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Cárie dentária, disponibilidade de açúcar e fatores associados nas capitais brasileiras em 2003: um estudo ecológico

Rev. odontol. UNESP vol.41 no.6 Araraquara Nov./Dec. 2012
http://dx.doi.org/10.1590/S1807-25772012000600010

Cárie dentária, disponibilidade de açúcar e fatores associados nas capitais brasileiras em 2003: um estudo ecológico

Dental caries, sugar availability and associated factors in the Brazilian capital cities: an ecological study

Michele Martins Gonçalves; Cláudio Rodrigues Leles; Maria do Carmo Matias Freire

Faculdade de Odontologia, UFG – Universidade Federal de Goiás, 74605-220 Goiânia – GO, Brasil

Correspondencia para

RESUMO

INTRODUÇÃO: A associação entre a disponibilidade de açúcar e a cárie dentária, utilizando-se dados populacionais, ainda não foi testada na população brasileira.
OBJETIVO
: Investigar a associação entre a experiência de cárie em crianças e a disponibilidade domiciliar de açúcar no Brasil, em 2003. Buscou-se ainda testar a provável influência de indicadores socioeconômicos e do acesso à água fluoretada. 
MATERIAL E MÉTODO
: Este estudo ecológico analisou dados das 27 capitais brasileiras sobre cárie em crianças de cinco e 12 anos, e abastecimento de água fluoretada, obtidos do levantamento nacional de saúde bucal de 2003. Os dados sobre disponibilidade domiciliar de açúcar foram obtidos da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) de 2003 e, sobre indicadores socioeconômicos, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento em 2000. Na análise estatística, foram utilizados testes de correlação e regressão linear simples e múltipla. 
RESULTADO
: Não houve associação significativa entre a experiência de cárie em crianças de cinco anos e as variáveis independentes. Na idade de 12 anos, menor experiência de cárie foi correlacionada à maior aquisição de refrigerantes, ao maior tempo de fluoretação e ao IDH e à renda per capita mais elevados. O resultado da regressão linear múltipla, ajustado pelo tempo de fluoretação das águas, indicou que esta variável explica os níveis de cárie mais baixos. Após o ajuste pelos demais fatores, nenhuma variável foi associada à cárie. 
CONCLUSÃO
: Não houve associação entre a experiência de cárie em crianças e a disponibilidade domiciliar de açúcar nas capitais brasileiras em 2003, quando indicadores socioeconômicos e presença de água fluoretada foram considerados na análise.

Descritores: Epidemiologia; cárie dentária; iniquidade social; dieta; fluoretos.

ABSTRACT

INTRODUCTION: The association between sugar availability and dental caries, using population data, was not tested in the Brazilian population yet.
OBJECTIVE
: To investigate the association between dental caries experience in children and household sugar availability in Brazil in 2003. It was also aimed to test the possible influence of socioeconomic indicators and presence of fluoridated water supply. 
MATERIAL AND METHOD
: This ecological study analyzed data of the 27 Brazilian capital cities on caries experience of 5 and 12 years-old children and water fluoridation obtained from the National Survey of Oral Health in 2003; sugar availability from the Household Budget Survey in 2003; and socioeconomic indicators from the United Nations Development Programme in 2000. Correlation tests, simple and multiple linear regression were used in the statistical analysis. 
RESULT
: There was no association between caries experience in the 5 years-old and the independent variables. At the age 12, lower caries experience was correlated with higher acquisition of soft drinks, public water fluoridation, Human Development Index and per capita income. Results of the multiple linear regression, adjusted by time of water fluoridation showed that this variable explained the lower levels of caries. After adjusting for the other factors, none of the variables were significantly associated to dental caries. 
CONCLUSION
: There was no association between dental caries in children and sugar availability in the Brazilian capital cities in 2003 when socioeconomic indicators and presence of fluoridated water were considered in the analysis.

Descriptors: Epidemiology; dental caries; social inequity; diet; fluorides.

