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Água para os ecossistemas

Terra da Gente – Gabriel Fugita

Deixar de atender às necessidades de água dos ecossistemas pode custar muito caro ao próprio homem

Que ninguém pode viver sem água, todos parecem concordar. Mas você já parou para pensar que também os ecossistemas geradores de água precisam dela para se reabastecerem, senão a fonte seca? Nas cada vez mais constantes discussões sobre as ameaças de escassez de abastecimento, as preocupações recorrentes são com o consumo humano, a irrigação agrícola, a produção de energia e o uso da água na indústria. Das geleiras polares aos córregos, cresce, felizmente, a preocupação com os reservatórios naturais e a qualidade da água. Mas pouco se fala – e se faz – para conservar os ecossistemas onde o ciclo natural da água garante a sua produção ininterrupta e mesmo sua filtragem.

É preciso lembrar que as chuvas que caem sobre um solo coberto de vegetação e penetram na terra devagar são filtradas naturalmente em seu percurso, até re-emergirem em nascentes cristalinas. Ao contrário, as enxurradas sobre solo nu – no campo ou na cidade – arrastam lixo, terra e contaminantes de todo tipo – químicos e biológicos – tornando- se impróprias para consumo e gerando impactos ambientais importantes como inundações, erosão e assoreamento. De nada adiantarão as ações para evitar a poluição da água se, ao mesmo tempo, não cuidarmos de garantir a sua produção. E nunca é demais reiterar que milhões de outros seres vivos são tão ou mais dependentes da água do que o homem, merecendo a sua porção de usufruto do precioso líquido.

Estudos conduzidos por algumas organizações não-governamentais (ongs) ambientalistas indicam um panorama próximo do caos. E apontam a necessidade de mudarmos a lista de prioridades de uso da água para incluir os ecossistemas, ao lado da irrigação, energia e abastecimento. Representantes da Fundação SOS Mata Atlântica alertam para as conseqüências da perda quase total da floresta atlântica original e da fragmentação do que ainda resta.

Na área antes coberta pela floresta – que correspondia a 1,3 milhão de km2 ou 15% do Brasil, quando os portugueses aqui chegaram – hoje vivem cerca de 108 milhões de brasileiros. Mais de 54% dos 5.560 municípios brasileiros se formaram e expandiram nesta área. Mas ainda é a floresta – ou os 7,3% que sobraram em pé – que garante a produção de água para toda essa gente e suas atividades.

Os fragmentos de mata são responsáveis, por exemplo, pela proteção e regulagem do fluxo de mananciais hídricos que abastecem os municípios e as principais metrópoles do país. “Todo o problema da escassez que atinge as grandes cidades nas regiões Sul e Sudeste do Brasil está diretamente ligado ao desmatamento e à ocupação irregular das matas ciliares que protegiam os cor pos d’água”, diz Malu Ribeiro, da SOS Mata Atlântica.

Em parceria com outras entidades, como o WWF-Brasil, a SOS Mata Atlântica utiliza imagens de satélite para monitorar as áreas remanescentes de mata e mapear os trechos degradados, planejando sua recuperação e recomposição. Com esse objetivo, há dois anos, criou-se o projeto Florestas do Futuro, com ações voltadas para as matas ciliares.

O piloto foi feito no município de Itu, uma estância turística no interior paulista com cerca de 200 mil habitantes e cinco áreas de proteção ambiental no seu entorno. “Nós constatamos que nenhuma das nascentes dos rios que abastecem a cidade está dentro dessas áreas de proteção”, conta Malu. Ela salienta que, nos últimos 10 anos, com as matas devastadas, o fornecimento de água da cidade ficou comprometido, chegando ao ponto de se tornar necessário estabelecer um sistema diário de rodízio. O diagnóstico não poderia ser pior: se as matas ciliares não fossem recuperadas, em cinco anos toda a população ficaria sem água.

A ong apresentou essas informações ao comitê de bacias hidrográficas local, delimitou as áreas de preservação e passou a reunir os pequenos e médios proprietários rurais cuja colaboração para a recuperação das matas era indispensável. Não foi tão simples convencê-los. Para muitos, o trabalho demandava recursos demais.

