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A palavra de João Paulo II sobre o meio ambiente

Dom Renato Raffaele Martino
Observador Permanente da Santa Sé na ONU

No final do século passado, a Humanidade contemplou as suas realizações, conquistadas ao longo dos derradeiros cem anos, e sentiu-se justificadamente orgulhosa de tudo isso. Ela desvelou os segredos do átomo e dividiu o seu núcleo a fim de que a energia do mesmo pudesse libertar-se descobriu que o Universo está se dilatando, que a estrutura da vida se fundamenta na dúplice espiral do DNA, maravilhosamente simples e o Homem chegou à Lua, não para conquistar, mas para aprender. Somos convidados a um momento de reflexão sobre o dom divino da inteligência humana.

Contudo, em seguida observou-se que a mesma Humanidade, que compreendeu as forças da natureza, se esqueceu de uma delas: a própria Humanidade tornou-se uma força da natureza, tão poderosa, a ponto de ser potencialmente capaz de transformar o nosso mundo para os séculos futuros.

Esta força deu origem ao “Efeito Estufa” e agora a comunidade científica em geral concorda amplamente sobre as implicações deste fenômeno fomentado pelo próprio Homem. Com efeito, “existe uma nova e mais vigorosa evidência de que a maior parte do aquecimento observado ao longo dos últimos 50 anos é atribuído às atividades humanas e de que as mudanças que virão, influirão sobre todos os aspectos do meio ambiente e sobre o bem-estar da sociedade, de maneira especial no que diz respeito aos pobres, às pessoas mais vulneráveis e às gerações ainda nascituras”, segundo os relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas.

A história da Humanidade foi constelada por vários tipos de revolução. A primeira revolução teve lugar há milhares de anos, no final da última Era Glacial, quando a Humanidade recorreu à sua “inteligência” para lançar sementes à terra e encontrou uma fonte de alimentação mais estável e mais previsível. A segunda transformação teve início há cerca de 300 anos, com a Revolução Industrial, quando se recorreu à “inteligência” para obter energia, não já dos animais ou do vento, mas do carvão e do vapor. Essa proeza da engenharia desencadeou a formação de gases de estufa na atmosfera. Mais de 100 anos atrás, o químico e físico sueco Augusto Arrhenius chamou a atenção para a duplicação do gás de bióxido de carbono, que pode ter conseqüências impressionantes para a Humanidade, e hoje em dia este fenômeno é reconhecido em todas as suas dimensões.

A natureza teve necessidade de cerca de um milhão de anos para produzir a quantidade de combustível fossilizado que a Humanidade consome durante o espaço de apenas um ano. As atividades de 25% da população do mundo são responsáveis por quase 75% da emissão global dos gases de estufa. O “aquecimento global”, como é popularmente denominado, verifica-se de maneira gradual.

Ele não conhece limites, nacionalidades nem divisões culturais. É um grande nivelador, com conseqüências desagradáveis. As respostas a este fenômeno deveriam refletir a nossa interdependência e a nossa comum responsabilidade pelo presente e pelo futuro do nosso Planeta, considerando o importante papel que a virtude da prudência poderia desempenhar, no tratamento das mudanças climáticas. A prudência é a inteligência aplicada às nossas ações, através do conhecimento e da sabedoria, e não constitui meramente uma abordagem atenta e segura das decisões, mas, pelo contrário, uma base ponderada e consolidada para agir ou fomentar uma ação em ordem à obtenção do bem moral e à promoção do alcance do bem comum, de acordo com o Documento da Conferência Episcopal dos Bispos Católicos dos Estados Unidos (Global Climate Change: A Plea for Dialogue, Prudence and the Commom Good, de Junho de 2001.

Talvez tenhamos necessidade da “Terceira Revolução” para podermos voltar a utilizar, uma vez mais, a nossa inteligência. O conhecimento constitui um bem público, que podemos compartilhar com os outros, sem o perder. O conhecimento ajudar-nos-á a passar de um modelo que é recurso intensivo, para outro que é conhecimento intensivo. O conhecimento é um recurso natural ilimitado. Em vez de queimarmos o carvão e a madeira, devemos começar a fazer arder o nosso conhecimento a fim de que, finalmente, os povos do mundo representem mais do que aquilo que produzem, que a pessoa humana seja verdadeiramente o centro da nossa solicitude pelo desenvolvimento sustentável. Não nos deveríamos tornar uma civilização que conhece o preço de tudo e o valor do nada.

Depois da sua recitação do Angelus, na véspera da Conferência sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de Rio de Janeiro, em 31 de Maio de 1992 o Papa João Paulo II compartilhou alguns pensamentos que ainda hoje, nos nossos dias, são relevantes e apropriados. Nessa ocasião, o Sumo Pontífice afirmou: “A importante reunião internacional tem a finalidade de examinar, em profundidade, a relação entre a proteção do meio ambiente e o desenvolvimento dos povos. Trata-se de problemas que têm na sua raiz, uma profunda dimensão ética e que envolvem, por conseguinte, a pessoa humana, centro da criação, com os direitos de liberdade que derivam da sua dignidade de imagem de Deus, e com os deveres que todos os homens têm para com as gerações futuras”. Em seguida, o Papa acrescentou: “Convido todos a orarem comigo, para que os altos representantes das várias nações do mundo possam ser clarividentes nas suas deliberações e saibam orientar a Humanidade, ao longo dos caminhos de solidariedade entre os homens e de responsabilidade, no comum empenho de proteção da Terra, que Deus nos deu”.