Introdução

A redução na prevalência de lesões de cárie nas últimas décadas e o persistente problema nos estratos sociais mais baixos têm suscitado questionamentos sobre a sua determinação. Além dos estudos com abordagem individual, a determinação social da doença pode ser analisada sob uma perspectiva populacional, utilizando-se variáveis contextuais, que podem produzir informações importantes para a definição e a avaliação de políticas públicas.

Embora tenha havido um crescente interesse por estudos ecológicos na área da saúde bucal, ainda são poucas as publicações empregando este tipo de desenho no Brasil1-5. Alguns estudos utilizaram dados nacionais, com o objetivo de analisar a associação entre variáveis socioeconômicas, o acesso à água fluoretada e a prevalência de cárie em crianças6,7. Entretanto, aspectos relacionados ao consumo de açúcar pela população não foram contemplados.

O consumo de açúcar na população geralmente é estimado por meio de inquéritos alimentares em nível individual e por meio da sua disponibilidade, a qual é avaliada pela quantidade de açúcar para consumo humano em cada país8. A correlação entre a disponibilidade de açúcar e a experiência de cárie, utilizando-se dados populacionais, tem sido investigada em comparações internacionais9,10. Referência nesta abordagem é o estudo de Sreebny9, que demonstrou correlação positiva entre a disponibilidade de açúcar e o índice de cárie em crianças de 12 anos de 47 países, cujo resultado foi corroborado mais tarde em outro estudo, que incluiu 90 países10. Nas últimas décadas, a exposição ao flúor, seja por meio da fluoretação das águas de abastecimento público ou do creme dental fluoretado, tem contribuído para a redução das desigualdades na distribuição da cárie11,12, podendo influenciar a relação açúcar-cárie.

Informações sobre a quantidade de consumo de açúcares e alimentos que contêm açúcares pela população, por meio de inquéritos dietéticos, não são coletadas de forma sistemática no Brasil13. Assim, as informações sobre consumo alimentar da população têm sido estimadas a partir da disponibilidade domiciliar de alimentos, medida pela aquisição de alimentos pelas famílias na Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF)14. As POF são pesquisas periódicas, realizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) com o objetivo de mensurar as estruturas de consumo, dos gastos e dos rendimentos das famílias, possibilitando traçar um perfil das condições de vida da população brasileira.

Tendo em vista a inexistência de estudos sobre a relação entre o consumo de açúcar e a condição de cárie da população brasileira, não se sabe se a correlação verificada em outros países é verificada também no Brasil e se a disponibilidade de açúcar para a população pode constituir um indicador de consumo a ser utilizado em pesquisas epidemiológicas sobre a cárie. A existência de dois inquéritos nacionais realizados no mesmo ano (2003) sobre o consumo de açúcar e a condição de saúde bucal da população torna possível a realização desta análise.

Assim, o objetivo deste estudo foi investigar a associação entre a experiência da doença em crianças de cinco e 12 anos e a disponibilidade domiciliar de açúcar nas capitais brasileiras em 2003. Buscou-se ainda testar a provável influência de indicadores socioeconômicos e do acesso à água de abastecimento fluoretada na experiência da doença cárie.

Material e método

Este é um estudo ecológico transversal que incluiu as 27 capitais brasileiras. Os dados analisados são populacionais e procedentes de banco de dados de uso e acesso público, sem necessidade de aprovação do projeto por Comitê de Ética em Pesquisa.

1. Fontes dos Dados

Foram utilizadas as seguintes fontes: a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), realizada pelo IBGE em 200315; o Levantamento Nacional de Saúde Bucal (SB-Brasil 2003), realizado pelo Ministério da Saúde16, e o Atlas de Desenvolvimento Humano no Brasil de 2000, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento17. Apesar da existência de dados mais recentes da POF e do SB-Brasil, estes não foram utilizados no presente estudo porque foram coletados em anos diferentes e buscou-se, neste trabalho, testar as hipóteses com base em dados coletados no mesmo ano. Somente as capitais foram incluídas no presente estudo, pois, nas bases de dados utilizadas para as demais variáveis, não havia dados dos demais municípios.

