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O fim do romantismo energético

Mundo está diante da necessidade de uma transição energética com uma envergadura jamais vista

Na segunda metade do século XIX, tomava forma um movimento de oposição aos ideais Românticos no campo da arte, política e filosofia, chamado de realismo.

Ao contrário do romantismo, que ficou conhecido como o período da idealização do amor e do ambiente ao nosso redor, o realismo propunha descrever e refletir sobre os problemas e costumes sociais de forma mais “nua e crua” nas narrativas.

Na área de energia, ocorre algo semelhante, onde o “romantismo” encontra pela frente o “realismo energético”.

Não é novidade para ninguém o desejo e a necessidade de se conter o aumento da temperatura terrestre causado pelas emissões antrópicas de carbono, no combate às mudanças climáticas.

Uma ambiciosa meta está no centro das principais discussões: alcançar emissões líquidas zero de carbono na atmosfera, resumidamente chamada de net zero, até 2050.

Um mundo belo, verde e com geração de energia totalmente limpa conquistados em menos de trinta anos, em perfeita harmonia socioeconômica. Este é o romantismo energético.

O mundo está diante da necessidade de uma transição energética com uma envergadura jamais vista.

É preciso fazer em três décadas o que não se conseguiu fazer em mais de um século de uso do carvão, cujo consumo global ainda não entrou em declínio.

Talvez nem Juscelino Kubitschek, que prometeu fazer o Brasil avançar 50 anos em 5, iria ensejar tamanho desafio para o setor de energia. A mudança estrutural necessária não tem precedentes na história moderna.

A realidade em números

Desde a assinatura do Acordo de Paris em 2015, o consumo de energia aumentou. Metade do aumento foi atendido por fontes fósseis, enquanto a outra metade veio das renováveis (Figura 1).

A demanda de energia tem crescido acima da oferta de renováveis, sendo complementada pela energia fóssil.

Tem-se um super sistema energético capilar baseado em combustíveis fósseis, com 86,5% da energia primária mundial lastreada em carvão, petróleo e gás (BP, 2022).

Figura 1 – Fontes de suprimento observadas para o aumento da oferta de energia no mundo desde a assinatura do Acordo de Paris em 2015

É impossível ir a zero consumo de fósseis até 2050, dada a escala envolvida, por isso se fala em net zero, emissões líquidas zero, com carvão, óleo e gás ainda presentes, mas com saldo de emissões nulo.

Neste cenário, é necessário sustentar a produção de energia fóssil até que a transição transcorra por completo. E isso vai levar muito tempo.

Bill Gates, no livro Como evitar um desastre climático, descreve que parte significativa das inovações necessárias para o net zero ainda estão em fase de desenvolvimento, ou seja, não estão prontas.

Captura de carbono é um exemplo

Todos os projetos somados hoje capturam menos de 0,1% do carbono emitido anualmente (dados cruzados de IEA e BP, 2022).

A transição energética é seguramente a construção mais complexa que os humanos já iniciaram.

Dados da consultoria McKinsey apontam que é necessário investir próximo de 10% do PIB mundial todos os anos até 2050 para chegar ao net zero (Machado, 2022).

Isso em um mundo com quase um bilhão de pessoas passando fome e 3,6 bilhões em condições de pobreza energética (ONU e Rockefeller Foundation, 2022), para dar ideia do tamanho do desafio que se tem pela frente.

É difícil imaginar tamanha transferência de recursos para o setor energético sem que isso cause ainda mais problemas sociais.

O fim do romantismo

Os ambientalistas mais fervorosos pedem o fim imediato da produção dos combustíveis fósseis. Não há nada mais “romântico” do que isso na área de energia. Não existe transição sem combustível fóssil.

“Nosso céu tem mais estrelas,

Nossas várzeas têm mais flores,

Nossos bosques têm mais vida,

Nossa vida mais amores”

A percepção poética do ambiente de Gonçalves Dias é apaixonante, tal qual o “romantismo energético”.

Construir um mundo sustentável, verde e limpo em menos de trinta anos será muito difícil, terá pela frente terreno árido, céu nublado, várzeas e bosques que viram areia.

A realidade é dura, talvez seja necessário mais tempo do que o almejado para mudar a matriz energética global e o mundo precise lidar com as consequências disso.

A transição é um processo que vem ocorrendo naturalmente. O mundo sempre esteve em transição, passou-se da lenha para o carvão, vieram a hidroeletricidade e a energia nuclear para compor a matriz. Tem-se hoje energia eólica e solar em crescimento exponencial.

Contudo, em linhas gerais, a transição é um processo longo, lento e heterogêneo, que pode até ser mais rápido em pequenos países, mas que a níveis globais não será disruptiva como os “românticos” descrevem.

Por longa data, será necessário produzir carvão, petróleo e gás para manter a oferta de energia.

O planejamento do net zero deve levar em conta a segurança na oferta, o bem-estar social, econômico e ambiental. A reverberada “transição justa”.

Soa imprudente diminuir o investimento em energia fóssil, fonte de sustentação da sociedade atual, enquanto as fontes alternativas não têm escala ou economicidade suficientes.

Isso não reduz o senso de urgência da transição, da necessidade de se investir em fontes alternativas ou de se aumentar a eficiência dos processos e produtos.

Tem-se que fazer o melhor que se pode o mais rápido possível, o tempo todo, com um olhar atento para a segurança e a oferta de energia, englobando todas as fontes disponíveis. É tempo de pragmatismo e realismo energético.

“É melhor, muito melhor, contentar-se com a realidade; se ela não é tão brilhante como os sonhos, tem pelo menos a vantagem de existir.” (Machado de Assis, A Mão e a Luva, 1874).

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