas no Brasil deverão compor o equipamento que está sendo desenvolvido na UFBA. Por conta desses fatores, o foto-reator baiano deve ter um custo até 70% menor que os importados. Além disso, por ser menos automatizado, não exigirá a contratação de técnicos especializados de fora do país. “O desempenho na redução dos microorganismos será o mesmo que o dos equipamentos importados”, garante o pesquisador.
O potencial do esgoto
Enquanto a maioria das pessoas tende a achar que o esgoto é apenas uma ameaça à saúde, há muito tempo ambientalistas mundo afora enxergam os seus potenciais diversos. A matéria orgânica presente no esgoto pode ser reaproveitada tanto para a geração de energia – através do metano oriundo da sua decomposição na ausência de oxigênio -, quanto utilizada como condicionador do solo, melhorando a sua estrutura física.
Os nutrientes presentes no esgoto também podem ser devolvidos para a terra, através da irrigação, poupando água potável e protegendo os recursos naturais. “O que precisa mudar na nossa mentalidade é essa idéia de que os recursos naturais são inesgotáveis. O homem precisa devolver ao solo o que dele vem tirando através da agricultura. Alguns estudos já falam da possibilidade de, entre 60 e 120 anos, ficarmos desprovidos de fósforo, um dos principais elementos necessários para o cultivo de vegetais”, lembra Eduardo Cohim.
Entre os componentes do esgoto, os microorganismos patogênicos, ou seja, causadores de doenças, podem ser considerados vilões, havendo a necessidade de ter suas funções paralisadas. A radiação de UV atinge as moléculas do DNA desses microorganismos de forma a interromper o seu processo de reprodução e ocasionar a sua inativação.
Existem outras duas maneiras comumente utilizadas para impedir a proliferação de microorganismos em esgotos. A introdução do cloro é uma das mais conhecidas. No entanto, essa técnica, embora eficiente, causa problemas ambientais pela toxicidade do cloro residual e pela formação de tri-halometano, substância cancerígena. Outra alternativa é a utilização de ozônio, que, por sua vez, consome muito mais energia que o foto-reator de UV, tornando-se economicamente menos viável.
“Sociedade fecofóbica”
Diversas estatísticas dão conta de que 30% da água consumida numa casa correspondem aos vasos sanitários, enquanto 10% são utilizados para lavar automóveis, regar jardins e lavar pátios. “Com a utilização dos foto-reator é possível reduzir em pelo menos 40% o consumo de água numa casa, fazendo uso da água tratada com ultravioleta para essas atividades consideradas menos nobres”, explica Eduardo Cohim.
Além do desenvolvimento de equipamentos mais baratos e de fácil manuseio e manutenção, e da adequação das empresas de abastecimento e saneamento públicos, o pesquisador não descarta a postura da sociedade brasileira como um fator de entrave para a efetiva utilização de água de esgoto tratada. “Vivemos numa sociedade ‘fecofóbica'”, ironiza,” que tem dificuldade de lidar com as suas próprias excretas”.
Matéria publicada na Revista Ciência em Rede
Fonte: http://www.sibrapeuvc.com.br/