Os dados do SB-Brasil 2003 foram coletados no período de maio de 2002 a outubro de 2003, numa amostra de 250 municípios. Foi aplicada uma técnica de amostragem probabilística por conglomerados em três estágios (municípios, escolas/creches e crianças). As capitais dos Estados não participaram do sorteio, sendo que todas fizeram parte da amostra.

Os exames clínicos da condição de saúde bucal foram realizados sob luz natural, com o auxílio de espelho bucal e sonda periodontal, por cirurgiões-dentistas que passaram por um processo de calibração. Nas capitais, para a idade de cinco anos, esses exames clínicos foram realizados em creches e, para 12 anos, em escolas. O dado sobre a presença de flúor na água de abastecimento público dos municípios pesquisados também foi obtido durante a coleta dos dados. Informações detalhadas sobre a metodologia do estudo encontram-se disponíveis em publicação anterior16. O banco de dados, de domínio público, encontra-se disponível no site do Ministério da Saúde.

A POF 2003 foi executada no período compreendido entre julho de 2002 e junho de 2003, e os resultados foram divulgados no final de 2007. A pesquisa incluiu uma amostra de 48.470 domicílios, estruturada para ser representativa de todos os domicílios do Brasil. Em cada domicílio, num período de sete dias consecutivos, foram registradas todas as aquisições – monetárias ou não monetárias – de alimentos e bebidas para consumo familiar. Adotou-se um plano amostral conglomerado em dois estágios (setores censitários e domicílios), com estratificação geográfica e estatística das unidades primárias de amostragem, que correspondiam aos setores da base geográfica do Censo Demográfico de 2000. Estes foram selecionados por amostragem sistemática com probabilidade proporcional ao número de domicílios no setor. As unidades secundárias foram os domicílios particulares permanentes, os quais, selecionados por amostragem aleatória simples sem reposição, estavam dentro dos setores selecionados. Posteriormente, foi aplicado procedimento de distribuição dos setores (e respectivos domicílios selecionados) ao longo dos 12 meses de duração da pesquisa, garantindo em todos os trimestres a coleta nos diversos estratos geográficos e socioeconômicos. Informações detalhadas sobre a amostra estão disponibilizadas em publicação anterior18. O banco de dados disponibilizado em CD-ROM foi adquirido pelos pesquisadores junto ao IBGE.

2. Variáveis Analisadas

A variável dependente analisada no presente estudo foi a experiência de cárie em crianças das capitais brasileiras, utilizando-se os seguintes indicadores16:

a)   Gravidade da cárie:

–  Índice de dentes decíduos cariados, extraídos por cárie e obturados (ceod) para a idade de cinco anos; e

–  Índice de Dentes Cariados, Perdidos e Obturados (CPOD) para a idade de 12 anos.

b)   Porcentagem de indivíduos livres de cárie:

–  Porcentagem de crianças de cinco anos livres de cárie (ceod = 0); e

–  Porcentagem de pessoas de 12 anos livres de cárie (CPOD = 0).

Utilizaram-se como variáveis independentes:

a)   Aquisição de açúcar e alimentos que contêm açúcar, destinados ao consumo domiciliar, nas capitais brasileiras, obtida nos microdados da POF 200315. Os dados foram registrados pelas famílias utilizando a especificação e a quantidade de cada item, sendo expressos em kilogramas per capita anual. No presente estudo, foram analisados os seguintes itens:

–  Açúcares: açúcares livres que são adicionados a alimentos pelos consumidores (sacarose);

–  Refrigerantes: todos os tipos de refrigerantes; e

–  Guloseimas: alimentos doces, sólidos ou líquidos, prontos para consumo, geralmente consumidos por crianças e adolescentes. Exemplos: balas, chicletes, chocolates, bombons, picolés, sorvetes, etc.

b)   Fluoretação das águas de abastecimento público: tempo, em anos, decorrido da fluoretação das águas de abastecimento das capitais16.

c)   Indicadores socioeconômicos das capitais brasileiras: foram utilizados três indicadores, obtidos por meio do Atlas de Desenvolvimento Humano de 200017.