O conhecimento é o único recurso autenticamente inextinguível que garante um ambiente e um desenvolvimento sustentáveis somente o conhecimento, acompanhado de um sentido ético do nosso relacionamento com o meio ambiente, pode ajudar a orientar os nossos esforços, tanto no presente como em relação às gerações vindouras.

Por ocasião da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável de Johanesburgo em Setembro de 2002, as palavras iniciais da Declaração Conjunta do IV Simpósio sobre Religião, Ciência e Meio Ambiente, assinada por Sua Santidade o Papa João Paulo II e o Patriarca Ecumênico Bartolomeu I em 10/06/2002, serviram para introduzir a Declaração da Santa Sé perante os delegados da RIO+10. Elas dizem o seguinte: “Encontramo-nos aqui reunidos neste dia, em espírito de paz, para o bem de todos os seres humanos e para a salvação da criação. Neste momento da História, no início do Terceiro Milênio, ficamos profundamente amargurados ao observarmos que um elevado número de pessoas sofre quotidianamente, em virtude da violência, da miséria, da pobreza e das enfermidades em geral. Estamos também profundamente preocupados com as conseqüências negativas, para a Humanidade e para toda a criação, proporcionadas pela degradação de alguns dos seus recursos básicos, como a água, o ar e a terra, causada pelo progresso econômico e tecnológico, que não reconhece nem tem em consideração os limites que lhe são próprios”.

A partir da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, do Rio de Janeiro, realizada em 1992, no seio da comunidade internacional promoveram-se amplas discussões e debates sobre o desenvolvimento sustentável. Trata-se de um conceito que já penetrou no terreno da história, um terreno que deve ser preparado para permitir que as raízes do desenvolvimento sustentável cresçam profundamente, a fim de darem muito fruto, em benefício de toda a humanidade.

Os Estados vieram para este encontro, trazendo consigo singulares interesses, necessidades, recursos, direitos e responsabilidades. O elemento unificador nesta mistura orgânica das legítimas diversidades é e assim deve ser a pessoa humana, como foi enunciado pelo primeiro Princípio da Declaração do Rio de Janeiro: “Os seres humanos encontram-se no centro das solicitudes pelo desenvolvimento sustentável. Eles têm direito a uma vida sadia e produtiva, em harmonia com a natureza”.

Reconhecendo a dignidade e os direitos do homem, o Papa João Paulo II, disse na sua Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1999, o seguinte: “Com efeito, a maneira mais segura de salvaguardar a criação consiste em pôr o bem-estar do ser humano no centro da solicitude pelo meio ambiente”.

Considerando o fato de que qualquer acordo sólido e duradouro em favor do desenvolvimento sustentável deve reconhecer e salvaguardar a dignidade e os direitos da pessoa humana, a promoção contínua da centralidade do ser humano nos debates sobre o desenvolvimento sustentável é do máximo interesse para a Santa Sé.

A promoção da dignidade humana está vinculada tanto ao direito ao desenvolvimento, como ao direito a um meio ambiente sadio, uma vez que estes direitos realçam a dinâmica do relacionamento entre os indivíduos e a sociedade em geral isto estimula a responsabilidade das pessoas em relação a si mesmas, ao próximo, à criação e, em última análise, em relação ao próprio Deus.

A este propósito, a Santa Sé continua afirmando a sua séria preocupação, no que se refere aos três pilares interdependentes e mutuamente revigorantes do desenvolvimento sustentável: o econômico, o social e o ambiental, e à sua contribuição para o desenvolvimento humano verdadeiramente integral e para a promoção do bem-estar de todas as pessoas. O desenvolvimento é, em primeiro lugar e acima de tudo, uma questão que diz respeito à pessoa. Como o Secretário-Geral ONU, Kofi Annan, quis realçar, “a ONU deve pôr a pessoa no centro de tudo aquilo que ela faz, tornando-a capaz de corresponder às necessidades que lhe são próprias e de realizar a sua potencialidade integral”.

A Santa Sé não procurará acrescentar algo mais ao significativo discurso técnico, que está sendo realizado no que se refere ao desenvolvimento sustentável. Contudo, sente-se profundamente comprometida nos valores que inspiram as ações e as decisões relativas ao desenvolvimento sustentável, uma vez que as deliberações que se realizam têm um particular contexto histórico e conduzem diretamente para os conceitos da pessoa, da sociedade e do bem-estar comum. É fundamental salvaguardar as condições morais da “ecologia humana”.

