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O efeito Amazônia: como o desmatamento está deixando São Paulo sem água

Há dois anos, uma seca desencadeou violência, saques e ‘estados de calamidade’ oficiais pela metrópole, com o Exército de prontidão para intervir. Agora, novos sinais sugerem que a história poderia se repetir – e apontam para um surpreendente responsável.

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‘Bem-vindo ao Deserto da Cantareira’ … Em janeiro de 2015, o volume de água no Sistema Cantareira, o principal reservatório da cidade, estava em 5% – o que mal daria para um mês de abastecimento. Foto: Sebastiao Moreira/EPA

São Paulo pode ter mais problemas de escassez de água se os fazendeiros continuarem a derrubar a floresta amazônica, avisou o administrador da água que recentemente salvou a maior cidade das Américas da beira da catástrofe da seca.

Jerson Kelman, presidente da companhia de água Sabesp, contou ao Guardian Cities que sentiu o dever de falar abertamente porque ele era um cidadão além de ser presidente da empresa que viu em primeira mão o quão perto essa metrópole de 21 milhões de pesssoas chegou do colapso. 

“Nós não podemos transformar a Amazônia em pasto,” disse ele em uma entrevista. “A Amazônia cria um movimento de água. Se a floresta for derrubada, estaremos em uma encrenca.”

Por ser uma das maiores autoridades em abastecimento de água e energia hidrelétrica no Brasil, os comentários de Kelman devem reacender um debate – evitado pela bancada ruralista do país – sobre a ligação entre a maior floresta do mundo, as mudanças climáticas e a possível recorrência da seca de 2014-2015.

O prefeito de São Paulo, João Doria, parece ter sido persuadido. Em uma entrevista com o Guardian ele disse reconhecer a importância da ligação entre a Amazônia e o fornecimento de água da cidade.

“Nós precisamos preservar a Amazônia para preservar o ciclo de chuvas nas regiões Centro e Sudeste do Brasil,” ele disse, também enfatizando a necessidade de reduzir a demanda e promover a reciclagem. Seu governo, porém, tem feito pouco para transformar essas palavras em ação.

Aquele não foi um período de seca comum. Em um período de 12 meses o volume de chuvas foi metade do que tivemos no ano da pior seca registrada anteriormente no início do século 20. Em janeiro de 2015, o volume de água do Cantareira, o principal sistema de represas de São Paulo, baixou a 5% – o que mal dava para um mês de abastecimento.

Dezenas de municípios no entorno de São Paulo declararam “estado de calamidade”, que resultaram em intervenção militar e fundos emergenciais do governo federal.

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Manifestante protesta contra a falta de água em frente ao batalhão de choque da polícia militar na avenida Paulista em São Paulo em fevereiro de 2015. Foto: Nelson Almeida/AFP/Getty Images

Em Itu – a cidade mais afetada –

Aconteceram brigas, roubos e saques de caminhões-pipa. As torneiras em muitas comunidades só liberavam água durante algumas horas a cada quatro dias. Em alguns condomínios, moradores pegavam baldes de água nas piscinas para usar na descarga, discutiam sobre a escassez no fornecimento para uso comum e denunciavam vizinhos que lavavam seus carros.

A distopia chegou até o principal bairro comercial da cidade, no entorno da Avenida Paulista, onde o luxuosorestaurante Bassano servia os clientes com pratos e talheres de plástico porque o fornecimento de água era insuficiente para as máquinas lava-louças e o Starbucks só servia garrafas de cerveja e latas de Coca-cola porque não havia água suficiente para o café.

Com eleições acontecendo no ano seguinte, os governos da cidade e estado de São Paulo se recusaram a declarar situação de emergência mas o Guardian Cities ouviu de muitas fontes que as autoridades estavam mais preocupadas do que admitiram publicamente na época.

Sabesp

Hoje existe um ambiente de tranquilidade no centro de controle da Sabesp (a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo), empresa de água em que o governo detém 50.1% das ações. Dados em tempo-real exibidos em telas gigantes e uma dúzia de monitores individuais mostram que os reservatórios estão quase de volta aos níveis antes da crise. Estações de bombeamento automatizado – onde a pressão da água para 220 bairros pode ser ajustada com o clique de um mouse – estão funcionando normalmente.