–  Índice de Desenvolvimento Humano (IDH): mede o grau de desenvolvimento econômico e a qualidade de vida oferecida à população, considerando-se a educação (taxas de alfabetização e escolarização), a longevidade (expectativa de vida da população) e a renda (PIB per capita). Este índice varia de zero (0 – nenhum desenvolvimento humano) a um (1 – desenvolvimento humano total);

–  Índice de Gini: medida utilizada para calcular a desigualdade de distribuição de renda. Consiste em um número entre ‘0’ e ‘1’, em que ‘0’ corresponde à completa igualdade de renda (todos têm a mesma renda) e ‘1’ corresponde à completa desigualdade (uma pessoa tem toda a renda e as demais nada têm); e

–  Renda per capita (em real): soma dos salários de toda a população dividida pelo número de habitantes.

3. Análise dos Dados

Para a construção do banco de dados deste estudo, cada um dos bancos que apresentavam dados primários (SB-Brasil e POF) foi inicialmente organizado separadamente, incluindo-se apenas os municípios (capitais) e as variáveis estudadas. No banco de dados do SB-Brasil 2003, calculou-se a média do CPOD para a idade de 12 anos e a média do ceod para a idade de cinco anos. As porcentagens de indivíduos livres de cárie e a situação da fluoretação das águas de abastecimento público nas capitais também foram consideradas.

Nos microdados da Caderneta de Despesa Coletiva da POF15, para cada uma das capitais, foram selecionados os açúcares, que foram agrupados, depois os refrigerantes e, posteriormente, as guloseimas. As quantidades de alimentos adquiridas foram transformadas em consumo anual per capita de cada agrupamento considerado (expresso em kilogramas), usando-se os seguintes procedimentos:

1)   Soma das quantidades adquiridas (em kilogramas) de cada agrupamento ao longo de sete dias de coleta, por capital;

2)   Divisão pelo número total de indivíduos residentes nos domicílios pesquisados em cada capital; e

3)   Aplicação do fator de anualização igual a 52: tendo em vista que o período de referência dessas informações é de sete dias, multiplicando-as por 52, obtêm-se valores referentes a 364 dias (1 ano).

Após as análises pertinentes a cada banco de dados (SB-Brasil e POF), construiu-se um único banco com as variáveis a serem investigadas. Os dados foram analisados usando-se o programa SPSS 17.0 for Windows (SPSS, Inc., Chicago, EUA). As unidades de análise foram as 27 capitais brasileiras. Inicialmente, foi realizada análise descritiva dos dados. Aplicou-se o teste de Kolmogorov-Smirnov para avaliar a normalidade da distribuição das variáveis estudadas, sendo que apenas a variável ‘açúcar’ não apresentou uma distribuição normal. Para testar a associação entre cada um dos quatro indicadores da variável dependente (experiência de cárie) e cada uma das variáveis independentes, foi realizada análise bivariada utilizando-se testes de correlação. Este método foi utilizado também para explorar as associações entre as variáveis independentes. A associação entre as variáveis com distribuição normal foi testada pelo coeficiente de correlação de Pearson e, para a variável que não apresentou tal distribuição, utilizou-se o coeficiente de correlação de Spearman. Os resultados foram considerados estatisticamente significantes quando o valor de p foi menor que 0,05. Para as variáveis independentes que apresentaram correlação significativa com a experiência de cárie, realizaram-se as regressões lineares simples e múltipla.

Resultado

Os dados sobre a aquisição de açúcares e de alimentos que contêm açúcares também apresentaram grandes variações entre as capitais (Tabela 1). Por exemplo, a aquisição de refrigerante (em kilograma/per capita/ano) apresentou valores de 7,73 e 70,52, respectivamente, para São Luís-MA e Goiânia-GO. Além disso, foram observadas diferenças entre as capitais em relação aos indicadores socioeconômicos e o tempo de fluoretação das águas de abastecimento público (Tabela 1). Os melhores indicadores e os maiores tempos de fluoretação foram observados nas capitais das Regiões Sul e Sudeste.

