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25 anos da Lei das Águas no Brasil: conquistas, desafios e ameaças com o PL do Novo Marco Hídrico

Resumo

Não é razoável propor alteração em uma das leis mais importantes do país, que impacta a vida das pessoas, meio ambiente, economia e a própria gestão hídrica, sem consulta à população.

O Brasil é o país mais rico do mundo em termos de recursos hídricos, contendo quase 13% da água doce disponível no planeta. Possui fenômenos ambientais globalmente singulares, como o Pantanal, a maior área úmida continental do mundo, e a Amazônia, com as mais extensas florestas alagadas, além da riqueza, diversidade e endemismos encontrados no Cerrado, Mata Atlântica, Caatinga e Pampas, formando um conjunto diverso de ambientes e sistemas aquáticos altamente ricos proporcionando diversos serviços ecossistêmicos. Características que também fazem do Brasil uma potência global para a conservação da biodiversidade aquática.

Manejar esse patrimônio e promover os usos múltiplos da água para uma série de atividades estratégicas para o país de maneira sustentável não é tarefa simples. Especialmente por se tratar de um recurso natural limitado. A Lei 9.433 de 1997, conhecida como a Lei das Águas do Brasil e fruto de uma grande mobilização da sociedade civil organizada, é parte importante para responder a esses desafios.

Entretanto, propostas de mudança contidas no Projeto de Lei (PL) com o Novo Marco Hídrico – e feitas sem consulta à sociedade – ameaçam um princípio da água como bem público, esvaziam o diálogo com as esferas locais, entre outros aspectos que detalho na sequência.

Introdução

A Lei das Águas do Brasil instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH), estabeleceu instrumentos para a gestão dos recursos hídricos de domínio federal (rios que passam por mais de um estado ou fazem fronteira) e criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SINGREH). Seu objetivo geral foi estabelecer um pacto nacional com a definição de diretrizes e políticas públicas voltadas para a melhoria da oferta de água, em qualidade e quantidade, gerenciando as demandas e considerando a água um elemento estruturante para a implementação das políticas setoriais, sob a ótica do desenvolvimento sustentável e da inclusão social.

Assim, a PNRH criou uma nova e importante estrutura para a gestão dos recursos hídricos, elegendo diretrizes de integração com outras políticas públicas correlatas, promovendo a gestão descentralizada das bacias hidrográficas e a participação da sociedade por meio dos comitês de bacias hidrográficas. Trouxe fundamentos importantes como o entendimento de que a água é um bem de domínio público dotado de valor econômico. Foi definido ainda o seu uso prioritário em situações de escassez, voltado ao consumo humano e à dessedentação de animais. A bacia hidrográfica foi definida como a sua unidade de planejamento, cuja gestão deve promover a conservação da água e os usos múltiplos. Estabeleceu-se ainda que haveria participação do poder público, dos usuários de água e da sociedade nas tomadas de decisão.

Para completar esse sistema, em 2000, o Governo Federal criou a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), responsável, entre outras coisas, por implementar a lei. Essa corresponsabilidade pelo planejamento da oferta e da demanda da água materializa-se na estrutura institucional encarregada de promover a implementação dos sistemas de recursos hídricos do país e que dispõem de comitês de bacias como base para a promoção da gestão descentralizada. Há atualmente mais de 230 comitês de bacias instituídos no país, reunindo interesses setoriais das grandes bacias nacionais, das bacias transfronteiriças e de microbacias.

Dessa forma, a Lei das Águas do Brasil passava a incorporar o resultado de uma longa caminhada participativa dos diversos segmentos da sociedade na busca da proteção e do uso sustentável da água. Sua criação definia uma nova forma para a gestão dos recursos hídricos, com instrumentos econômicos que ajudam a viabilizar esse sistema e a promover o uso eficiente da água. Uma verdadeira revolução conceitual.

Tanto a lei nacional quanto as leis estaduais de água, com os seus órgãos gestores, conselhos, comitês e agências de bacias hidrográficas, promoveram diversas conquistas em relação à redução e gerenciamento de conflitos pelo uso da água. Um destes exemplos são os mecanismos de alocação negociada de água no Nordeste. Promoveram ainda a recuperação e melhoria da qualidade da água em diversas bacias hidrográficas por meio de decisões, orientações técnicas contidas em seus planos de bacia e de investimentos financeiros. Um deles executado no rio Jundiaí, em São Paulo, em que os recursos aplicados em ações de saneamento melhoraram a qualidade da água, passando de um rio de classe de água 4 (considerado um rio morto) para um rio de classe 3. Essa transformação permitiu, após o tratamento da água, abastecer milhares de pessoas durante a pior seca do estado, nos anos de 2014 e 2015.

Outras diretrizes para a melhoria da qualidade ocorreram também no ambiente rural, com investimentos em sistemas de saneamento. Assim como estratégias de conservação e recuperação das bacias hidrográficas, incorporando soluções baseadas na natureza, como a restauração florestal, como parte das respostas na promoção da segurança hídrica.

Também foi responsável por abrir um espaço importante de participação da sociedade, o que possibilitou ampliar a transparência e o controle social. Como consequência desse processo de consolidação do uso das águas no Brasil, foi criado, em 2017, o Observatório de Governança das Águas, o OGA. Um movimento multisetorial com cerca de 60 instituições e 17 pesquisadores, que tem como foco acompanhar e propor melhorias na governança das águas, por meio de indicadores. Este trabalho hoje abrange áreas onde residem cerca de 50% da população brasileira.