Ao pedirmos que recordasse o quão diferente era a sensação no auge da crise, Silvana Franco, uma funcionária antiga do centro de controle, dá um suspiro barulhento e balança a cabeça.

“Nós estávamos desesperados. O nível do reservatório não parava de baixar. Nós sabíamos que quando as pessoas não tem água, elas ficam loucas. Tínhamos visto protestos em cidades menores onde as pessoas estavam invadindo imóveis para roubar água. Nós imaginamos como seria aqui com 21 milhões de pessoas. Pensamos nos hospitais incapazes de tratar pacientes e as crianças tendo que perder aula e ficar em casa. Seria o caos.”

Ela contou que seu chefe ficou tão preocupado que seu cabelo ficou branco.

No ponto mais crítico os militares vieram para checar se nossos portões e perímetro estavam seguros. Isso jamais havia acontecido antes e aumentou o medo dos funcionários de estarem à beira de um apocalipse.

“Havia uns cinco deles de uniforme e com armas,” ela recorda. “Eles queriam ver o quão resistente era esse centro porque nós controlamos a água.”

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Morador caminha com seu cachorro pela parte seca da represa de Paraibuna, parte do sistema de água cantareira. Foto: Roosevelt Cassio/Reuters

Existem limites para o que Kelman seja capaz ou esteja disposto a fazer. A Sabesp, diz ele, plantou 45.000 hectares de árvores em seu terreno e percebeu os benefícios em termos de regulação do clima. Mas ela não tem autoridade sobre a conservação da Amazônia e – por ser um negócio que deve gerar lucros – não há incentivo para reduzir a demanda (e as vendas).

A Sabesp já derrubou a medida que foi mais eficaz durante a crise – uma recompensa financeira para as residências que diminuíssem o uso de água. Oitenta por cento dos consumidores receberam esses incentivos, o que amenizou a pressão no sistema de abastecimento mais do que outras medidas emergenciais como recolher água do “volume morto” do reservatório e redes interligadas. Os benefícios dessas mudanças de comportamento ainda são evidentes hoje com o consumo se mantendo mais de 10% abaixo dos níveis de antes da crise mesmo com as torneiras liberando água livremente.

Do lado corporativo dos negócios, no entanto, a Sabesp oferece desconto às empresas que são grandes consumidoras. Ressaltando o impacto negativo das pressões de mercado, essa medida controversa foi introduzida para que grandes clientes desistissem de escavar os próprios poços ou procurassem novos fornecedores.

A longo prazo, a Sabesp reforçou a resistência à seca focando em obras caras de engenharia para fornecimento que expandem a marca da água na cidade.

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Um engenheiro trabalha em tubo gigante no reservatório Jaguari, que vai criar uma interligação de aproximadamente 19 quilômetros até o Sistema Cantareira. Foto: Flavio Forner

Na represa Jaguari – a cerca de duas horas de carro do centro da cidade –

Engenheiros estão dando os toques finais em uma série de bombas gigantes, adutoras e túneis que vão criar uma ligação de 18 quilômetros com o Sistema Cantareira.

Esse é um dos três mega-projetos que juntos vão custar praticamente 3 bilhões de reais – uma enorme fatia do orçamento da Sabesp – mas devem garantir capacidade de estoque extra suficiente para aguentar uma seca tão severa quanto a que ocorreu dois anos atrás.

“Eu sei que em três ou quatro anos alguns políticos vão reclamar que nós estamos desperdiçando dinheiro em infraestrutura que se encontra ociosa. As pessoas esquecem facilmente,” disse Kelman. “Mas agora que a natureza nos mostrou o que ela pode fazer, o mínimo que a população pode esperar é que os administradores se preparem para eventos inesperados… Se algo pior acontecer, aí nós teremos um problema.”