Os resultados das correlações entre as variáveis dependentes e cada uma das variáveis independentes estão naTabela 2. Nenhuma associação significativa foi encontrada para a idade de cinco anos. Aos 12 anos, a aquisição de açúcar e guloseimas, bem como o Índice de Gini, não foram associados à experiência de cárie. Porém, para esta idade, verificou-se que quanto maior a aquisição de refrigerantes, menor o índice CPOD (r = –0,43) e maior o percentual de indivíduos livres de cárie (r = 0,39). Aos 12 anos, houve também correlações entre o IDH e a rendaper capita, e a experiência de cárie. As capitais com maior IDH e aquelas com maior renda per capitaapresentaram menores índices do agravo na dentição permanente. Outro fator que teve associação com a cárie dentária aos 12 anos foi o tempo de fluoretação das águas de abastecimento público. Ou seja: menor experiência da doença foi observada em crianças de capitais com maior tempo de fluoretação das águas.

Na Tabela 3, estão os resultados das correlações entre as variáveis independentes, mostrando associações significativas para a maioria delas. Todos os indicadores socioeconômicos foram correlacionados separadamente entre si. O IDH e a renda per capita apresentaram correlações com o tempo de fluoretação e a aquisição de refrigerantes e guloseimas. O Índice de Gini foi correlacionado apenas aos demais indicadores socioeconômicos.

Os resultados das análises das regressões lineares simples e múltipla das variáveis que apresentaram correlação significativa com a experiência de cárie aos 12 anos estão na Tabela 4. Os coeficientes de regressão linear simples (modelo não ajustado) mostraram efeito significante das variáveis ‘aquisição de refrigerante’, ‘tempo de fluoretação’, ‘IDH’ e ‘renda per capita‘ sobre os índices de cárie, bem como sobre o percentual de indivíduos livres da doença. O resultado da regressão linear múltipla (Modelo 1), ajustado pela variável relacionada à saúde bucal – tempo de fluoretação das águas –, mostrou que esta continuou tendo efeito sobre a experiência de cárie, mas a associação entre a aquisição de refrigerantes e o índice de cárie não foi significante. Após ajustar-se pelas variáveis socioeconômicas (Modelo 2), bem como por todas as variáveis que apresentaram correlação significativa com a cárie (Modelo 3), a associação entre as variáveis independentes e a experiência da doença não permaneceu significativa.

Discussão

Este estudo ecológico é o primeiro a investigar a associação entre a condição de cárie e a disponibilidade de açúcares em nível populacional no Brasil. Apesar de esse tipo de delineamento possuir limitações, tais como a impossibilidade de garantir a qualidade dos dados e de inferir os resultados em nível individual, pode ser de grande relevância para a orientação das políticas públicas de saúde.

Os resultados em relação à disponibilidade de açúcar e alimentos e bebidas que contêm açúcar devem ser interpretados considerando-se diversos aspectos. Comparações com estudos anteriores mostram resultados conflitantes. Nenhuma associação significante foi encontrada para a idade de cinco anos, assim como no estudo realizado por Sreebny9. Alguns estudos ecológicos anteriores envolvendo comparações internacionais mostram correlações positivas entre a disponibilidade de açúcar e cárie em crianças aos 12 anos9,10,19. Contudo, resultados semelhantes aos do presente estudo foram relatados por Woodward, Walker10 (1994), quando os países desenvolvidos foram analisados separadamente. Em 29 países europeus, o baixo CPOD foi associado a níveis mais elevados de consumo de açúcar e também a melhores condições socioeconômicas, resultado atribuído, em parte, ao efeito do creme dental fluoretado20.

A correlação negativa entre disponibilidade de refrigerante e índice de cárie aos 12 anos foi, por um lado, inesperada, pois estudos utilizando dados sobre o seu consumo individual mostram que o refrigerante está associado a uma maior experiência da doença21,22. Contudo, em um estudo ecológico incluindo 27 países europeus, Israel, Canadá e Estados Unidos, baixas taxas de escovação e alto consumo de doces foram relacionados com maior CPOD, enquanto altas taxas de consumo de refrigerantes foram relacionadas com um menor CPOD23. A provável explicação para os achados deste último estudo foi a condição econômica dos países, pois, naqueles com alto índice de cárie, o consumo de refrigerantes ainda estava em crescimento.