Apesar das diversas conquistas, os desafios também são enormes. Uma vez que os rios ainda estão sendo poluídos; há um sobreuso da água subterrânea e superficial; o desmatamento voltou a crescer em diversas regiões do país; há contaminação pelo uso dos agrotóxicos; recursos aquáticos são superexplorados; áreas úmidas, rios e outros ecossistemas reguladores de águas são drenados, canalizados, represados e desviados; e ecossistemas essenciais para a proteção e conservação das águas, como matas de galeria, mananciais e nascentes, estão sendo rapidamente degradados. Todos estes fatores, em sinergia com os efeitos das mudanças climáticas, afetam a biodiversidade, o processo de funcionamento de ecossistemas naturais e a disponibilidade de água para uso doméstico, industrial, agrícola, na geração de energia entre outras finalidades.

Mas nesse momento há um risco estruturante na proposta do Governo Federal com o Projeto de Lei (PL) no 4.546/2021, que institui a Política Nacional de Infraestrutura Hídrica e está sendo chamado do Novo Marco Hídrico. O projeto, que pegou de surpresa toda a comunidade das águas no Brasil – uma vez que a proposta veio à tona pela imprensa –, já foi encaminhado ao Congresso Nacional e aguarda decisão do Presidente da Câmara dos Deputados.

Não é razoável propor uma alteração em uma das leis mais importantes do país, a Lei das Águas, que impacta a vida das pessoas, o meio ambiente, a economia e a própria gestão dos recursos hídricos, sem um mínimo de consulta estruturada e transparente para tratar de um tema estratégico para o país.

O PL não foi apresentado e discutido em nenhum comitê de bacia hidrográfica, seja federal ou estadual. Em uma rápida apresentação no Conselho Nacional de Recursos Hídricos ampliaram-se as dúvidas e os questionamentos.

O PL representa uma ruptura e desestruturação dos princípios, fundamentos e instrumentos da Lei das Águas do Brasil. Embora aborde a infraestrutura hídrica, o seu foco está concentrado na infraestrutura cinza, persistindo a visão de que a solução para qualquer questão hídrica se encontra apenas na engenharia. O PL não aborda a segurança hídrica; não estabelece diretrizes e mecanismos para fomentar a resiliência e recuperação das bacias hidrográficas, seja no campo ou nas cidades; não aborda as soluções baseadas na natureza, que representam quase 40% das respostas no combate às mudanças climáticas; entre outros pontos estruturantes para o tema.

Para exemplificar uma dessas rupturas, o PL institui a cessão onerosa de direito de uso dos recursos hídricos. Em outras palavras, cria um mercado de água, permitindo a sua comercialização e alterando um dos fundamentos da Lei das Águas como um bem de domínio público. É um assunto que merece muita atenção de todos os brasileiros, considerando a vulnerabilidade na base de dados de licenças de uso da água (também conhecidas como outorgas), de forma a evitar que medidas como essa acentuem ainda mais a desigualdade, as disputas e os conflitos pelo uso da água.

Outro ponto de atenção é que esta mudança pode romper a definição de prioridade no uso em casos de escassez, que hoje é destinada ao abastecimento humano e à dessedentação de animais. Além disso, retira dos comitês o direito de aprovar os seus planos de bacias ao submeter essa decisão para instâncias superiores de gestão, que estão mais distantes das realidades locais.

A proposta volta a trazer fragmentação na gestão dos recursos hídricos, centraliza decisões sem, entretanto, apresentar uma visão estratégica de longo prazo que de fato irá criar as bases para fazer frente aos riscos hídricos e climáticos que temos pela frente.

É verdade que a Lei das Águas não é perfeita e que precisa de aprimoramentos. Mas as lições aprendidas na mitigação do risco hídrico mostram que os bons resultados se deram com liderança, ação coletiva, pragmatismo e boa governança das águas com base nos princípios, fundamentos e instrumentos dessa Lei. Portanto, é tão importante que a lei atual seja aprimorada, fortalecida e não fragilizada.

Fortalecida por meio da adequação das estruturas oficiais de funcionamento dos Sistemas de Recursos Hídricos; da ampliação da capacidade dos órgãos gestores; da disponibilização de uma estrutura mínima para o funcionamento dos comitês de bacia, com seus representantes bem preparados; do aprimoramento na produção e sistematização de informações técnicas que subsidiam melhores decisões entre os diferentes entes que compõem o sistema; da implementação de instrumentos de gestão dos recursos hídricos; do estímulo à participação dos municípios; da sociedade amplamente informada e mobilizada, entre outros aspectos.

A gestão da água representa uma grande oportunidade pelo seu poder de integração e por afetar todos os segmentos da sociedade. O Brasil ainda tem uma boa Lei das Águas, que precisa ser compreendida e defendida perante a opinião pública e junto ao Congresso Nacional, especialmente nesse momento em que o PL no 4.546/2021 cria uma ruptura com o atual marco. Sugiro a todos que acompanhem este debate e estejam atentos e vigilantes na defesa da gestão participativa da questão hídrica.

Autor: Samuel Barrêto é biólogo, ambientalista e gerente nacional de Água da The Nature Conservancy Brasil (TNC-Brasil), integra a Aliança Latino-americana de Fundos de Água, a Seção Brasil do Fórum Mundial de Água, é membro do Comitê Gestor do Observatório de Governança das Águas (OGA) e do Grupo de Trabalho de Água da Rede Brasileira do Pacto Global da ONU.

Fonte: Um Só Planeta

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