Há que reconhecer que as medidas jurídicas, econômicas e técnicas não são suficientes para resolver os problemas que dificultam o desenvolvimento sustentável. Muitos destes problemas são questões de natureza ética e moral, que exigem uma profunda transformação dos modelos de consumo e de produção, típicos da civilização moderna, de maneira particular nos países industrializados.

A fim de realizar esta mudança, Sua Santidade João Paulo II disse em 17/01/2001 que “devemos encorajar e apoiar a conversão ecológica”. Preocupamos-nos, muito menos do que o necessário em preservar o “hábitat” natural das diversas espécies animais ameaçadas de extinção, porque não nos damos conta da particular contribuição que cada uma delas dá ao equilíbrio geral da Terra nos empenhamos muito pouco em salvaguardar as condições morais de uma autêntica “ecologia humana”, segundo as palavras do Santo Padre na Carta Encíclica Centesimus annus de 1/05/1991.

A fim de assegurar o cumprimento da ecologia humana, é necessária a “educação para a responsabilidade ecológica. Esta educação não pode enraizar-se no mero sentimento, no desejo vazio […] A verdadeira educação para a responsabilidade acarreta uma autêntica conversão no modo de pensar e de se comportar” (João Paulo II, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1990), promovendo uma verdadeira cultura da vida, que deveria constituir a base de uma renovada cultura de desenvolvimento sustentável.

A Terra e todos os seus recursos constituem uma parte da “herança comum de toda a Humanidade”. Esta compreensão promove a interdependência, fomenta a responsabilidade e realça a importância do princípio da solidariedade global.

Esta realidade torna-se o fundamento do desenvolvimento sustentável, orientando os imperativos morais da justiça, da cooperação internacional, da paz e da segurança, assim como o desejo de revigorar o bem-estar espiritual e material das gerações do presente e do futuro.

Em resposta ao egoísmo e à indiferença, tanto no que diz respeito aos recursos naturais como ao abandono das pessoas com menos poder, dinheiro ou influência, a solidariedade é uma determinação firme e perseverante, em ordem a alcançar o bem comum e a prestar atenção ao próximo. Como tal, é um ideal exigente, que o Papa João Paulo II realçou com o seu apelo a uma “globalização da solidariedade”.

Com relação a isso, em 6 de Novembro de 1999, na exortação apostólica Ecclesia in Asia, disse o Santo Padre: “O grande desafio moral que se coloca às nações e à comunidade internacional com relação ao desenvolvimento, é ter a coragem de uma nova solidariedade, capaz de dar passos engenhosos e eficazes para vencer quer o subdesenvolvimento desumanizante, quer o ‘sobredesenvolvimento’, que tende a reduzir a pessoa a uma mera unidade econômica numa rede consumista”.

Um dos elementos básicos para a existência humana é a água. Atualmente, um grande número das nossas famílias humanas deve enfrentar uma inadequada disponibilidade de água e um decrescente acesso à água potável, assim como uma grave falta de serviços sanitários. Este tema motivou uma carta do Santo Padre aos Bispos do Brasil durante a Campanha da Fraternidade de 2004. A responsabilidade primeira, no que diz respeito ao uso, à proteção e à gestão eqüitativa e sustentável das reservas de água do mundo inteiro está nas mãos dos governos. Na luta em ordem a desenraizar a pobreza, a água desempenha um papel vital, não apenas no que se refere à saúde, mas também um indispensável elemento de produção.

A comunidade internacional deve enfrentar este desafio em ordem a obter a disponibilidade deste fundamental recurso dador de vida, uma vez que, se este problema não for abordado, as pessoas que não têm acesso à água poderão ir ao encontro da sua própria morte.

Outra prioridade principal no desenvolvimento sustentável é o progresso nas áreas rurais. Nestas regiões vive mais de metade da população mundial, e os pobres que moram nas áreas rurais carecem, com freqüência, do acesso aos serviços sociais mais básicos. Por vezes, o aumento da urbanização moderna tem levado ao esquecimento das populações rurais.

Contudo, são precisamente os elevados níveis de pobreza nas áreas rurais que têm contribuído, de maneira substancial, como fator propulsor da migração de tais populações para as áreas urbanas.

Em ordem a contribuir para a realização desta esperança, no contexto deste Encontro Mundial sobre o Desenvolvimento Sustentável, a Santa Sé exorta ao “dom de si”, dado que o ser humano não se pode encontrar plenamente a si mesmo, senão na abnegação. Em resposta ao egoísmo e à indiferença, em última análise, o “dom de si” assegura o bem-estar aos outros e às gerações futuras, contribuindo desta forma para o desenvolvimento sustentável. Este conceito constitui o fundamento dos outros tipos de associações e uniões de voluntariado, que o Encontro Mundial sobre o Desenvolvimento Sustentável deseja promover. O “dom de si” é o uso mais nobre que a pessoa pode fazer da liberdade humana, assim como o fundamento para uma ação destinada à promoção do desenvolvimento humano integral.

Edição n°101
Fonte:http://www.eco21.com.br

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