No presente estudo, a disponibilidade do refrigerante foi obtida a partir de informações sobre sua aquisição nos domicílios; esta, apesar de ser um indicador de consumo alimentar, não informa sobre o seu padrão de consumo. A aquisição de refrigerantes e guloseimas, mas não de açúcares livres, foi correlacionada também às variáveis socioeconômicas, indicando que famílias com melhores condições de vida tendem a adquirir mais bens de consumo, inclusive alimentos industrializados que contêm açúcar. Desta forma, a menor experiência de cárie, assim como a maior disponibilidade de refrigerantes, podem ser consequências da melhor condição socioeconômica. Além disso, o efeito do refrigerante sobre a dentição pode ser influenciado por outros fatores, tais como a frequência de ingestão, o acesso ao flúor, os hábitos mais adequados de higiene e o acesso regular aos serviços odontológicos24. Estas variáveis foram também citadas nos estudos anteriores como prováveis explicações para os achados10,20,23.

Os achados indicam que dados sobre disponibilidade domiciliar de alimentos, como os da POF, não são totalmente apropriados para se avaliar o consumo de açúcar na população, pois são mais relacionados aos gastos com alimentos, conforme indicado por Sreebny9. Além disso, o efeito do rendimento familiar é substancial sobre a aquisição da maioria dos alimentos14. No presente estudo, houve correlação positiva entre os indicadores socioeconômicos e a aquisição de guloseimas e refrigerantes. Devem ser consideradas ainda como principais limitações, quando se utilizam dados de aquisição domiciliar de alimentos da POF para avaliar o consumo alimentar: a ausência de dados relativos a alimentos consumidos fora do domicílio e o curto período (uma semana) de registro das aquisições de alimentos, bem como o desconhecimento da proporção dos alimentos adquiridos que não foi efetivamente consumida.

Neste estudo, o IDH e a renda per capita tiveram correlação com a experiência de cárie na dentição permanente, mostrando que quanto melhores estes indicadores, menor é a experiência de cárie. Estudos anteriores mostraram resultados similares no Brasil1,3,4,25,26 e em outros países27. Alguns estudos mostraram correlação entre o coeficiente de Gini e a experiência de cárie 5,28,29. Porém, no presente estudo, não houve associação significante entre estas variáveis, corroborando o estudo de Peres et al.26. Uma explicação para estes resultados seria uma baixa variação deste coeficiente nas capitais brasileiras, mostrando um perfil similar referente à distribuição de renda.

A correlação negativa entre o tempo de fluoretação das águas e a experiência de cárie no presente estudo está de acordo com os resultados de outros estudos de base populacional no Brasil, que mostram a efetividade desta medida de prevenção1,11,12,25,26,30. A correlação verificada entre a fluoretação e os indicadores socioeconômicos das capitais foi demonstrada também em estudo anterior, com base no levantamento nacional de saúde bucal de 20032.

Conclui-se que não houve associação entre a experiência de cárie em crianças e a disponibilidade domiciliar de açúcar no Brasil em 2003. A cárie aos 12 anos foi associada à aquisição de refrigerantes, aos indicadores socioeconômicos e à presença de água fluoretada, mas esta relação não permaneceu quando os fatores foram analisados em conjunto. Contudo, o papel do açúcar deve ser considerado dentro da abordagem dos fatores de risco comuns para outras doenças crônicas, como o diabetes, as doenças cardiovasculares e o câncer31.

Apesar das associações significativas obtidas nas análises bivariadas, verificou-se que nenhum dos fatores analisados no presente estudo contribuiu para explicar a experiência de cárie das crianças no modelo final de análise. Este achado sugere que mais pesquisas são necessárias para elucidar as complexas relações entre lesões de cárie, disponibilidade de açúcares e alimentos açucarados, e fatores socioeconômicos no Brasil. As marcantes variações geográficas entre as regiões analisadas e os fatores individuais que influenciam no processo saúde-doença bucal também podem ter influência sobre os resultados.

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