Mas, frente ao alto risco de desabastecimento, a relutância caiu por terra. Os produtores se comprometeram com a idéia e surgiu um parceiro inesperado: a Rodovia das Colinas, concessionária das estradas SP-75 e um trecho da SP-300, na região de Itu, era obrigada a fazer o reflorestamento por ter derrubado árvores para a construção de algumas praças de pedágio. Mas não tinha áreas disponíveis para plantar. A SOS Mata Atlântica então juntou o útil ao necessário. Orientou a Rodovia das Colinas a plantar as mudas nas propriedades rurais onde a recomposição era indispensável. “A empresa paga o plantio, indicado por nós, e a Fundação coordena e fiscaliza”, resume ela.

O projeto ainda está no segundo ano e já possibilitou o plantio de 80 mil mudas. Outras 40 mil devem ser plantadas até o fim deste mês de março. A meta é chegar a um milhão de unidades com a manutenção do reflorestamento feita a cada três anos. Os resultados aparecerão a longo prazo, mas já são considerados muito positivos. A partir da experiência em Itu, a SOS Mata Atlântica estendeu o projeto para vários outros municípios e abriu um canal de comunicação na sua página, na internet. Qualquer pessoa interessada em participar pode obter informações no site www.sosmatatlantica.org.br

Outra frente trabalhada por algumas ongs é a interação de projetos florestais com projetos hídricos. Em geral, os técnicos governamentais desses dois setores – tão dependentes entre si – nem sequer se encontram. O Fehidro, Fundo Estadual de Recursos Hídricos, deve disponibilizar este ano 60 milhões de reais para as bacias hidrográficas paulistas. A maioria das regiões produtoras de água no Estado, porém, não tem projetos de recuperação e conservação para os mananciais. Não há lei que obrigue os municípios, antes de receberem o dinheiro, a priorizarem a reestruturação do uso e dos cuidados com os rios, no lugar de investimentos na execução de obras para captar água em pontos cada vez mais distantes.

Um outro problema é a falta de integração entre as regiões administrativas nas cidades que consomem água de uma mesma bacia hidrográfica. “É o caso da região metropolitana de São Paulo, formada por 34 municípios. De nada adianta a mobilização de uma cidade se as vizinhas não compartilham dos mesmos objetivos”, observa Malu.

O projeto de despoluição do rio Tietê, da companhia de saneamento básico do Estado de São Paulo (Sabesp) e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), prevê a missão árdua de coletar o esgoto hoje despejado clandestinamente no trecho que passa pela capital; levá-lo às estações de tratamento e tratá-lo. Um desafio milionário e de longo prazo.

“Tanto empenho não tem o envolvimento de municípios do ABC paulista, como Guarulhos, onde o serviço de água e esgoto é regido por uma autarquia municipal.

Apesar de o Rio Tietê também atravessar o município, as medidas são tomadas sem levar isso em conta”, complementa a especialista. Ações isoladas acabam sendo menos eficazes. A cidade de São Paulo está entre as que têm a água mais cara do mundo. O custo para o tratamento é altíssimo. Entre outros motivos a baixa qualidade está relacionada à ocupação ilegal das áreas de mananciais, em torno das represas de Guarapiranga e Billings, principais reservatórios da capital paulista.

Cerca de um milhão de pessoas vivem de forma irregular nessas áreas, sem saneamento básico nem coleta de lixo. Os resíduos são carreados para os córregos, alguns dos quais já deixaram até de correr para as represas, de tão assoreados. “Na bacia do Alto Tietê, que fornece água para a região metropolitana de São Paulo, mais de 30% da carga poluidora presente nos rios vêm do lixo. E isso não acontece, nesse volume, em outras bacias do Estado. Se as matas nas regiões de mananciais estivessem conservadas, poderiam reter a carga poluidora, que não chegaria aos rios”, conclui Malu.

A interferência pouco planejada do homem na natureza provoca péssimos efeitos também em outros países. Nos Estados Unidos, no sul da Flórida, a partir de 1890 os norteamericanos passaram a ‘corrigir’ uma imensa área pantanosa, conhecida como Everglades. Com cerca de 4,5 milhões de hectares, o pântano era considerado ‘mal cheiroso, inútil e foco de doenças e mosquitos’. A vegetação natural foi retirada, as áreas mais úmidas drenadas, canais e estradas foram construídos, o curso dos rios sofreu alterações e fazendeiros instalaram-se com plantações de cana-de-açúcar.