Já recebemos críticas. Grupos de empresários querem mais prioridade na lucratividade para que uma fatia maior do capital da Sabesp possa ser privatizado. Grupos ambientalistas estão insatisfeitos pois mais gastos em infraestrutura significam menos investimentos em tratamento de esgoto e reflorestamento em áreas de mananciais que atualmente são ocupados por favelas. Se esses problemas pudessem ser resolvidos, a cidade poderia mais uma vez explorar suas duas maiores represas centrais – Billings e Guarapiranga – e o Rio Tietê, todos atualmente contaminados demais para uso.

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Casas construídas irregularmente na beira da represa Billings em São Paulo. Atualmente ela está contaminada demais para uso. Foto: Paulo Whitaker/Reuters

“É possível melhorar investindo em florestas e tratamento de água, mas isso não está acontecendo,” disse Malu Ribeiro do movimento de conservação SOS Mara Atlântica. “Então é óbvio que [esse tipo de seca] vai acontecer de novo. A cidade ainda está crescendo. Há mais desmatamento. Mais pessoas estão morando perto de mananciais. Nós aprendemos pouco ou nada com a crise.”

Alexis Morgan, da WWF, concordou que a resposta do governo foi fragmentado. “Uma boa crise foi desperdiçada em termos de resposta a nível público,” disse ele. “Empresas aprenderam que soluções focadas na demanda são mais baratas e fáceis. Esse deveria ser o ponto de partida. Mas engenheiros invariavelmente querem colocar mais fornecimento no sistema. Eles falham em reconhecer que os recursos verdes [florestas] melhoram com o tempo ao contrário dos recursos cinzas [represas de concreto]. O governo deveria estar olhando para ambos.

O desafio de construir uma resiliência climática é cada vez mais importante e não apenas no Brasil. De acordo com um novo estudo da WWF, São Paulo está em oitavo lugar na lista das megacidades mais vulneráveis à seca no mundo. A número 1 é a Cidade do Cabo, que atualmente está em meio à sua pior escassez de água e enfrentando muitas das decisões difíceis que Kelman e outros enfrentaram dois anos atrás.

Em São Paulo o colapso total foi evitado. Os planos de contingência mais extremos não foram necessários. Mas chegou perto. Se não fosse por um pouco de chuva e algumas medidas drásticas, a Sabesp poderia ter tido de enfrentar a fúria de seus 21 milhões de consumidores sedentos.

Para Kelman, são quatro as lições aprendidas: boa engenharia de fornecimento, gerenciamento de demanda sensata através de mecanismos de preços, transparência para que o público esteja do lado do governo economizando água, e aceitar que dados antigos não eram mais confiáveis como resultado das mudanças climáticas e mudança do uso da terra. “A experiência de São Paulo nos mostrou que nós não podemos confiar em suposições passadas. Nós temos que esperar o melhor e nos preparar para o pior.”

Ele também está olhando para suas causas. As mudanças climáticas globais e o desmatamento regional estão no topo da lista.

Kelman diz que a perda da Amazônia está aumentando os riscos climáticos para São Paulo porque a floresta ajuda a circular a água dos trópicos para baixo em um processo conhecido como evapotranspiração. “Agora eu entro em um campo minado,” diz ele, referindo-se à sensibilidade do tema.

Não existem modelos estatísticos para isso ainda, e a ciência permanece controversa, por causa das implicações para a poderosa bancada ruralista, que derruba árvores por fazendas, e a indústria hidrelétrica, que alaga florestas por represas.

 Seu mais conhecido expoente é Antonio Nobre, um climatologista do Instituto de Pesquisas Espaciais – INPE – que chama a Amazônia de uma “bomba biótica” que fornece energia para “rios voadores” para fluir por milhares de quilômetros até São Paulo. Sem esse dínamo de reforço, ele avisa, o sudoeste do Brasil provavelmente seria um deserto como muitas outras regiões com a mesma latitude.

Receios de distúrbios por causa de água em um país que ostenta 12% dos rios e lagos do mundo antes pareceria improvável mas eles são reais e uma preocupação crescente devido ao aumento no consumo e as mudanças no clima a nível global e regional. Kelman acredita que existem lições aqui para o governo brasileiro e cidades em todo mundo.

Entre as mais importantes é que registros antigos não são mais guias confiáveis para riscos futuros. Isso foi um choque para Kelman, que escreveu sua tese de doutorado em análise de dados históricos – tecnicamente conhecido como método estatístico de séries estacionárias – que é usado para definir os parâmetros da resiliência climática da água e sistemas de fornecimento de energia hidrelétrica.

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Moradora do bairro Brasilândia em São Paulo recolhe água da chuva para usar no banheiro e lavar o chão de sua casa. Foto: Nacho Doce/Reuters

Baseado nessas estatísticas antigas, ele calculou que a chance de uma seca como a de 2014-2015 era de 0.4%, ou uma vez a cada 250 anos. Ela foi duas vezes mais severa que as piores previsões do administrador, forçando-o a um período de auto-reflexão filosófica.

Nós tínhamos dados excelentes – 83 anos de dados – e estávamos preparados para o pior já registrado. “Mas a natureza nos mostrou que nós não podemos confiar em estatísticas estacionárias em série como fizemos no passado. Nós temos que nos preparar para o desconhecido”.

Outro oficial da Sabesp que pediu para não ser identificado descreveu a situação como “completamente fora do controle.” Um conselheiro experiente do governo, que também pediu anonimato, concordou. “Os riscos que discutimos em privado foram muito maiores do que os discutidos em público na época.”

Devido ao receio de invasão da população, as autoridades estabeleceram um centro de controle alternativo em um local diferente. Eles também instalaram tubulações especiais para contornar o principal sistema de distribuição e garantir que a água pudesse ser fornecida diretamente para os 500 prédios mais importantes na cidade, incluindo grandes hospitais, centros de hemodiálise e presídios, mesmo que o restante da cidade tivesse secado. O resto das pessoas, imaginaram eles, teriam que levar baldes e chaleiras para as praças da cidade onde teriam que fazer fila para se abastecerem nos carros pipa. “Teria sido como uma África ao sul do Sahara,” disse um oficial.

A lista prioritária foi mantida em segredo. Kelman, co-fundador da Associação Brasileira de Recursos Hídricos, que foi apontado como um combatente da seca em 2015, disse que a transparência em geral era desejável, mas nesse caso as autoridades não tiveram escolha.

Era como um tempo de guerra. Nós não podíamos falar para ninguém quais prédios estavam na lista porque o fornecimento poderia ter sido interrompido,” disse Kelman. “Se algo desse errado, não sabíamos o que poderia acontecer. Poderia ter havido quebra-quebra nas ruas.”

A teoria foi atacada. Benedito Braga, chefe da secretaria de saneamento e recursos hídricos do governo de São Paulo, repudiou qualquer relação entre a seca e a Amazônia. “Se o desmatamento estivesse causando esse impacto então como se explica os alagamentos que vimos em 2016,” ele disse ao The Guardian. “Eu diria que ambos são sinais de variação. 2014-2015 foi um caso à parte, não um sinal de uma tendência.

A hipótese é mais aceita entre meteorologistas que acreditam que a Amazônia funciona como uma conexão entre dois corredores de umidade – a Zona de Convergência Intertropical pelo equador e a Zona de Convergência do Atlântico Sul, que vai até o sudeste do Brasil. A última é crucial para o fornecimento de água e a indústria hidrelétrica porque traz chuvas consistentes por muitos dias, – que enchem os reservatórios com muito mais eficiência do que garoas ocasionais.

“Antes de 2013, tínhamos três ou quatro chuvas de convergência em São Paulo todos os anos. Mas em 2015, só houve uma. No ano passado só teve uma e neste ano até agora tivemos uma só. Isso significa que nós ainda estamos usando mais água do que está sendo reposta naturalmente,” disse Camila Ramos do Climatempo, uma agência privada de previsão do tempo. “Se a Amazônia desaparecer, seria razoável presumir que os volumes de chuva diminuiriam em São Paulo assim como o fornecimento de umidade em direção ao Sudeste poderia cair.”

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