Ao longo dos anos, as conseqüências dessa intervenção tornaram-se visíveis. O pântano era, na verdade, um grande filtro natural da água que abastece todo o sul da Flórida, incluindo os 4 milhões de habitantes de Miami. Sua deterioração provocou a perda de biodiversidade, erosão, destruição de corais na foz dos rios, eutrofização de lagos, poluição por fósforo e mercúrio. A situação se agravou a tal ponto que obrigou o governo americano a elaborar um plano para a restauração dos Everglades. Devem ser gastos US$ 7,8 bilhões em 35 anos para retirar os produtores rurais, desfazer os canais de drenagem, recolocar os rios em seus antigos leitos e devolver à área seu aspecto original. Isso tudo para que o pântano possa voltar a oferecer os serviços ambientais antes prestados à população e que jamais deveriam ter sido interrompidos.

Em outra região norte-americana, o risco de ter o abastecimento prejudicado convenceu os moradores de uma das cidades mais populosas do planeta a pagarem uma taxa extra para garantir a água. Segundo um estudo feito pela organização WWF e o Banco Mundial, a ser divulgado agora em março, os 9 milhões de habitantes de Nova York e região metropolitana recebem, por dia, 5 bilhões de litros de água das bacias dos rios Catskill, Delaware e Croton. Florestas compõem 75% de toda a área dessastrês bacias, mas a cidade de Nova York possui menos de 10% da propriedade das terras.

Como são vários os donos de terrenos tão importantes, o manejo tem de ser feito de maneira diversificada, com uma série de abordagens diferentes. Para evitar problemas que pudessem comprometer a qualidade da água, os moradores concordaram com um aumento nas contas para financiar um programa de melhoramento de manejo. Foram criadas formas de compensação, como a disposição de US$ 40 milhões para os criadores de gado leiteiro e lenhadores que adotam procedimentos mais adequados, licenças adicionais de corte para companhias madeireiras que aprimoram o manejo florestal e redução de impostos para donos de terras com florestas que se comprometem a executar um plano de 10 anos de manejo florestal.

Se tudo acontecer conforme o planejado, essa estratégia de proteção das matas irá garantir uma substancial economia para a cidade. Os custos iniciais do programa estão estimados entre US$ 1 e US$ 1,5 bilhão no período de dez anos. A alternativa seria uma nova usina de tratamento, avaliada entre US$ 6 a US$ 8 bilhões, com gastos operacionais de US$ 300 a US$ 500 milhões ao ano. Em vez da aposta em grandes obras, as florestas estão sendo protegidas com menos controvérsia do que é usual e os nova-iorquinos desfrutam bons suprimentos de água potável.

Para o coordenador do programa de água doce do WWF-Brasil, Samuel Barreto, o Brasil já tem condições de seguir exemplos como esse. “Neste caso, ficou comprovada a diferença de pelo menos seis vezes nos gastos, se compararmos o que seria exigido para a usina de tratamento e o que é necessário para a conservação dos mananciais. Não adotar medidas nesse âmbito implica ações cada vez mais caras e esgotar cada vez mais as fontes de água, gerando um número maior de conflitos e prejudicando a atividade econômica”, diz.

O estudo do WWF examina o papel das florestas no fornecimento de água limpa para os habitantes das grandes cidades do mundo. Foram escolhidas 105 cidades por nível populacional: 25 das Américas, 25 da Europa e Federação Russa, 25 da África, 25 da Ásia e 5 da Austrália. Seis municípios brasileiros entraram no estudo: São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Belo Horizonte, Fortaleza e Brasília.

Em São Paulo, os 18 milhões de moradores dependem muito de áreas protegidas para ter água potável em casa. Uma das principais é o Parque Estadual da Cantareira, com 7.900 hectares, um remanescente da mata atlântica que fornece metade da água da região metropolitana. Outra área, a da represa Billings, de 58.280 hectares, inclui o maior reservatório de água de São Paulo. De 1989 a 1999, foram desmatados 6% dessa área e atualmente 53% ainda são cobertos por vegetação nativa. O Parque Ecológico Guarapiranga, a Reserva Estadual Morro Grande, a Estação Ecológica Itapeti e os parques estaduais Juquery e Alberto Loefgren também são importantes para o abastecimento. No entanto, o estudo considera um desafio desencorajador assegurar a gestão do sistema, já que os usos estão em conflito: além das áreas de proteção terem sido ocupadas por moradias irregulares, o solo está degradado, a água poluída e retira-se muita água para irrigação e produção de energia.

No Rio de Janeiro, 14 áreas protegidas e a Reserva da Biosfera da Mata Atlântica ajudam a resguardar as fontes de água da principal estação de tratamento do rio Guandu, que fornece mais de 80% da água do Rio de Janeiro. Dentro da região metropolitana existem outras 4 unidades de conservação para a preservação da água. Essas áreas já foram as principais fontes de água da cidade, mas hoje respondem por menos de 10% do abastecimento. São elas: Parque Nacional da Tijuca, Reserva Biológica Tinguá, Parque Estadual da Pedra Branca e a área de proteção ambiental Gericinó-Mendanha. Os 10% restantes vêm do reservatório de Lages, que possui uma floresta manejada.

Duas áreas protegidas criadas recentemente asseguram a água da região metropolitana de Salvador. A Área de Proteção Ambiental (APA) Lago de Pedra do Cavalo, estabelecida em 1997, ajuda a preservar a caatinga e as matas ribeirinhas, vitais para os cuidados com o lago artificial construído para o abastecimento de Salvador e outras vizinhas. A área de proteção ambiental Joanes/ Ipitinga – com 60 mil hectares – protege o mangue, remanescentes de mata atlântica e uma rede de rios que asseguram cerca de 40% da água potável. Problemas comuns relacionados à conservação dessas áreas são a contaminação por esgoto doméstico e industrial despejado sem controle ou tratamento, a ocupação ilegal e não planejada, o desmatamento e os incêndios.

Em Belo Horizonte, uma rede de 10 reservas florestais assegura o abastecimento para os mais de 3 milhões de habitantes da região metropolitana. Juntas, as reservas de Mutuca, Fechos, Rola-Moça, Taboões, Catarina, Bálsamo, Barreiro, Cercadinho, Rio Manso e Serra Azul cobrem 17.000 hectares de unidades de conservação protegidas sob diferentes categorias.

A região de Fortaleza, pobre em água, depende de um complexo sistema de barragens, canais e açudes para o abastecimento de água. A Cogerh, Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos do Estado do Ceará, é a instituição responsável pelo suprimento de água de mais de dois milhões de moradores da cidade. Embora atualmente não haja nenhuma ligação clara entre áreas protegidas e o fornecimento de água, existe a necessidade de garantir que áreas-chave de algumas bacias hidrográficas, como as do rio Cocó e Pacoti, sejam estrategicamente protegidas para o abastecimento de água no futuro.

O Parque Nacional de Brasília, com 28.000 hectares, foi criado para proteger uma das mais importantes fontes de água da cidade. Planejada para cerca de 400 mil pessoas, a capital do país tem hoje mais de dois milhões de moradores. Cerca de 40% da água vêm do Parque Nacional, formado por árvores de cerrado e matas ciliares que defendem nascentes e rios. O parque também é uma importante área de lazer.

Para Samuel Barreto, um dos grandes entraves para a conservação das fontes de água e, por conseqüência, para a garantia de abastecimento, é a irrelevância que ela tem nos planos de ações e nos investimentos feitos no país, de forma geral. “As grandes intervenções de engenharia, que levam em conta apenas as vazões, ainda são mantidas como prioridade. Os componentes que têm como finalidade a conservação ainda são pouco considerados nas gestões hídricas das companhias de água e esgoto e dos comitês de bacias hidrográficas”, enfatiza Barreto.

Mas o que falta? Ele acredita que o abastecimento público não deve ser responsabilidade apenas da área de saneamento. As ações devem ser mais estratégicas e também mais integradas. É preciso enxergar que o papel das florestas é fundamental e que elas são prestadoras de serviços ambientais. Conforme Samuel Barreto, “é mais barato pagar para manter esses serviços do que correr atrás de sua recuperação”.

Fonte: http://eptv.globo.com/

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